domingo, 29 de setembro de 2013

Trajetos em torno de “Grande Indústria e Favela”


Em sua reflexão sobre um modelo clássico de estadista brasileiro, FHC escolheu enfatizar justamente a questão de nossa abertura para o mundo, um tema que ele mesmo, enquanto estadista, teve que enfrentar.
"Pensadores que inventaram o Brasil", de Fernando Henrique Cardoso
“Pensadores que inventaram o Brasil”, de Fernando Henrique Cardoso

1.

Esse livro deveria ter tido muito mais impacto do que teve até agora. É um livro do melhor aluno de Florestan Fernandes, de um sujeito que foi presidente da Associação Internacional de Sociologia, do primeiro sociólogo no mundo a conseguir um bom emprego (só por oito anos, mas enfim); e é um livro que é praticamente um “Saudação às Favelas” do pensamento social brasileiro, uma lista de chamada dos grandes intérpretes da nação. Infelizmente, o FHC pós-1994 virou um objeto de indiferença para muitos dos intelectuais que saberiam resenhá-lo (nem sempre por esquerdismo; às vezes só porque ele agora “é só um político”), e de respeito reverencial por um bando de puxa-sacos conservadores que provavelmente acham que esse livro é uma espécie de “guia politicamente incorreto da sociologia brasileira”.
Há várias coisas que se pode fazer com esse livro. Imagino que muita gente vá comprá-lo para conhecer os autores discutidos. Em alguns casos isso dá razoavelmente certo: o texto sobre Faoro (único escrito especialmente para o livro) é a melhor apresentação que eu já vi de Os Donos do Poder; o texto apresentado na FLIP também dá uma boa visão geral sobre Freyre; a introdução à Revolução Burguesa no Brasil faz o mesmo por Florestan (ou, ao menos, pela primeira parte do livro de Florestan); Caio Prado e Sérgio Buarque merecem discussões bem mais rápidas, que funcionam melhor para quem já os leu, a não ser na aula magna do Instituto Rio Branco, que talvez seja o melhor texto do livro. Os textos sobre Nabuco são ótimos (embora a discussão de FHC sobre os traumas de infância de Nabuco seja meio forçada), mas não sei se serão bem compreendidos por quem nunca o leu. O mesmo vale para Celso Furtado e Antonio Candido (embora a apresentação de Parceiros do Rio Bonito seja boa, e termine com uma bela frase).
O livro também tem discussões boas para quem já conhece a história do pensamento social brasileiro, como a sugestão de que o volume sobre monarquia brasileira de Sérgio Buarque de Holanda na História da Civilização Brasileira talvez seja seu melhor livro, a crítica de quem vê muita influência de Marx em Celso Furtado, a discussão sobre o equilíbrio de Weber e Marx em Florestan, a discussão sobre a importância de A Revolução Brasileira na obra de Caio Prado, e a boa comparação entre Nabuco e Tocqueville, só para ficar nas que me chamaram mais atenção (lembrando que não sou, nem de longe, especialista em pensamento brasileiro; deve ter coisa bem mais sofisticada ali).
Mas acho que as possibilidades de leitura mais interessantes do livro são duas: a pertinência do debate sobre a formação nacional após a crise do nacional-desenvolvimentismo, e como os textos de FHC, em especial os dos anos noventa, se inserem nessa discussão.

2.

Entre os textos reunidos no livro estão cinco perfis (Euclides, Paulo Prado, Sérgio Buarque, Caio Prado, Celso Furtado) escritos em 1978 para a antiga revista Senhor Vogue, que publicou uma série sobre “Livros Indispensáveis à Construção do Presente”: em cada edição vinha o resuminho de um livro famoso (SertõesRaízesFormação etc.) com uma introdução de FHC.
A leitura das apresentações sofre um pouco por não estarem acompanhadas dos resumos, que, naturalmente, liberavam FHC de sumariar os livros, permitindo que seus textos fossem só comentários, indicações de por que cada livro seria importante: Os Sertões, por forçar o reconhecimento do Brasil pobre e profundo por parte da intelectualidade nacional; Retrato do Brasil, de Paulo Prado, eu não sei por que seria indispensável, mas FHC garante que é porque representa bem o estilo ensaísta meio romântico de pensar a identidade nacional; Raízes, de SBH por ser um esforço raro de pensar nossas origens do ponto de vista da democracia (com seu respeito às regras, em oposição aos arranjos personalistas que favoreciam a oligarquia), o que, brilhantemente nota FHC, era um feito e tanto em 36, quando a democracia estava em baixa no Brasil e no mundo; Formação, do Caio Prado, por enfatizar como fundamental para nossa história a contradição entre uma colonização de sentido fundamentalmente mercantil e voltada para o mercado mundial que construiu uma sociedade baseada no trabalho escravo; EFormação, do Furtado, por ter impulsionado a discussão histórica sobre o subdesenvolvimento econômico, por vários achados de histórica econômica, e por ter inaugurado a fase em que a economia entra com tudo na discussão sobre o Brasil, e passa a oferecer a linguagem em que ela, até hoje, acontece.
Talvez já lhe tenha ocorrido a questão: FHC fez uma série sobre “livros indispensáveis” e não incluiu Gilberto Freyre? Aqui temos a primeira escolha discutível dos editores. Na verdade, se vocês checarem o site do Instituto FHC, houve, sim, um artigo de FHC sobre o Freyre na série da Senhor Vogue (e houve também um outro, sobre Roberto Simonsen, que não entrou no livro; inexplicavelmente, porque também é interessante, apesar de curtíssimo). Fiquei curioso em saber o que havia no texto excluído e fui à Biblioteca Nacional procurar a Senhor Vogue, mas eles não têm o número com o artigo sobre Freyre (deu para ver, entretanto, que Senhor Vogue era uma bela revista). Rodei os sebos aqui do centro em horas de almoço e ninguém tinha ouvido falar da revista. A Scena Aberta, aquela sensacional banca de Ipanema que vende revistas raras, tinha um número, de outro ano. Já estava desistindo quando descobri que todos os textos estavam disponíveis no site do Instituto FHC. Estou contando isso para avisar que, se você acha que ir à Biblioteca Nacional ou rodar sebos foram tempo perdido, é absolutamente impossível que qualquer coisa daqui em diante nesse texto lhe interesse.
O que está no artigo sobre Freyre que não foi publicado? Nada de imensamente importante, talvez. É provável que a opção por não publicá-lo tenha se dado porque vários de seus temas são retomados nos textos, mais longos, que foram incluídos. Mas pelo menos o seguinte trecho, que encerra o texto, mereceria republicação:
Oxalá surja algum outro sociólogo-escritor, se possível menos dado ao mito, mas que não tenha os ouvidos moucos para a tensão criadora e que deixe a mão solta ao impulso da pena e possa captar, para além do banalmente observável, a vida contemporânea. Falta-nos, e como, um “Grande Indústria e Favela”, menos preso às virtudes (de resto, mais difíceis de gabar) do capitão de indústrias e mais sensível aos anseios, ao modo de ser e ao intuir do futuro das camadas populares, capaz de ver na favela não o cadinho da marginália mas o ergástulo dos trabalhadores das periferias sem fim, estepes quentes das nossas cidades. E tomara que nosso Gilberto-futuro se apiade menos dos trabalhadores, depois do Paraíso, de que o Gilberto-original dos negros libertos. Que não seja trombeteiro de sua utopia regressiva e tenha mais fé no cotidiano restaurado por uma vontade de igualdade, mas que deixe no livro as marcas de talento tão fortes quanto as de Gilberto Freyre.
O texto se chama “À Espera de Grande Indústria e Favela”, e ninguém na editora achou que seria interessante lembrar que FHC queria escrever um livro como Casa Grande e Senzala? Não desperta a curiosidade de vocês pensar como seria essa reescritura do Freyre pós-Florestan? No mínimo, o texto deveria ter entrado para o leitor entender melhor do que se trata a afirmação do FHC às páginas 13 e 14, onde diz que, após compreender melhor os acontecimentos do final do século XX, percebeu que não fazia mais sentido “o sonho que eu acalentava de escrever umGrande Indústria e Favela”.
Antes que você pergunte, eu pergunto: o que têm a ver os eventos do final do século XX com a impertinência de uma grande obra de interpretação nacional? Certo, uma das regras da ABNT nos anos noventa era que todo texto de humanas tinha que começar “com a queda do Muro de Berlim e a globalização…”, mas eu pensava que isso já tivesse sido revogado (agora é “com o advento das redes sociais…”).

3.

Logo no início, FHC já adianta sua posição sobre o negócio da “formação”, a questão, que orientou todos os autores comentados, da identidade nacional brasileira, o que nos une, o que faz de nós um país, quais as dificuldades de se construir um país a partir de nossa história. Na aula inaugural do Instituto Rio Branco de 93 (talvez o melhor texto do livro), FHC ainda lamenta que não haja uma nova grande interpretação do país. Mas no prefácio de 2013 adverte que não acha que haja mais espaço para isso. Segundo ele, na sua geração a coisa já não fazia muito sentido, porque (1)àquela altura do campeonato, o país já estava “formado” (ou, ao menos, tão formado quanto países costumam ser) e (2)embora na época eles não tenham percebido isso, no momento em que escreviam o capitalismo entrava em sua fase global, e o tema da “formação” estava muito ligado à ideia de um capitalismo nacional. O prefácio termina com uma nota citando com aprovação o artigo do Marcos Nobre na piauí nº 74 sobre a impertinência, no momento atual, do debate sobre formação. (FHC cita novamente o Nobre nessa entrevista daFolha.)
O mérito do texto de Marcos Nobre (que é bom) é justamente identificar períodos diferentes na discussão sobre a formação (Candido e Furtado, por exemplo, escreviam em um momento bem diferente de Prado Jr./Buarque/Freyre; a turma do Cebrap já traria uma certa “negatividade” para o debate sobre a formação, e por aí vai). O problema de Nobre é que sua discussão sobre o período pós-crise dos anos 80 se limita, por um lado, à constatação do maremoto neoliberal que se abateu sobre o debate (houve isso, quem viveu na época lembra); e, por outro lado, aos frutos “tardios” da discussão paulista: Paulo Arantes, Chico de Oliveira, Rodrigo Naves e Luis Felipe de Alencastro, todos muito bons. Mas Nobre deixa de fora da conversa duas das principais discussões dos anos 90/00 sobre o Brasil: o resgate do weberianismo brasileiro, com sua crítica do Estado patrimonial, e a discussão sobre globalização.
Duas discussões, aliás, sem as quais não é possível entender os textos de FHC produzidos dos anos noventa em diante e incluídos em Pensadores que Inventaram o Brasil. FHC, não sei se vocês lembram, viveu os anos noventa intensamente.

4.

É fácil, e plausível, ver nos textos sobre Nabuco a reflexão do FHC sobre Fernando Henrique Cardoso, Presidente da República. Vejam lá a discussão sobre o conflito, em Nabuco, entre o pendor intelectual e o jogo prático da política; ou os dois momentos de elogio da política e do realismo político: no prefácio a Balmaceda, por exemplo, temos a afirmação de que os presidentes deveriam ser julgados pelo contraste entre o país que receberam e o país que entregaram; e no texto apresentado na ABL, a lembrança de que Nabuco era um defensor da política, que acreditava que a abolição viria pelo parlamento.
Se for verdade que os textos sobre Nabuco são uma reflexão sobre o próprio FHC, o mais interessante é perceber que o aspecto que mais parece interessar a FHC é o cosmopolitismo de Nabuco. FHC aproxima, por exemplo, a defesa de Nabuco da apreensão de navios negreiros pela Inglaterra (contra os que consideravam a apreensão violação pura e simples de soberania; para Nabuco, os piratas do tráfico nos haviam sequestrado a bandeira) da ideia moderna de intervenção humanitária. A ideia tem uma atualidade evidente, seja na defesa de um ataque à Síria, seja no apelo a cortes internacionais contra crimes ambientais praticados pelo Brasil. Em ambos os casos será impossível dissociar inteiramente a dimensão moral do jogo político, mas, até aí, quando é fácil?
A propósito, se o seguinte trecho (escrito em 1999) não é debate sobre formação, nada é:
Mário [de Andrade] costumava contrapor seu nacionalismo ao cosmopolitismo de Nabuco. Empenhado em “abrasileirar o Brasil”, o modernista, em reiteradas ocasiões, ironizou a falta que Nabuco sentia dos cais do Sena em plena Quinta da Boa Vista. As raízes do Brasil não estariam no “mal de Nabuco” senão no foco da infecção mazomba, dizia Mário.
Parece-me que os novos tempos favorecem mais Joaquim Nabuco do que Mário de Andrade.
FHC prossegue argumentando que, em tempos de globalização, o diálogo entre as culturas favoreceria a visão de Nabuco sobre a “dupla ausência” que caracterizaria nossa identidade nacional. Mas, em nosso diálogo com o mundo,
(…) Contribuímos não somente com os valores da cordialidade, mas com tudo aquilo que soubemos tomar e processar com a força do nosso talento, o que Mário de Andrade, antropofágico, certamente corroboraria, com o aplauso de Nabuco.
Ou seja, o plano é se abrir para o mundo utilizando nossa identidade meio aberta como vantagem comparativa (até a cordialidade entrou nessa, vejam só). Concorde-se ou não, o que é fácil é perceber que a globalização, longe de não lhes abrir espaço, exige novos debates sobre nacionalidade. Em sua reflexão/projeção sobre um modelo clássico de estadista brasileiro, FHC escolheu enfatizar justamente a questão de nossa abertura para o mundo, um tema que ele mesmo, enquanto estadista, teve que enfrentar, para o bem ou para o mal.

5.

Não me parece plausível que FHC tenha feito uma grande autocrítica com relação a Gilberto Freyre, como faz crer o posfácio de José Murilo de Carvalho. O tom dos textos de FHC sobre Freyre nos anos 90 é mais moderado, mas a essência da crítica da Escola da USP ao Freyre (ele romantiza a sociedade patriarcal e escravocrata) permanece, e ainda bem que permanece, porque é na mosca. O reconhecimento de que Freyre, independente de qualquer coisa (e já ninguém mais discordando que era um gigante, que, aliás, só escrevia pior do que quantos dos nossos romancistas? Quinze? Cinco?), teve a força do mito, a projeção do que o Brasil gostaria de ser, e que nisso permaneceria atual, já estava no artiguinho da Senhor Vogue, de 1978.
A novidade talvez seja a ideia de que Freyre produz um ideal de miscigenação que pode fertilizar a identidade nacional brasileira em seu diálogo com o mundo. Não é uma autocrítica, é uma proposta de utilização de Freyre dentro do cosmopolitismo de FHC, semelhante ao que ele faz no final do texto sobre Nabuco com Mário de Andrade. A globalização, novamente, pode ser um bom momento para aproveitar o fato de que nossa discussão sobre nacionalidade sempre deu como resposta mestiçagens, hibridismos, antropofagias, aberturas, incompletudes, rascunhos e outras confusões variadas, e transformar a necessidade em virtude.
Nessa hora é bem tentador jogar de volta o argumento para cima de FHC, e dizer que esse ideal de inserção global a partir de nossa flexibilidade é muito mais o que gostaríamos de ser do que o que efetivamente somos (embora sempre haja alguma verdade na narrativa, como, aliás, havia no Freyre). Na falta de superego digno do nome, cedo à tentação e sugiro que é isso aí, é assim mesmo.
Agora, vocês vão se perguntar: eu fui ler o livro do ex-marxista FHC e só ganhei essas interpretaçõezinhas sobre cultura? O cara pulou o “Grande Indústria e Favela” e foi direto para “Roberto Campos e Tropicália”? Não tem nada sobre economia, dependência, aquele papo bacana?
Bom, no mínimo tem “BNDES” e, sei lá, “Camelódromo”.

6.

Ninguém discute que Os Donos do Poder, de Raymundo Faoro, merece estar em uma lista de livros fundamentais para a compreensão do Brasil. É um livro de leitura bem difícil, o que torna o trabalho de apresentação de FHC especialmente louvável. A tese central, que Faoro às vezes força sobre os fatos (e FHC o corrige com competência), é que há um estamento burocrático que controla a sociedade brasileira desde a colônia. O estamento burocrático tem uma relação complexa com o poder econômico, o que dá margem a, pelo menos, duas interpretações possíveis: a primeira é que o problema do Brasil sempre foi excesso de Estado (inclusive em períodos e locais em que isso é bastante implausível, como na economia escravista e na Velha República). A segunda é que o poder econômico no Brasil sempre se utilizou do Estado (o que me parece mais plausível, mas, enfim, é só o que eu acho). Uma interpretação enfatizaria o peso da burocracia, a outra a falta de participação popular (e, portanto, a captura do Estado por interesses particulares) que caracterizou grande parte da história brasileira. O texto de FHC se equilibra entre as duas tendências: o artigo se chama “Um Crítico do Estado”, mas ele reconhece, e até enfatiza, as relações que o Estado brasileiro sempre teve com o poder econômico.
Durante a ditadura, FHC já enfatizava a formação dos “anéis burocráticos”, um antecessor interessante da análise das redes que se formam nas fronteiras entre setor público e setor privado. Uma versão empiricamente sofisticada dessa discussão é o livro recente de Sergio Lazzarini, Capitalismo de Laços (um dos trabalhos mais importantes produzidos no Brasil recentemente), bastante influenciado por Raymundo Faoro e onde Dependência e Desenvolvimento na América Latina é referenciado como inspiração teórica central, ao mesmo tempo em que o governo FHC (como também o de Lula, não se apressem em partidarizar o negócio) aparece sob uma luz interessante: a privatização com participação do BNDES e dos fundos de pensão resultou em um arranjo público/privado diferente, mas não obviamente fora do esquema tradicional de interação Estado/Sociedade que os weberianos sempre enxergaram na sociedade brasileira.
Não há dúvida de que o governo FHC teve entre seus defensores representantes de prestígio entre os weberianos brasileiros, como Simon Schwartzman, e não há dúvida de que a tese do patrimonialismo se encaixa bem com propostas de redução do tamanho do Estado. Aliás, é difícil negar que esse weberianismo liberal tem certa razão: o Estado desenvolvimentista brasileiro foi grande demais durante os anos 70 e talvez tenha ensaiado se tornar grande demais depois da crise de 2008 (nos dois casos, havia também bons argumentos, tanto em defesa dos grandes projetos da ditadura, quanto em defesa da política anti-crise Lula/Dilma).
Mas o que torna o debate sobre o weberianismo brasileiro politicamente interessante é que Faoro passou os anos 90 inteiros criticando o governo FHC e suas medidas de desestatização em sua coluna na Carta Capital. Para além da discussão levantada com competência pelo livro do Lazzarini, seria difícil negar que FHC governou (como Lula também) em aliança com políticos que teriam todo o direito de serem identificados como “donos do poder”, embora alguns estivessem mais para “Casa Grande e Senzala”. Para não ficar só nisso, o outro grande weberiano brasileiro, Sérgio Buarque de Holanda, foi membro fundador do PT, provavelmente porque, como bem nota FHC no seu curto texto sobre SBH, ele não via a alternativa ao estatismo no liberalismo papo furado da Velha República, mas em um movimento de inclusão de cidadãos vindo de baixo (algo na linha do que se depreende dos comentários sobre o PT emPorque as Nações Fracassam, de Acemoglu e Robinson).
Ou seja: a interpretação weberiana tem muito a contribuir para nossa compreensão de nós mesmos, já foi utilizada por diferentes perspectivas políticas, nos anos pós-crise dos anos 80 ganhou uma vida nova, e, em um determinado momento, cruzou com a corrente marxista quando o capitalismo brasileiro se tornou especialmente estatal.
Enter the Florestan.

7.

FHC certamente é um dos sujeitos que mais entendem de Florestan Fernandes, de quem foi aluno, orientando, colega, vizinho, companheiro de viagem quando Florestan deu uma banana para o Council of the Americas (p. 184), e herdeiro intelectual. José Murilo de Carvalho deve estar certo quando sugere que Florestan, com sua abertura para diversos métodos e teorias (o que já lhe rendeu a caracterização de “ecletismo”), foi importante para evitar que FHC se tornasse um marxista ortodoxo.
A leitura de FHC para A Revolução Burguesa no Brasil destaca o fato de que cada metade do livro foi escrita em uma chave teórica diferente: o começo é weberiano, o final é marxista. E os trechos destacados por FHC justamente enfatizam os pontos de contato entre as interpretações marxista e weberiana. Por exemplo, em seu estudo sobre a constituição da “ordem social competitiva”, diz Florestan, citado por FHC: “O que ocorreu com o Estado nacional independente é que ele era liberal somente em seus fundamentos formais. Na prática, ele era instrumento da dominação patrimonialista”. E: “A autonomização política e a burocratização da dominação patrimonialista imprimiriam à produção e à exportação as funções de processos sociais de acumulação estamental de capital”. E diz FHC: “Para Florestan o liberalismo – ontem como hoje bête noire dos ideólogos de esquerda – ‘concorreu para revolucionar o horizonte cultural das elites nativas’ e deu substância aos processos de modernização”. Quando, nos capítulos finais, Florestan vira para o marxismo, FHC enfatiza que a análise destaca as peculiaridades do capitalismo cujo impulso dinâmico vem de fora, um capitalismo dependente, como o descrito por quem, por quem? Por FHC.
Seria fácil dizer que FHC dá uma boa Efeagacizada no Florestan, e há algo disso aí, mas, tanto quanto eu entendo de Florestan, a interpretação é pertinente: os dois autores têm mesmo muito em comum (ao menos na reflexão sobre o capitalismo brasileiro; Florestan discutiu muitos outros temas), embora politicamente tenham divergido (Florestan continuou socialista até o fim) e tivessem estilos acadêmicos bem diversos. Não é fora de propósito associar uma certa nostalgia por uma revolução burguesa digna do nome (nostalgia que, aliás, Marx teve com relação à Alemanha por muito tempo) com o capitalismo dependente e, naturalmente, com a discussão sobre o patrimonialismo. A leitura que FHC faz de Florestan não é a única possível, mas é certamente uma das possíveis.
A propósito, nos anos 70, quando, provavelmente não por acaso (deve haver alguma correlação entre ter controle absoluto do Estado e apoiar o controle estatal da economia, não?), a ditadura militar que começou economicamente liberal se torna estatista, essa convergência de agendas teóricas pareceu especialmente plausível. Em Autoritarismo e Democratização, de 1975 (talvez o melhor livro de FHC, em que pese o caráter datado de algumas discussões), ele nota que Faoro voltava à moda porque o capitalismo brasileiro se tornava fortemente estatista. Se tiverem tempo, antes de ler o Lazzarini, leiam os últimos capítulos desse livro. A teoria da dependência versão FHC (tem várias) foi, em parte, um encontro de Caio Prado/Futado com SBH/Faoro na hora em que o governo militar montava o desenvolvimento em cima de capital estrangeiro mais investimento estatal.
A crítica possível é que FHC pode, nos textos mais recentes, ter super-corrigido o modelo marxista na direção weberiana, em prejuízo dos temas classicamente marxistas (que, naturalmente, poderiam ser trabalhados de outras perspectivas) da inserção no capitalismo internacional e das alianças de classe. Mesmo nos anos 70, FHC já fazia aos weberianos a crítica — hoje apresentada, por exemplo, por Jessé de Souza — de que não dá pra discutir a herança patrimonialista sem lembrar que o fato central de nossa história (Nabuco de novo) foi a escravidão e sua obra. A graça seria desmontar o patrimonialismo sem tirar do Estado a capacidade de inserir os pobres na sociedade moderna nem de mediar nossa inserção na economia global. O FHC dos anos 70 talvez tivesse mais a dizer sobre isso. Por outro lado, nos anos 70 a participação de FHC no debate sobre o patrimonialismo foi só escrever livros.
Talvez tenha parecido à geração de FHC que o país já estava formado, mas a globalização coloca para as novas gerações tarefas que implicam em desformar e reformar. O debate sobre a formação continua. E, se você acha que no Brasil não há debates interessantes, deveria ler livros mais difíceis.
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