quinta-feira, 28 de novembro de 2013

A nova onda de controle de preços na América Latina

A nova onda de controle de preços na América Latina


cristina-kirchner-rafael-correa-y-hugo-chavez.jpgArgentina e Venezuela adotaram com vigor um infeliz, embora bastante familiar, modismo econômico que recorrentemente arrebata a América Latina — o controle de preços.  Para piorar, até mesmo o Equador parece ter resolvido entrar na dança.
Em uma desatinada tentativa de "suprimir" a acentuada inflação de preços, os governos destes países estão recorrendo à milenarmente fracassada prática de fixar preços a níveis artificialmente baixos.  Como qualquer economista digno de sua formação sabe perfeitamente, isso irá gerar apenas escassez.
Venezuela
Na Venezuela, o governo determina o preço de vários bens de consumo, inclusive o da gasolina, cujo valor está congelado em US$0,058 por galão [o equivalente a R$0,03 por litro].  Como mostra o gráfico, cuja fonte é o próprio Banco Central da Venezuela, 20,4% de todos os bens de consumo da economia simplesmente sumiram das lojas e supermercados.
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Embora o congelamento mantenha os preços dos bens em níveis ostensivamente baixos no mercado oficial, eles inevitavelmente geram prateleiras vazias, privando vários consumidores de ter acesso a bens essenciais (falta até papel higiênico na Venezuela).
Isso, por sua vez, produz uma inflação "reprimida" — por causa do controle de preços, a "verdadeira" taxa de inflação de preços é artificialmente contida, quando não reprimida por meio de intervenções estatais de estilo soviético. 
O gráfico abaixo mostra a evolução da taxa de câmbio da moeda venezuelana, o bolívar fuerte, no mercado negro.  Em fevereiro, ainda antes da morte de Hugo Chávez, o bolívar perdeu 21,72% do seu valor em relação ao dólar no mercado negro (ou seja, no livre mercado).  Essa desvalorização se acelerou após o anúncio da morte de Chávez [linha preta vertical].
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Pouco antes de sua morte, o governo Chávez reconheceu que o bolívar estava em apuros e oficialmentedesvalorizou a moeda em 32%, fazendo com que a taxa de câmbio oficial saísse de 4,29 para 6,29 bolívares por dólar.  Porém, a esse valor, o bolívar ainda está sobrevalorizado em 74% se levarmos em conta o valor da taxa de câmbio da moeda no livre mercado.
Como mostra o gráfico abaixo, desde 2005, a taxa de câmbio do bolívar em relação ao dólar no mercado negro vem divergindo crescentemente da taxa de câmbio oficial.
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Linha vermelha: taxa de câmbio oficial; linha azul: taxa de câmbio no mercado negro
Dado que esse mensurador — alterações na taxa de câmbio do bolívar em relação ao dólar no mercado negro — é o que melhor estima o real valor de uma moeda, é possível inferir que a inflação de preços "reprimida" na Venezuela está atualmente em 153%.
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Linha vermelha: inflação divulgada pelo governo; Linha azul: inflação implícita estimada pela desvalorização do bolívar frente ao dólar no mercado negro
A desvalorização simbólica feita pelo governo venezuelano em fevereiro foi a sétima desvalorização oficial do bolívar sob Chávez, o que mostra que o governo está jogando um jogo já perdido.
É possível a Venezuela evitar uma crise monetária gerada pelo colapso de sua moeda?  Sim, e de maneira relativamente simples: substituindo o bolívar pelo dólar.  Essa opção, conhecida como dolarização, foi a que sugeri ao então presidente Rafael Caldera quando eu era seu conselheiro em 1995.  E foi a solução adotada de maneira amplamente bem-sucedida pelo Equador, país em que fui conselheiro do ministro da economia e das finanças.
Equador
Após uma longa e turbulenta história de moedas ruins, o Equador abandonou o Sucre em 2000 e o substituiu pelo dólar.  Desde então, a inflação de preços vem se mantendo em níveis excepcionalmente baixos para um país latino-americano.
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Com a exceção de 2008 (8,83%) e 2011 (5,41%), a inflação de preços sempre se manteve abaixo dos 4%.  Não é de se espantar, portanto, que a dolarização tenha atingido uma aprovação de 82% da população equatoriana.
Embora o presidente Rafael Correa, eleito em 2007, seja um adepto da Revolução Bolivariana chavista, ele sabiamente manteve o dólar como a moeda do país.  O dólar forneceu uma forte âncora para a economia equatoriana (e para o governo Correa), e conseguiu proteger o país dos males econômicos que afligem vários de seus vizinhos.
É justamente este histórico que torna incompreensível sua recém-anunciada decisão de implementar, a partir de maio, controles de preços em 46 produtos alimentícios.  A inflação de preços em 2012 foi de 4,16%.  Já em março deste ano, o valor acumulado em 12 meses caiu para 3%, a menor taxa em 2 anos.  No entanto, os preços dos alimentos subiram 0,77% no mês (após ter caído 0,15% em fevereiro), o que já incitou os burocratas a anunciarem um controle de preços.
É de se esperar que o governo se dê conta desta insensatez e abandone qualquer ideia de inovar neste seara.
Argentina
A Argentina, país que nunca se cansa de tentar reinventar as leis econômicas, vem vivenciando o mesmo dilema da Venezuela. Os preços da gasolina e dos bens nos supermercados estão congelados.  Segundo o governo, a inflação de preços é de 10% ao ano.  Mas nenhum argentino acredita nisso.  Estatísticas independentes afirmam que a inflação de preços está na casa dos 30% ao ano.  No mercado negro, o valor do dólar é 60% maior do que o câmbio oficial, controlado pelo governo.  Isso coloca a inflação de preços implícita da Argentina em mais de 70%.
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Linha vermelha: inflação divulgada pelo governo; Linha azul: inflação implícita estimada pela desvalorização do peso frente ao dólar no mercado negro
Os argentinos praticamente não poupam seus pesos.  Assim que eles recebem pesos, eles gastam para se livrar deles.  Segundo estimativas de 2010, mais de 50% das famílias argentinas não utilizam o sistema bancário, certamente traumatizadas pelo corralito de 2001/2002.  Elas poupam em dólares e guardam este dinheiro ou dentro de casa ou em bancos no exterior.
Justamente por isso, o governo argentino está fechando o cerco, dificultando ao máximo a compra de dólares.  Quem é pêgo transacionando dólares nas ruas pode ir preso.  Isso empurrou as operações literalmente para o subterrâneo.
De acordo com o The Wall Street Journal, compradores e vendedores de dólares estão se encontrando em "cuevas" escuras, geralmente locais escondidos nos fundos dos estabelecimentos, para fazer suas transações.
O mercado de câmbio na Argentina foi para o subterrâneo.  Com o governo restringindo cada vez mais o acesso a moedas estrangeiras, os argentinos em busca de dólares, uma mercadoria cada vez mais rara, estão sendo empurrados para cuevas — operações clandestinas, realizadas nos fundos escuros de estabelecimentos, nas quais o cliente paga caro para trocar pesos por dólares.
Comprar dólares para poupar é uma atividade proibida pelo governo argentino, e as autoridades permitem a venda de apenas pequenas quantias de moeda estrangeira para viagens ao exterior.  Para obter tais divisas, os viajantes têm de enviar pela internet um pedido à Receita Federal dias antes de sair do país, e eles normalmente recebem autorização para comprar uma quantia muito menor do que pediram.
As empresas têm de ter aprovação do governo para importar equipamentos e materiais à taxa de câmbio oficial, mais barata.  A Receita Federal trabalha com cachorros nos postos alfandegários para farejar pessoas que estejam viajando com dólares escondidos e não-declarados.
Na Argentina, quem tem dólares quer pagar por bens e serviços em pesos.  Mas só se conseguirem converter dólares em pesos ao câmbio de mercado negro.  Caso contrário, será melhor pagar em dólares, mas só se o comerciante estiver disposto a aceitar converter seus preços em dólares à taxa de livre mercado.  Normalmente, chega-se a um valor de meio termo.  Ou seja, a Argentina está praticamente em um estado de escambo.
Conclusão
Além da escassez e da inflação reprimida, controles de preços podem levar a consequências políticas não imaginadas.  Uma vez que os controles de preços são implementados, é muito difícil revogá-los sem que isso gere inquietação popular — veja os distúrbios que ocorreram em 1989 na Venezuela, quando o presidente Carlos Perez tentou abolir o congelamento de preços.
Com o fim do boom no setor de commodities, as economias populistas da América Latina tendem a sofrer.  A próxima rodada de revoluções não será bonita.
Uma visita à Argentina e à Venezuela equivale a um Ph.D. em catástrofes monetárias e incompetência econômica.  É um ótimo exemplo prático de como os políticos podem realmente destruir uma economia quando se esforçam para tal.

Cambalache - a história do colapso econômico da Argentina

Cambalache - a história do colapso econômico da Argentina
80197-manifestacion-argentina.jpgÀ exceção daquelas nações que adotaram o comunismo, é difícil encontrar um exemplo de país cuja economia tenha sido mais espetacularmente destruída pelo seu governo do que a Argentina.
No início do século XX, a Argentina era o 10º país mais rico do mundo em termos per capita.  Reza a lenda que, naquela época, a expressão "tão rico quanto um argentino" era comum e frequentemente utilizada por aristocratas britânicos que tentavam casar suas filhas com argentinos ricos.  Entre 1860 e 1930, o país enriqueceu acentuadamente em decorrência, entre outras coisas, da exploração das férteis terras dos pampas.  Os investimentos estrangeiros eram livres e diversificados, oriundos da França, da Alemanha, da Bélgica e, majoritariamente, da Grã-Bretanha.  Indústrias e ferrovias foram construídas com capital estrangeiro.  Os altos salários atraíram vários imigrantes, principalmente italianos, espanhóis, alemães e franceses.  Em 1899, após algumas décadas de instabilidade financeira e bancária, o país retornou ao padrão-ouro e, durante 14 anos, cresceu a uma taxa anual de 7,7%.
Durante as três primeiras décadas do século XX, a Argentina ultrapassou o Canadá e a Austrália não somente em termos de população, mas também em termos de renda total e renda per capita.  Nesta época, a famosa loja de departamentos Harrods, de Londres, abriu uma filial em Buenos Aires, sua única filial em todo o mundo
A partir de 1930, no entanto, a coisa começou a degringolar.  Em termos macroeconômicos, a Argentina era, até então, um dos mais estáveis e sólidos países do mundo.  Mas o advento da Grande Depressão nos EUA, que afetou seriamente o comércio mundial — e as exportações argentinas —, alterou este equilíbrio.  Instabilidades políticas levaram a um golpe militar em 1930.  De 1930 até os anos 1980, houve uma sequência de governos populistas e juntas militares que se revezavam no poder.  Estes sucessivos governos, capitaneados pelas teorias de Raúl Prebisch, adotaram uma série de políticas protecionistas e de substituição de importações com o objetivo de alcançar a quimera da 'autossuficiência', um devaneio que ainda hoje excita praticamente todos os desenvolvimentistas (muitos deles estão em Brasília). 
Oficialmente, esse experimento protecionista terminou em 1976, quando uma junta militar sob o comando de Jorge Rafael Videla decidiu abrir um pouco a economia.  Obviamente, acostumadas a décadas de protecionismo, várias indústrias argentinas sucumbiram perante a concorrência externa, o que fez com que o governo assumisse suas dívidas.  Em paralelo a este setor industrial ineficiente, os gastos governamentais em total descontrole (financiados pela simples impressão de dinheiro) e várias medidas populistas de aumentos salariais levaram a uma crônica inflação de preços, que chegou a 800% ao ano.
Alguns anos depois, em 1982, um cavalheiro chamado Leopoldo Galtieri teve a brilhante ideia de desviar a atenção dos problemas econômicos invadindo as ilhas Falkland (Las Malvinas para os argentinos), o que jogou o país em guerra contra os britânicos.  Tal esforço de guerra, além de vidas humanas, serviu apenas para aumentar o endividamento do governo argentino e, consequentemente, a inflação monetária para financiar este endividamento.  Humilhada pela derrota, a ditadura militar terminou em dezembro de 1983, com a eleição de Raúl Alfonsín.  Veja o histórico inflacionário deste último período militar (a menor inflação anual foi de 82%, em fevereiro de 1981).
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Gráfico 1: Taxa de inflação de preços anual, 1976-1983
Em decorrência desta escalada inflacionária, o governo Alfonsín criou, em junho de 1985, uma nova moeda, o austral (a primeira moeda argentina que não tinha o peso em seu nome).  Mas a criação da nova moeda — plano este, aliás, que serviu de inspiração ao Plano Cruzado — foi feita daquela maneira tipicamente heterodoxa: o governo simplesmente cortou zeros, congelou preços das tarifas públicas e da cesta básica, e controlou rigidamente os salários do setor privado.  No primeiro momento, exatamente como também ocorreu com o Plano Cruzado, os preços ficaram sob controle e a popularidade do governo disparou. 
Na melhor fase do plano, a inflação de preços ficou em "apenas" 50% ao ano.  Porém, e obviamente, o governo em momento algum abriu mão de continuar imprimindo dinheiro e, assim que os preços começaram a ser descongelados, tudo voltou a ser como era antes.  Para complicar, como o governo havia contraído várias dívidas perante o FMI, ele também recorria à impressão de austrais para comprar dólares. 
O resultado desta vez não foi apenas uma típica inflação latino-americana, mas sim uma hiperinflação que chegou a 200% ao mês (julho de 1989) e encerrou o ano totalizando 5.000%.  Quando os preços dos serviços de utilidade pública dispararam e os argentinos foram para as ruas saquear supermercados (maio e junho de 1989), Alfonsín renunciou.
Eis o resultado da inflação de preços deste período:
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Gráfico 2: taxa de inflação de preços anual, 1984-1989

A era Menem
Reformas
Eleito para assumir o poder dezembro de 1989, a posse de Carlos Menem foi antecipada para julho por causa da baderna em que estava o país.  Quando Menem assumiu a presidência, os gastos públicos estavam em 36% do PIB e o déficit orçamentário do governo era de 7,6% do PIB.
Em 17 de agosto de 1989, foi aprovada a Ley de Reforma del Estado, que deu a Menem a autoridade para efetuar várias reformas econômicas que ajudassem a acabar com a hiperinflação.  As principais reformas foram o descongelamento seguido da liberdade de preços, a abertura da economia ao comércio internacional, aos investimentos estrangeiros e ao fluxo de capitais, a reorganização do sistema tributário, a redução da burocracia e a privatização de várias estatais — a telefônica Entel, a companhia aérea Aerolíneas Argentinas, vários trechos rodoviários, vários canais de televisão, algumas redes ferroviárias, a petrolífera YPF (Yacimientos Petrolíferos Fiscales, cuja privatização só foi completada em 1999), e a empresa de gás natural Gas del Estado. 
Como de praxe, várias privatizações foram feitas às pressas — pois o governo estava desesperado por recursos —, o que gerou vários esquemas de favorecimento, irregularidades e corrupção. 
Após chegar ao insano valor anual de 20.000% em março de 1990, a inflação terminou o ano em 1.344%
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Gráfico 3: taxa de inflação de preços anual, 1990
Mas foi em abril de 1991 — sob o comando do ministro da economia Domingo Cavallo — que a principal e decisiva medida econômica foi adotada: a reforma monetária que culminaria na substituição do austral pelo peso.  Mas o peso não seria uma nova moeda qualquer: ele seria inflexivelmente igual a um dólar, valor este irrevogável e fixado por lei.  Esse regime monetário argentino passou a ser chamado de regime de conversibilidade.
O programa de conversibilidade foi implantado em duas etapas.  Na primeira etapa, em abril de 1991, o Banco Central argentino passou a funcionar como se fosse um Currency Board
Currency Board
Para o leigo, o termo soa esquisito, mas realmente não existe tradução definitiva para o português.  Alguns traduzem como Caixa de Conversão ou Agência de Conversão; outros traduzem como Conselho da Moeda.
Apesar da ausência de um termo nacional, um Currency Board é um dos arranjos monetários mais antigos e tradicionais do mundo, perdendo apenas para o padrão-ouro.  Aliás, era comum que o país que adotasse o padrão-ouro o fizesse por meio de um Currency Board.  O Brasil operou um Currency Board no início do século XX, durante um de nossos efêmeros experimentos com o padrão-ouro.  O padrão-ouro da Argentina, que durou até 1929, também se deu sob um Currency Board. 
Hong Kong opera um Currency Board desde 1983.  Vários outros pequenos países utilizam exitosamente um Currency Board, entre eles Lituânia, Bulgária, Bósnia e Herzegovina, as Ilhas Fakland, Gibraltar e Santa Helena.  A Estônia operou um Currency Board de 1992 até janeiro de 2011, quando resolveu adotar integralmente o euro.
O princípio de operação de um Currency Board é bastante simples e, quando obedecido ortodoxamente, muito eficaz.  O Currency Board é o arranjo que se implementa quando se quer adotar uma genuína "âncora cambial", o que faz com que a moeda de um país se torne um mero substituto de uma moeda estrangeira.  A única função de um Currency Board é trocar moeda nacional (que ele próprio emite) por moeda estrangeira, e vice versa, a uma taxa fixa
No caso específico da Argentina, o Currency Board tinha a função de trocar, sem custo e sem demora, 1 peso por 1 dólar e 1 dólar por 1 peso.  Para cada dólar que entrasse no país, o Currency Board emitiria um peso argentino em troca desse dólar.  A operação inversa ocorreria no caso de uma saída de dólar (peso argentino seria entregue ao Currency Board que, em troca, enviaria o dólar para o destinatário estrangeiro). 
Ao agir assim, a taxa de câmbio está irremediavelmente fixa.  Se você quisesse vender 1 dólar por um valor maior do que 1 peso para outra pessoa, esta preferiria simplesmente ir ao Currency Board e lá trocaria 1 peso por 1 dólar.  Ou seja, tal artifício é totalmente eficaz em realmente fixar a taxa de câmbio.
Neste sistema, como a moeda nacional está totalmente atrelada a uma moeda estrangeira, a variação da base monetária nacional se dá estritamente de acordo com o saldo do balanço de pagamentos (saldo da quantidade de moeda estrangeira que entra e sai da economia nacional). 
Em sua forma ortodoxa, este sistema não permite a existência de um Banco Central, pois não deve haver nenhuma política monetária.  Trata-se de um sistema monetário totalmente passivo, em que a base monetária do país varia estritamente de acordo com as reservas internacionais.
Sendo assim, dado que a base monetária do país não pode ser maior do que a quantidade de reservas internacionais (no caso argentino, o dólar), ela varia de acordo com a quantidade de moeda estrangeira que entra e sai da economia em decorrência das transações internacionais do país.  Quando há um superávit nas transações internacionais, a base monetária doméstica aumenta; quando há um déficit, diminui. 
Em tese, como a quantidade de dólares nas reservas internacionais é, por definição, igual ou superior à base monetária, é impossível haver qualquer ataque especulativo, pois seria impossível exaurir as reservas internacionais (a base monetária teria de ser toda mandada pra fora, algo por definição impossível).  Essa é a principal atratividade do sistema: ele dá segurança aos investidores estrangeiros, que deixam de temer uma súbita desvalorização da moeda nacional, o que causaria enorme prejuízo para eles quando fossem repatriar seus lucros.
Outra característica do Currency Board que ajuda a aumentar a confiança do investidor estrangeiro é o fato de que, ao contrário de um Banco Central convencional, um Currency Board não pode imprimir dinheiro à vontade; ele só imprime moeda nacional se receber um valor equivalente em moeda estrangeira.  Logo, um Currency Board não pode comprar ativos nacionais e nem títulos do governo; ele não faz política monetária.  Sendo assim, o governo não pode se financiar por meio da inflação monetária.  Isso obriga o governo a evitar déficits e a manter um orçamento equilibrado (caso contrário, ele terá de aumentar impostos ou se endividar, o que levaria a um aumento dos juros em toda a economia).
No entanto, ao mesmo tempo em que um Currency Board é extremamente eficiente quando implantando ortodoxamente, ele cobra severas punições quando seus pré-requisitos operacionais são desobedecidos.  E foi isso que a Argentina descobriu.
A reforma monetária
O primeiro passo da Argentina, portanto, foi fazer o seu Banco Central operar como se fosse um Currency Board.
No dia 1º abril de 1991, o Banco Central da Argentina fixou a taxa de câmbio no valor de 10.000 austrais por dólar (essa era a taxa de câmbio do dia).  A partir daí, comprometeu-se a operar sob os mesmos princípios de um Currency Board: ele iria emitir austrais estritamente de acordo com o ingresso de dólares.  Para cada dólar que entrasse no país e fosse para as reservas internacionais, 10.000 austrais seriam emitidos.  Para cada dólar que saísse, 10.000 austrais seriam recolhidos.  (Veja o vídeo do anúncio feito por Cavallo, a partir do minuto 7:37).
Simultaneamente, o dólar passou a ser aceito como moeda corrente.  Os argentinos agora tinham liberdade de transacionar livremente em dólares, e de livremente trocar austrais por dólares.  Na prática, havia duas moedas oficiais na Argentina. 
No dia 1º de janeiro de 1992, o austral foi abolido e em seu lugar entrou o peso conversível.  Cada 10.000 austrais foram convertidos em 1 peso, que valia exatamente 1 dólar.
Pronto, a reforma monetária estava completa.  De agora em diante, o Banco Central da Argentina se comprometia a trocar peso por dólar e dólar por peso a uma taxa de 1:1, sem restrições e sem demora.  Se os argentinos quisessem manter mais dólares do que pesos, eles simplesmente trocariam seus pesos por dólares.  Similarmente, se quisessem portar mais pesos, eles trocariam seus dólares por pesos.  O efeito dessa regra era garantir tanto aos residentes quanto aos investidores estrangeiros que não havia risco nenhum de se utilizar tanto uma moeda quanto outra.  Não haveria risco de uma desvalorização súbita. 
Os argentinos podiam manter contas bancárias tanto em peso quanto em dólares, e os bancos faziam empréstimos tanto em peso quanto em dólares.
As consequências iniciais
Inicialmente, tanto o Banco Central argentino quanto o governo seguiram à risca a ortodoxia.  O BC de fato imprimia dinheiro estritamente de acordo com a variação de reservas internacionais, e o governo — agora sem poder se utilizar da inflação monetária — reduziu drasticamente seus déficits.
A inflação de preços, que havia sido de 1.344% em 1990, caiu para 84% em 1991, para 17,5% em 1992, para 7,4% em 1993, para 3,9% em 1994, para 1,6% em 1995 e, de 1996 até o final de 2001, a média foi de praticamente 0%.
Para um país que havia se acostumado a ter uma inflação de preços média maior do que 250% de 1970 até 1990, e que havia vivenciado valores de até 20.000% em 1990, a queda de preços foi extremamente rápida.
Já o governo conseguiu baixar o gasto público de 35,6% do PIB em 1989 para 27% do PIB em 1995.  Igualmente, o déficit fiscal saiu de 7,6% do PIB em 1989 para 2,3% em 1990 e, de 1991 até o final de 1994, ficou próximo de 0%.
As reservas internacionais, por sua vez, que estavam 3,81 bilhões no final de 1989, foram para 17,93 bilhões ao final de 1994.
O principal efeito desta política de abolição da inflação e de redução do estado foi a perceptível queda nos índices de pobreza.  Em outubro de 1989, o percentual de pessoas abaixo da linha de pobreza em Buenos Aires e adjacências era de 47,3%.  Em maio de 1994, tal valor já havia caído para 16,1%.
A crise do México de dezembro de 1994
As coisas vinham muito bem para a Argentina desde abril de 1991.  A economia estava crescendo robustamente e os preços eram invejavelmente estáveis.
Só que, em dezembro de 1994, a economia do México — cujo Banco Central adotava um sistema cambial heterodoxo, no qual a cotação do câmbio era diariamente manipulada — sofreu um ataque especulativo.  O governo desvalorizou subitamente o peso mexicano.  Essa súbita desvalorização gerou pânico nos investidores ao redor de todo o mundo, os quais, temerosos de terem seus investimentos desvalorizados, começaram a retirar seus capitais dos países emergentes.  (Esse fenômeno ficou conhecido como Efeito Tequila, e teve repercussões nos países emergentes, especialmente no Brasil.)
A Argentina não ficou imune, e um volume substantivo de capital estrangeiro foi retirado do país.  Os gráficos abaixo ilustram perfeitamente este momento.  Observe a retração sofrida pela base monetária em 1995.  Essa retração ocorre justamente porque pesos estavam sendo trocados por dólares para ser enviados ao exterior. 
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Gráfico 4: evolução da base monetária, 04/1991—12/1995
No entanto, o M1 e o M2 se alteram muito pouco, quase nada.  Isso porque, como os bancos praticam reservas fracionárias e podem criar moeda do nada, uma retração da base monetária não significa necessariamente uma redução na quantidade de dinheiro na economia.  Embora as reservas fracionadas sejam previstas pelo Currency Board (que não se opõe a elas), tal prática pode gerar grandes distúrbios, pois quanto maior o volume de moeda sem lastro em reservas internacionais, maiores as chances de um ataque especulativo para se tentar desvalorizar o câmbio.
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Gráfico 5: evolução do M1 (papel-moeda em poder do público mais depósitos em conta-corrente), 04/1991—12/1995
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Gráfico 6: evolução do M2 (M1+depósitos a prazo), 04/1991—12/1995
Essa fuga de capitais gerou um acentuado aumento dos juros no mercado interbancário.
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Gráfico 7: juros do mercado interbancário, 1993-1995
O crédito encareceu.  O país entrou em recessão e o desemprego subiu.  A recessão diminuiu as receitas tributárias do governo; o aumento do desemprego aumentou os gastos sociais do governo.  A consequência inevitável desta redução na receita e deste aumento nos gastos foi que o governo voltou a apresentar déficits orçamentários.  E estes nunca mais voltariam a ser zero — o que significa que sua dívida não mais pararia de subir.
Anos 1996-1999: calmaria no início, pânico no fim
A economia permaneceu em recessão durante todo o ano de 1995, mas voltou a se recuperar em 1996.  O problema é que o desequilíbrio continuou vindo do estado.
Em janeiro de 1991, quando Cavallo assumiu o Ministério da Economia, a dívida pública era de US$61,4 bilhões.  Em dezembro de 1995, ela já estava em US$87 bilhões.  E em agosto de 1996, quando ele foi substituído por Roque Fernández, a dívida já estava em US$90,5 bilhões.  E terminaria aquele ano em US$97 bilhões.
O problema do endividamento é que, quanto maior a dívida, maior o volume gasto com juros.  E quanto mais se gasta com juros, maior é o déficit fiscal.  E quanto maior o déficit fiscal, maior é a emissão de títulos da dívida para cobrir o déficit, o que aumenta o endividamento e reinicia o ciclo vicioso.
Não obstante essa explosão do endividamento do governo, a economia seguia estável e com inflação zero.  Após o susto de 1995, as reservas internacionais já haviam voltado a subir.
No segundo semestre de 1997, ocorreu a crise asiática, um tsunami que gerou fuga de capitais ao redor do mundo e súbitas desvalorizações no baht tailandês, no novo dólar taiwanês, na rúpia indonésia, no ringgit malaio, no won sul-coreano, no peso filipino e no dólar cingapuriano.  O dólar de Hong Kong, que opera sob um Currency Board, conseguiu manter sua taxa de câmbio intacta.  A Argentina, nesta crise específica, sofreu pouco.
Em agosto de 1998, a situação começou a ficar ruim.  A Rússia entrou em crise financeira e o governo russo anunciou uma forte desvalorização do rublo seguida de uma moratória.  Adicionalmente, a retomada dos confrontos na Chechênia e o início de uma nova guerra entre os separatistas e o governo russo pioraram ainda mais o humor dos investidores estrangeiros, que ainda estavam abalados pela crise asiática.  Houve uma nova rodada de fuga de capitais.  Na Argentina, por causa desta fuga, os juros do mercado interbancário sobem e o crédito se torna mais restringido.  Como consequência, o país entra em recessão em setembro de 1998 e o desemprego aumenta.
A situação se agrava em 1999.  Com a forte depreciação do real e de várias outras moedas, as importações de produtos argentinos por estes países caem.  Não bastasse a queda nas exportações argentinas, os preços dos produtos primários também caem fortemente no mercado mundial.  Como consequência, o setor exportador argentino encolhe.  (No entanto, ao contrário do que é dito, as importações de produtos estrangeiros pelos argentinos também diminuem, por causa da recessão.  Não foi um aumento nas importações, portanto, o que atrapalhou as empresas argentinas).
Para piorar, os gastos do governo continuam subindo e as receitas, por causa da recessão, se tornam menores que as de 1998.  A dívida pública vai adquirindo uma proporção de insustentabilidade, já em US$118 bilhões, o que dava 50% do PIB (era de 29,5% em 1993).  Os juros, por causa do endividamento do governo, continuam em ascensão, assim como o risco-país. 
Havia um temor de que o governo desvalorizasse a moeda para estimular as exportações e, com isso, melhorar a situação do setor exportador e, de quebra, melhorar as próprias receitas do governo.  Para conter essas especulações, Menem anunciou que tinha a intenção de dolarizar forçosamente toda a economia.  A dolarização seria uma maneira de aprofundar o regime de conversibilidade, e eliminaria totalmente as incertezas acerca do regime de câmbio fixo.  Houvesse uma dolarização, os ataques especulativos contra o peso seriam eliminados.
No entanto, não houve a dolarização.
Como 1999 era um ano de eleições presidenciais, todos os candidatos (Menem, Fernando De la Rúa e Eduardo Duhalde) se puseram a defender o atual regime cambial, jurando que não tocariam nele, justamente para evitar ataques especulativos.
Em dezembro de 1999, Fernando De la Rúa assume a presidência.  Após 10 anos no poder, Menem foi derrubado por causa da economia em recessão desde setembro 1998 e do desemprego em ascensão.
Com De la Rúa, a tragédia
Anatomia de um caos
No dia 1º de janeiro de 2000, o governo De la Rúa, por meio do novo Ministro da Economia, José Luis Machinea, anuncia um pacote fiscal de aumento de impostos.  Inicialmente, os impostos incidiriam sobre ganhos de capital. 
Em março de 2000, no entanto, o estouro da bolha tecnológica nos EUA (das empresas pontocom) gera nova fuga de capitais, e os juros do mercado interbancário voltam a subir.  Isso agrava a recessão, reduz as receitas previstas pelo governo e aumentam o déficit fiscal, dando sequência àquele antigo círculo vicioso: o aumento dos juros aumentava os gastos do governo com o serviço de sua dívida.  Quanto maior era esse gasto, maior se tornava o déficit fiscal, o que levava a um aumento do endividamento e a um novo aumento dos gastos com juros.
No final, o aumento previsto nas receitas não se concretiza, e elas terminam o ano de 2000 em um valor praticamente idêntico ao de dois anos atrás.
Tudo isso aumenta ainda mais as incertezas sobre a capacidade do país de continuar honrando suas dívidas (boa parte dela nas mãos de credores internacionais) e sobre sua intenção de continuar no regime de paridade cambial.  Para piorar, em outubro de 2000, o vice-presidente Carlos Álvarez renuncia ao cargo dizendo não se conformar com o volume de corrupção que estava acontecendo dentro do governo.  Isso desencadeia uma crise institucional, abalando em definitivo a pouca confiança que ainda restava no regime.  Ainda em outubro, os próprios argentinos começaram a retirar seu dinheiro dos bancos, muitos deles mandando dólares para fora do país.  Naquele mês, 789 milhões de pesos/dólares foram retirados dos bancos.  Em novembro, mais de 1 bilhão.  Os juros do interbancário disparam.  A confiança havia ruído em definitivo.
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Gráfico 8: juros do mercado interbancário, 1998-2000
Para conter essa fuga, o FMI anuncia um pacote de empréstimos de US$40 bilhões para a Argentina repor suas reservas internacionais.  Em troca do pacote, o Fundo pedia corte de gastos e aumento de impostos.
Essa injeção de dólares conseguiu conter a fuga de depósitos, mas somente até março de 2001.  Logo no início daquele mês, no dia 2, o Ministro da Economia José Luis Machinea renuncia ao cargo. 
No dia 4, Ricardo López Murphy, economista formado pela Universidade de Chicago, é nomeado e imediatamenteanuncia seu programa de ajuste fiscal, o qual seria o melhor de todos: não haveria aumento de impostos, mas sim um profundo corte de gastos de 2 bilhões de pesos, inclusive para as áreas de saúde e educação.  Haveria também várias privatizações, inclusive da Casa da Moeda.
Obviamente, o anúncio de medidas tão "drásticas" gerou forte reação popular.  Vários membros do governo, contrários à nomeação de López Murphy, renunciam em protesto às suas medidas.  Sem apoio, López Murphy renuncia ao cargo no dia 19 de março, apenas 15 dias após ter sido nomeado.
Toda essa baderna faz com que a fuga de depósitos bancários recomece, e agora com renovada intensidade: apenas em março, mais 5,5 bilhões de pesos/dólares são sacados dos bancos argentinos, até então a maior saída mensal de dinheiro do sistema bancário da história do país.
Desesperado, Fernando De la Rúa oferece o cargo de Ministro da Economia a um velho conhecido dos argentinos: no dia 20 de março, Domingo Cavallo, que agora era considerado o único com alguma autoridade moral para reconduzir o país à tranquilidade econômica, assume o cargo que havia abandonado em agosto de 1996.
Sua primeira medida, anunciada em 21 de março: aumentar as tarifas de importação e impor uma alíquota sobre transações financeira. 
Mas foi no dia 17 de abril de 2001 que o regime de conversibilidade, o qual o próprio Cavallo havia ajudado a implantar, sofreu um duro golpe que abalou fortemente a sua credibilidade.  Cavallo enviou um projeto de lei ao Congresso para alterar a âncora do peso.  Em vez de apenas em dólar, a âncora agora seria em relação a uma cesta formada por dólar e euro, na proporção de 50% para cada.  Neste arranjo, o peso flutuaria dentro de uma banda definida pelo valor do dólar e do euro.  Se o euro estivesse valendo menos que o dólar (como estava na época), o peso se desvalorizaria até ficar em paridade com o euro.  Se o euro passasse a valer mais que o dólar, o peso voltaria a ficar em paridade com o dólar.  A intenção deste arranjo era o de sempre: estimular as exportações.  (Tal lei viria a ser promulgada em junho).
Ainda em abril, o presidente do Banco Central, Pedro Pou, formado em Chicago, que havia defendido a total dolarização da economia e que estava no cargo desde agosto de 1996, é substituído por Roque Maccarone, um sujeito tido como mais "flexível".
Em junho, o regime de conversibilidade é definitivamente abolido.  No dia 15, Cavallo anuncia que, a partir dali, o governo adotará um regime de câmbio preferencial para as exportações — o que na prática significava que agora o câmbio teria duas taxas paralelas.  No dia 25 de junho, é aprovada a lei que altera a âncora cambial para a cesta de dólar e euro.
Ambas essas medidas eram totalmente contrárias ao funcionamento de um regime de conversibilidade e à ortodoxia de um Currency Board.  As medidas de Cavallo deixaram óbvio que o governo estava totalmente propenso a alterar o regime de conversibilidade, algo que poderia ocorrer a qualquer momento.  Vale lembrar que, em 1999, quando também havia incerteza, o governo Menem havia tomado a decisão contrária: não apenas reafirmou a manutenção do regime de conversibilidade, como ainda "ameaçou" aprofundá-lo com a dolarização.  Aquela certeza transmitida fez com que não houvesse fuga de capitais e nem ataques especulativos.
Já Cavallo, com esse seu ataque arbitrário aos alicerces de regime de conversibilidade, acabou com a pequena confiança que o governo ainda usufruía.  A consequência desta intervenção de Cavallo foi restringir ainda mais o mercado de crédito.  As taxas de juros para empréstimos feitos em peso disparam, pois os bancos sabiam que a qualquer momento a moeda poderia ser desvalorizada.  Como consequência, tanto o governo federal quanto os governos das províncias deixam de conseguir novos financiamentos junto aos bancos, pois estes já pressentiam que seriam caloteados. 
Em julho, três agências de classificação de risco reduzem acentuadamente a classificação da Argentina.  O prêmio de risco se torna 13 pontos percentuais acima dos juros pagos pelos títulos americanos.  Os juros no mercado interbancário se aproximam de 50%.  O governo federal não mais consegue vender títulos de sua dívida no mercado internacional.
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Gráfico 9: juros do mercado interbancário, 01/1999 — 07/2001
Sem acesso ao mercado de crédito, Cavallo anuncia um plano de déficit zero, o qual não apenas inclui um aumento da alíquota sobre transações financeiras, como ainda estipula que, dali em diante, a arrecadação de cada mês será majoritariamente utilizada para os juros da dívida.  Apenas o que sobrar será utilizado para cobrir os gastos do governo.  Salários e pensões do setor público são reduzidos em 13%.  Funcionários públicos do alto escalão, que recebiam os maiores salários, passam a ser pagos apenas em notas promissórias.  As greves pipocam pelo país e a fuga de depósitos bancários não pára.
Em outubro, há eleições para o Congresso.  O partido de De la Rúa perde vários assentos e se torna minoria. 
Em novembro, o governo apresenta um plano para fazer um swap — leia-se, adiar o pagamento e renegociar os termos — da dívida do governo, que já estava em US$132 bilhões de dólares.  Temendo agora não apenas a desvalorização iminente, mas também o colapso do sistema bancário (se o governo desse o calote na dívida, os bancos detentores de seus títulos quebrariam), os argentinos fazem uma nova corrida bancária e batem um segundo recorde de saques bancários: quase 3 bilhões de dólares são retirados dos bancos, especialmente na última semana de novembro.  Como consequência dessa nova rodada de saques, a liquidez do sistema financeiro — que opera com reservas fracionadas — desaparece completamente, o que faz com que os juros do mercado interbancário disparem a níveis sem precedentes (em um determinado dia, as taxas do interbancário chegaram a689%).  O governo, então, decide impor um limite ao valor máximo dos juros do interbancário.
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Gráfico 10: juros do mercado interbancário, 1996-2001
O colapso de dezembro de 2001
No dia 1º de dezembro, um sábado, Cavallo anuncia restrições a saques bancários e transferências para o exterior.  No dia 3, segunda-feira, o corralito entra em vigor.  Todas as contas bancárias são congeladas por 12 meses, permitindo o saque de apenas 250 pesos por semana.  A retirada de dólares é totalmente proibida.  Operações utilizando cheques e cartões de crédito e de débito podem ser feitas normalmente (pois elas não retiram dinheiro do sistema bancário, apenas transferem de um banco para o outro), mas a ausência de dinheiro físico nas ruas gera sérios e graves distúrbios.
136_1Argentina_Crisis07.jpgNo dia 5 de dezembro, o FMI anuncia que não mais irá emprestar dinheiro para a Argentina.  O risco país dispara.  Uma greve geral ocorre no dia 13 de dezembro.
Furiosos em decorrência do confisco bancário, que privou a população de seu próprio dinheiro, e com fome, os argentinos saem às ruas.  Entre os dias 16 e 18 de dezembro, ativistas e manifestantes desempregados exigem que os supermercados distribuam comida.  Perante a negativa, no dia 18 de dezembro vários supermercados e lojas de conveniência são saqueados em Buenos Aires e Rosário. 
No dia 19, nova onda de saques em toda a grande Buenos Aires.  Além de supermercados, bancos e empresas estrangeiras, normalmente americanas e europeias, são o alvo predileto.  Várias ruas de Buenos Aires são palco de incêndios.
Acuado, De la Rúa decreta estado de sítio em rede nacional (veja o vídeo) e avisa que a Polícia Federal, a Força de Segurança (Gendarmería Nacional Argentina) e a Prefectura Naval Argentina serão acionadas para conter a baderna.  Alheios às ameaças, os argentinos, logo após a transmissão do anúncio, marcham rumo à Casa Rosada para protestar batendo panelas.  Este cacerolazo ocorre simultaneamente em várias regiões do país, mostrando que a população desafiava abertamente o estado de sítio imposto pelo governo.  Na madrugada do dia 20 de dezembro, após uma manifestação frente à sua residência ser duramente reprimida, o ministro Domingo Cavallo renuncia ao cargo.
20_dic_2001.jpgJá na manhã do dia 20, os manifestantes se concentram na famosa Plaza de Mayo, não obstante a vigência do estado de sítio.  A Polícia Federal tenta violentamente controlar os protestos.  Algum tempo depois, outros grupos de manifestantes chegam e a situação sai totalmente do controle.  O mesmo cenário se repete em vários pontos do país.  Apenas na Plaza de Mayo, cinco pessoas morrem. 
No final daquele dia, De la Rúa decide renunciar.  Como a Plaza de Mayo fica diretamente em frente à Casa Rosada, e os confrontos continuavam intensos, De la Rúa não pode sair da Casa Rosada de carro.  Tem de fugir de helicóptero.  A imprensa do mundo inteiro registra a humilhante cena
No final do dia, 34 pessoas haviam morrido em todo o país em decorrência dos confrontos.  O presidente interino do Senado, Ramón Puerta, assume a presidência interina do país até que o Congresso possa nomear um novo presidente.
Abaixo, uma boa compilação das cenas (Aviso: algumas são fortes)

O trágico ano de 2002
No dia 23 de dezembro de 2001, Adolfo Rodriguez Saá, governador da província de San Luis, é nomeado presidente.  Seu mandato seria transitório e deveria durar apenas 3 meses. 
Sua primeira medida é anunciar a moratória total da dívida externa.  Tal anúncio é feito sob uma chuva de aplausos no Congresso.  Não obstante, ele decepciona vários grupos de interesse ao anunciar que a âncora cambial seria mantida.  Embora houvesse anunciado que o dinheiro confiscado dos correntistas seria integralmente liberado, tal promessa não se concretiza.
Com apenas uma semana de governo, novos distúrbios e novos panelaços voltam a acontecer nas ruas de Buenos Aires.  Alguns manifestantes conseguem entrar no Congresso e ateiam fogo em algumas mobílias.  Sem apoio partidário e cercado de protestos, Saá renuncia no dia 30 de dezembro, tendo permanecido apenas uma semana no cargo.
No dia 2 de janeiro, assume a presidência Eduardo Duhalde, que havia disputado e perdido as eleições presidenciais de 1999.  Assim como Saá, em sua fala inaugural Duhalde garante que o corralito seria revogado e que todo o dinheiro seria integralmente devolvido à população.  "... van a ser respetadas las monedas en que fueron pactados originalmente los depósitos (...) el que depositó dólares recibirá dólares...el que depositó pesos recibirá pesos."
No entanto, não apenas o corralito não é revogado, como ainda é intensificado.
No dia 6 de janeiro, o regime de conversibilidade é oficialmente revogado.  As operações de conversão monetária de 1 peso para 1 dólar são abolidas.  É delegado ao Executivo o poder de estipular a taxa de câmbio do peso em relação ao dólar e de regulamentar novos regimes cambiais.
Com a abolição da âncora cambial, o valor do dólar dispara.  No mercado negro, dólares estão sendo precificados acima de 3 pesos.  Mas o governo opta por estabelecer, arbitrariamente, uma nova taxa de câmbio: 1,40 peso por dólar. 
Ao mesmo tempo, o governo emite outro decreto dizendo que todas as dívidas privadas, de pessoas físicas e jurídicas, estão de agora em diante 'pesificadas', só que à taxa de 1:1.  Inclusive dívidas em dólares junto ao sistema bancário.  Para salvar os bancos da bancarrota, uma consequência inevitável desta manipulação cambial, o governo assume parte dessa dívida.  Credores e poupadores são dizimados.
1322664968_1.jpgPara aumentar o ultraje, ocorre em fevereiro a pesificação de todos os depósitos em dólar.  Quem ainda possuía dólares depositados nos bancos vê seus dólares serem integralmente confiscados pelo governo, que converte todos os valores em peso à taxa oficial de 1,40 pesos por dólar.  Isso é chamado decorralón
Esta 'pesificação assimétrica', na qual as dívidas com o sistema bancário foram pesificadas na razão de 1:1 ao passo que os depósitos em moeda estrangeira foram convertidos na razão de 1,40 pesos por dólar, algo que beneficiava os bancos, foi uma medida que o próprio governo reconheceu como sendo um bônus dado aos bancos para compensar o calote gerado pela manipulação cambial acima descrita. 
Em março, o governo também pesifica toda a dívida pública nacional, provincial e municipal, à taxa de 1,40 peso por dólar.  Em seguida, ele deixa o câmbio flutuar de maneira um pouco mais livre.  Como consequência, o peso afunda.  Em junho, a cotação do dólar chega a quase 4 pesos.
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Gráfico 11: evolução do valor do dólar em relação ao peso
Consequentemente, a inflação de preços, após quase uma década de estabilidade, vai a 40%. 
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Gráfico 12: taxa de inflação anual de preços, 2001-2002
A tragédia agora estava completa.  Os pobres estavam literalmente sem dinheiro.  A classe média não apenas estava com seu dinheiro preso nos bancos, como também este havia sido forçosamente desvalorizado.  Quem tinha depósitos em dólares — e, em 2001, a maioria dos depósitos bancários era em dólar (47 bilhões de dólares contra 18 bilhões de pesos) — viu sua poupança ser convertida em peso à taxa de 1,40 peso por dólar, sendo que o câmbio havia ido para quase 4 pesos.  Não bastasse a falta de dinheiro, a desvalorização cambial fez com que tudo encarecesse, gerando a inflação de 40%.  Todos os importados se tornaram virtualmente inacessíveis.  Pouco dinheiro e moeda sem nenhum poder de compra.
Inúmeras empresas faliram.  A qualidade de vida da população despencou.  Há relatos de que, na elegante Calle Florida, famílias de classe média, cuja poupança de toda uma vida havia sido confiscada pelo governo, abordavam turistas suplicando por dinheiro.  O desespero era grande porque até mesmo a compra de itens básicos, como leite, estava difícil.
Vários milhares de destituídos e desempregados se transformaram em cartoneros, catadores de papel.  Estatísticas afirmam que entre 30 e 40 mil pessoas passaram a revirar as ruas de Buenos Aires à procura do material.
Ainda mais impressionante foi a evolução — ou, mais apropriadamente, a involução — da porcentagem de pessoas abaixo da linha de pobreza na grande Buenos Aires.  Uma cifra que chegou a ser de 16,1% em maio de 1994 saltou para 54,3% em outubro de 2002, um valor ainda maior do que o do ano de 1989 (47,3%), quando o país vivia sob hiperinflação.  Em nível nacional, a pobreza chegou a 57,5% da população, a indigência a 27,5% e o desemprego a 21,5%, todos níveis recordes para o país.
Conclusão
Todo o desenrolar dos fatos deixa bem claro de quem é a culpa.  Qual entidade confisca o dinheiro das pessoas, aniquila toda a sua poupança e até mesmo estipula quantias máximas a serem utilizadas?  Qual entidade gera incertezas ao se mostrar incapaz de controlar seus gastos e de se adequar dentro de seu orçamento?
Enquanto o governo foi capaz de manter um orçamento equilibrado e de seguir ortodoxamente as regras do Currency Board, a qualidade de vida da população aumentou substancialmente.
A partir do momento em que o governo não mais conseguiu manter seu orçamento equilibrado (a partir de 1995) e passou a aumentar sua dívida de forma contínua, gerando incertezas quanto à capacidade de financiamento e aumentando a propensão a um calote, a confiança no sistema começou a desaparecer.  Não obstante, tudo poderia ter sido revertido caso o governo houvesse feito a dolarização da economia em 1999.  Neste cenário, seria por definição impossível uma desvalorização e uma fuga de capitais. 
Quando o ministro Cavallo deixou explícita sua intenção de alterar o regime cambial, o que na prática representou a abolição do regime de conversibilidade original, a confiança no sistema foi completamente aniquilada.  O colapso era questão de tempo.
Mas há outros culpados.
O sistema bancário de reservas fracionárias também teve um papel decisivo nessa história.  Muito embora o Currency Board de fato tenha restringido a taxa de crescimento da oferta monetária, tanto o M1 quanto o M2 chegaram a volumes muito acima das reservas internacionais.  Não apenas isso estimulou os ataques especulativos, como também foi a causa dos saques bancários dos correntistas a partir de outubro de 2000, o que gerou uma forte contração monetária.  Uma contração monetária é consequência direta da expansão anterior decorrente das reservas fracionárias.  A adoção de um regime de 100% de reservas teria evitado esse cenário.
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Gráfico 13: evolução do M1, 04/1991—12/2001
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Gráfico 14: evolução do M2, 04/1991—12/2001
corralito implantado pelo governo com o intuito de conter a sangria ilustrada nos dois gráficos acima foi apenas mais um exemplo prático da teoria de que um sistema bancário de reservas fracionárias sem um emprestador de última instância é uma impossibilidade.  (O corralito só viria a ser abolido em dezembro de 2002, mas ainda manteria várias restrições sobre transações financeiras e aquisição de dólares).
No entanto, vale enfatizar o fato de que, não obstante o governo tenha destruído seu orçamento, elevado seus gastos, incorrido em vultosos déficits, se endividado e, no final, tenha adulterado os fundamentos básicos do Currency Board, tal sistema deu à Argentina, um país que há muito desconhecia o que era inflação baixa, um período de sete anos (1995-2001) de inflação praticamente nula, um atestado de sua qualidade.
Veja o gráfico da evolução anual da inflação de preços.  O gráfico começa em abril de 1992, um ano após a introdução do Currency Board.  Note que a âncora cambial é abolida em janeiro de 2002.
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Gráfico 15: taxa de inflação anual, 04/1992—12/2002
Por fim, este gráfico da evolução do PIB em dólares desde 1970 é bastante significativo.  Ele mostra o que a estabilidade de preços em conjunto com uma moeda forte podem fazer a uma economia.  Mostra também o que acontece quando o governo resolve destruir este sistema.
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Gráfico 16: PIB nominal em dólares, 1970-2009
Ao final de 2009, o PIB em dólares era praticamente o mesmo de 1998, o que significa que a economia levou 11 anos para voltar ao mesmo nível de onde estava durante a crise da Rússia.
O tamanho do estrago que um governo é capaz de fazer em uma economia é algo que jamais deve ser subestimado.



Leandro Roque é o editor e tradutor do site do Instituto Ludwig von Mises Brasil.

Cristina Kirchner deveria ler Mises

Cristina Kirchner deveria ler Mises
6598.jpgDois anos atrás, alguns dias após a vitória de Cristina Fernández de Kirchner na eleição presidencial da Argentina, o governo decidiu impor um novo sistema de controle de capitais estrangeiros rotulado pela imprensa de "cepo"
De início, a medida foi uma tentativa de combater a evasão fiscal.  Com o tempo, as medidas foram se intensificando e hoje já está claro que elas fazem parte de um grande esquema intervencionista de controle cambial capitaneado pelo Banco Central argentino.
Em um sistema de taxas de câmbio flexíveis, um Banco Central limita suas atividades apenas ao controle da base monetária.  Ele não se preocupa com a taxa de câmbio.  Consequentemente, os preços das moedas estrangeiras atuam somente como um indicador da eficácia ou da ineficácia da política monetária.  Já quando o Banco Central adota controle de capitais (não confundir controle de capitais com câmbio fixo; são arranjos completamente distintos), ele passa a atuar como um ente que faz um "racionamento de divisas", vendendo dólares a preços arbitrários a determinados grupos privilegiados escolhidos pelo governo.
No caso específico do "cepo" argentino, o Banco Central proíbe a compra de dólares por argentinos que querem manter sua poupança em moeda estrangeira, mas permite que alguns importadores ou algumas pessoas que queiram viajar ao exterior comprem dólares à taxa oficial de câmbio — mas sempre mantendo um controle estrito sobre a quantia transacionada.  Adicionalmente, o BC argentino também vende dólares à taxa oficial àquelas pessoas que utilizam cartões de crédito no exterior, embora lhes cobre um imposto que aumenta a taxa de câmbio em 20%.
O governo justificou a imposição do "cepo" sobre os argentinos alegando que se tratava de uma tentativa de controlar o fluxo de dólares e de evitar uma desvalorização.  No entanto, após dois anos, esse controle de capitais criou ainda mais problemas e não trouxe nenhuma solução. 
Para começar, surgiu um mercado paralelo no qual dólares são transacionados a uma taxa 65% maior do que a taxa de câmbio oficial — valor esse que está bem em linha com a alta inflação de preços que está deteriorando o poder de compra do peso.  Estas transações ocorrem naquilo que passou a ser prosaicamente chamado de mercado do "dólar azul".  Adicionalmente, as reservas internacionais do país já caíram mais de 30% desde outubro de 2011, sendo que, no resto do continente latino, elas continuam crescendo em decorrência da frouxa política monetária adotada pelo Fed.  Finalmente, a balança comercial do país foi reduzida graças ao colapso na taxa de crescimento das exportações.
O gráfico abaixo mostra a discrepância entre a taxa de câmbio oficial (linha verde) e a taxa de câmbio no mercado paralelo (linha azul).
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Mas, então, por que o governo decidiu adotar uma política tão deletéria para a sociedade argentina?  Uma possível resposta é que os burocratas se preocupam apenas com seus interesses de curto prazo.  Aliás, e curiosamente, quanto mais um governo diz estar preocupado com o "bem comum", mais ele está pensando apenas no bem de seus próprios integrantes.  Outra resposta, e essa assumidamente ingênua, é que os políticos argentinos se esqueceram de ler o capítulo XXXI de Ação Humana, de Ludwig von Mises.
A escassez de divisas estrangeiras
Repetidas vezes, os burocratas da Argentina se referiram ao "cepo" como se fosse uma ferramenta vital para "cuidar dos dólares" ou para evitar a escassez de divisas necessárias para investimentos de longo prazo.  No entanto, se eles houvessem lido Mises, eles saberiam que, em um livre mercado, não existe algo como escassez de dólares:
Os governos que se queixam de uma escassez de divisas têm na realidade outras preocupações.  A escassez é o inevitável resultado de suas políticas de controle de preços. Como o governo fixou para a sua moeda um valor acima do mercado, a demanda por divisas excede a oferta.
A redução de US$14 bilhões nas reservas internacionais do Banco Central argentino pode ser explicada pelo simples conceito da oferta e demanda.  À taxa de câmbio determinada pelo governo, vários argentinos querem converter seus pesos em dólares, e poucos querem abrir mão de seus dólares em troca de pesos.  Se um produto é vendido a um preço muito abaixo de seu real preço de mercado, é muito fácil prever que seus estoques irão diminuir rapidamente a menos que os preços subam.  Com as reservas estrangeiras, o princípio é idêntico.
O estrago às exportações
Antes da imposição do controle de capitais estrangeiros, as exportações argentinas cresciam a uma taxa anual de 27%.  No entanto, o ritmo foi reduzido a apenas 3% em setembro de 2013.  Mises explicou por que essa queda iria ocorrer:
Qualquer cidadão que adquirir divisas — procedentes, por exemplo, de uma exportação — é obrigado a vendê-las ao correspondente órgão central, pela taxa de câmbio oficial. Se essa estipulação, que equivale a um imposto de exportação, for efetivamente aplicada, o comércio exterior ou irá diminuir muito ou será completamente abolido. 
Por meio do Banco Central, o governo paga aos exportadores somente 60% do valor de seus produtos vendidos para o exterior.  Se um exportador argentino vender um produto que custa US$100, o Banco Central argentino irá lhe pagar somente $600 pesos quando ele for trocar os dólares por pesos.  No entanto, se o Banco Central respeitasse o preço de mercado do dólar, ele deveria pagar ao exportador $1.000 pesos.  Logo, não deveria ser nada surpreendente que os exportadores estejam sendo profundamente afetados pelo "cepo".
Importações
Em um discurso à Universidade de Harvard, a presidente Cristina Kirchner negou a existência do controle de capitais estrangeiros e, para exemplificar essa sua negativa, ela sugeriu que havia "120 categorias que permitiam aos argentinos adquirir dólares".  Uma delas, alegou, são as importações.  Isso não surpreenderia Mises, que escreveu que:
Por outro lado, o órgão central de controle de câmbio, aferrando-se obstinadamente à ficção de que as taxas de câmbio "na realidade" não subiram e que a taxa oficial de câmbio é uma taxa real, vende divisas aos importadores pela taxa oficial.
Porém, quando um importador paga 6 por algo pelo qual ele na realidade deveria pagar 10, ele está recebendo um considerável subsídio do governo, algo que provavelmente fará as importações aumentarem ao ponto de ameaçar a tão enaltecida "produção doméstica".  E isso é algo que nenhum governo (especialmente um governo intervencionista como o da Argentina) irá tolerar.  Mises observa que:
Consequentemente, as autoridades recorrem a outros artifícios. Ou aumentam as tarifas de importação, ou estabelecem um imposto especial sobre os importadores, ou oneram de alguma forma a compra de divisas.
Caso Mises mencionasse uma das malfadadas políticas do governo Kirchner, as Declaraciones Juradas Anticipadas de Importación (DJAI — Declarações Juramentadas Antecipadas para Importações, um novo obstáculo burocrático para os importadores), poderíamos dar a ele o título de futurólogo.
A inflação é o problema
Como última observação, vale dizer que o motivo para os controles de capitais — bem como o motivo para todo e qualquer controle de preços — é a persistente inflação de preços criada pela política monetária do Banco Central argentino, algo que o governo faz de tudo para ignorar.  Em menos de 4 anos, a oferta monetária quase triplicou.
Porém, como Mises nunca se cansou de alertar, nenhuma intervenção pode acobertar ou alterar "o fato de que uma moeda nacional perdeu parte do seu poder aquisitivo em relação às divisas estrangeiras, ao ouro, e às mercadorias em geral."
Controles de capitais apenas agregam mais problemas aos problemas já existentes.  Se o governo argentino houvesse lido Mises (ou ao menos não o ignorasse deliberadamente), ele veria o encarecimento do dólar como um indicador dos excessos de sua política monetária.  Como corolário, nós argentinos teríamos evitado todos os efeitos distorcivos de um "cepo" e, principalmente, não estaríamos hoje sofrendo com essa vergonhosa inflação de preços, a qual rouba dos argentinos o poder de compra de seu dinheiro, o qual eles honestamente adquiriram por meio de interações pacíficas e voluntárias no mercado.
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As diferenças essenciais entre uma genuína economia de livre mercado e uma economia intervencionista

As diferenças essenciais entre uma genuína economia de livre mercado e uma economia intervencionista
 

intervencionismo.jpgAo longo de toda a história humana, foram várias as manifestações de movimentos ideológicos coletivistas.  Especialmente nas décadas de 1930 e 1940, em várias partes da Europa, estes movimentos se tornaram mais explícitos e radicais, e assumiram suas extremadas formas de comunismo, fascismo e nazismo.  Todas estas três ideologias representavam a total rejeição da liberdade econômica, do livre mercado e da liberdade individual.   
Atualmente, o comunismo, o fascismo e o nazismo — ao menos no formato que assumiram no século XX — estão mortos.  Eles fracassaram miseravelmente, tendo produzido nada mais do que genocídios, forme, devastação e miséria.  Embora sejam vários aqueles que alegam — em todos os eixos do espectro político ideológico — que o capitalismo triunfou sobre estas ideologias, a verdade é que o sistema econômico que hoje existe ao redor do mundo está muito longe daquilo que economistas liberais-clássicos como Mises consideravam ser uma economia de livre mercado.
O que seria uma verdadeira economia de mercado?  Quais as características indispensáveis que uma economia deve apresentar para ser considerada de livre mercado?  Os nove princípios a seguir definem, em minha opinião, uma genuína economia de livre mercado:
1. Todos os meios de produção são propriedade privada, seja de indivíduos ou de empresas.
2. Os proprietários destes meios de produção têm total liberdade para utilizá-los da maneira que mais lhes aprouver, sem estipulações estatais, sem restrições e sem regulamentações (a única restrição óbvia é não agredir a vida, a propriedade e a liberdade de terceiros).
3. A demanda dos consumidores é o que realmente determina como estes meios de produção serão utilizados.
4. As forças concorrenciais da oferta e da demanda determinam os preços dos bens de consumo e dos vários fatores de produção, inclusive da mão-de-obra.
5. A livre concorrência é plena, o que significa que não há restrições à entrada de indivíduos ou empresas em nenhum tipo de mercado.  Não há empecilhos burocráticos e não há agências reguladoras determinando quem pode e quem não pode entrar em um determinado mercado.  
6. O sucesso ou o fracasso de empresas e empreendimentos é determinado exclusivamente pelos lucros e pelos prejuízos destas empresas, os quais, por sua vez, decorrem de sua capacidade de vencer a concorrência das empresas rivais no mercado e mais bem satisfazer as demandas dos consumidores.  Não há programas de socorro governamental a nenhum tipo de empresa falida, inclusive bancos.
7. O mercado não está restrito a transações domésticas.  Há plena liberdade de comercializar com pessoas de todos os cantos do mundo, sem restrições governamentais, sem tarifas protecionistas.
8. O sistema monetário é completamente separado do estado.  O governo não possui controle algum sobre o dinheiro, e este não é de curso forçado.  Não há um banco central protegendo o sistema bancário e imprimindo dinheiro para expandir o crédito, determinar juros e estimular os lucros dos bancos.  Há plena liberdade de entrada no setor bancário.  A moeda será aquela voluntariamente escolhida pelos cidadãos.
9. O governo é restrito a níveis locais e sua atividade consiste unicamente em proteger a vida, a liberdade e a propriedade das pessoas.
Por essa definição, nenhum país do mundo é atualmente uma sociedade de livre mercado (embora haja várias gradações que deixem alguns — majoritariamente as cidades-estados — mais perto destes critérios).  Sendo assim, que tipo de sistema econômico existe hoje no mundo?  Mises explicou isso em sua coleção de ensaios de 1929, Uma Crítica ao Intervencionismo:
Quase todos os teóricos de política econômica e quase todos os estadistas e líderes partidários estão procurando um sistema ideal que, em suas crenças, não deve ser nem capitalista nem socialista, e que não se baseie nem na propriedade privada dos meios de produção e nem na propriedade pública.  Estão procurando um sistema de propriedade que seja restrito, regulado e dirigido pela intervenção governamental e por outras forças sociais, como os sindicatos.  Denominamos tal política econômica de intervencionismo, que vem a ser o próprio sistema de mercado controlado.
Uma economia intervencionista
Eis a seguir os nove pontos que definem uma economia intervencionista:
1. Os meios de produção podem ser propriedade privada, mas seu uso é restringido e regulamentado pela autoridade política.
2. O governo pode estipular, restringir ou regulamentar o modo como os meios de produção são utilizados, bem como pode proibir ou regular o acesso a determinados setores da economia, ou mesmo estipular que apenas ele, o governo, pode incorrer em determinada atividade comercial.
3. A demanda dos consumidores não é o único fator a determinar como os meios de produção serão utilizados.  O governo pode impor regulamentações estipulando metas de produção, obrigando a prestação de serviços em determinados mercados sem demanda ou proibindo a produção de determinados tipos de produtos ou serviços.
4. O governo influencia ou até mesmo controla a formação dos preços de vários bens de consumo e de fatores de produção, inclusive da mão-de-obra.  O governo manipula os efeitos do mercado — isto é, das leis de oferta e demanda — sobre o sucesso ou o fracasso de várias empresas, influenciando as receitas das empresas através de meios artificiais como regulações de preços, políticas de compra de estoques excedentes, limites à liberdade de entrada nos mercado, subsídios diretos e indiretos, e redistribuição de riqueza.
5. A livre concorrência é tolhida por vários tipos de restrição à entrada em vários setores da economia.  Agências reguladoras determinam quem pode e quem não pode entrar em um determinado mercado, bem como quais serviços as empresas escolhidas podem ou não ofertar, e quais preços podem cobrar.
6. O governo pode escolher quais empresas podem falir e quais devem ser socorridas com o dinheiro dos pagadores de impostos.  Os pequenos são utilizados para cobrir os prejuízos dos grandes com boas conexões políticas e sindicais.
7. A liberdade de entrada de produtos estrangeiros no mercado doméstico é desestimulada ou mesmo impedida por meio de proibições, tarifas ou quotas de importações.  O mesmo se aplica à entrada de potenciais empresas estrangeiras que possam rivalizar com empresas nacionais já estabelecidas.
8. O sistema monetário é inteiramente regulado pelo governo, que detém o monopólio da moeda e impõe sua aceitação obrigatória para todos os cidadãos.  Um banco central protege e carteliza o sistema bancário, além de manipular os juros e o valor do dinheiro ao determinar a que taxa sua quantidade na economia deve ser aumentada.  A expansão do crédito é determinada pelo governo e não pela poupança voluntária dos cidadãos.  Todas estas medidas são utilizadas como ferramentas para afetar o emprego, a produção e o crescimento a economia.
9. O governo está presente em várias áreas da economia e da vida das pessoas, possui abrangência nacional e não está limitado à proteção da vida, da liberdade e da propriedade.
É importante observar que o sistema intervencionista representado por estes nove pontos só pode ser implementado por meios violentos e coercivos.  Somente o uso da força, ou a ameaça do uso da força, pode fazer as pessoas incorrerem em ações diferentes daqueles em que elas incorreriam voluntariamente sem a intervenção do governo.  Sendo assim, embora a intervenção estatal seja normalmente discutida como se fosse "política pública", a verdade é que não há nada de "pública" nela.  Intervenções são políticas coercivas implantadas por políticos e burocratas visando ao interesse próprio e de seus favorecidos.
Compare estas políticas ao livre mercado, ou à economia desobstruída, como foi definido acima.  O que é mais evidente é a natureza voluntária de arranjos sociais genuinamente baseados em transações de mercado.  A violência ou a ameaça de violência é reduzida a um mínimo, e o indivíduo adquire a liberdade de viver sua própria vida e de aprimorar suas circunstâncias por meio da livre associação com terceiros.
Exatamente por isso é importante compartilhar com um maior número possível de pessoas uma visão clara e persuasiva a respeito da sociedade livre e da economia de livre mercado.  Apenas esta difusão de ideias pode, se não pôr um fim, ao menos restringir bastante esta era do estado intervencionista, levando-nos para um pouco mais perto da liberdade humana, que é um direito natural de qualquer indivíduo.

Richard Ebeling 
leciona economia na Northwood University de Midland, Michigan, é um scholar adjunto do Mises Institute e trabalha no departamento de pesquisa do American Institute for Economic Research.
Tradução de Leandro Roque