sexta-feira, 26 de julho de 2013

Anarcocomunismo, socialismo libertário e libertarianismo de esquerda: conceitos e diferenças



left-libertarian.jpgNão é própria deste momento histórico a existência de confusões causadas por múltiplas interpretações de uma mesma palavra. Por este motivo, é necessário que o cientista, o pesquisador e o teórico se detenham por um instante sobre a tarefa de apresentar uma conceituação dos termos utilizados. Esta tarefa não corresponde ao ato de tomar para si as palavras, mas de apresentar um uso, isto é, uma interpretação para elas.
No campo do pensamento político há diversos conceitos. Palavras como capitalismo, socialismo, anarquia, mercado, propriedade, poder, indivíduo e sociedade são alguns exemplos de termos que necessitam de aprofundamento conceitual. Caso isto não ocorra, torna-se difícil compreender qual é o sentido pretendido. Devido a problemas de tradução da palavra inglesa libertarian é preciso diferenciar o pensamento libertário norte-americano do antigo uso da palavra libertário para designar os anarquistas clássicos.
Dentro da história do pensamento político, chamou-se de liberal o defensor de determinadas liberdades civis e liberdades econômicas. O liberalismo é a doutrina do liberal, pautado no pensamento dos liberais clássicos como Locke e Mill. O problema linguístico aparece quando nos Estados Unidos o termo liberal é usado para designar uma posição que, no Brasil, chamaríamos de liberalismo-social. Naquele país os defensores de liberdades se viram órfãos de um termo que os designassem. É neste contexto que aparece, para diferenciar o liberal, o termo libertarian.
A confusão para o leitor da língua de Camões ocorreu ao traduzir-se o termo libertarian por libertário. Este novo libertário também foi designado neste idioma como libertarista e libertarianista. É óbvio que um indivíduo que defende liberdades irá chamar a si mesmo de libertário, o defensor da liberdade, como aponta a definição dicionarista. Porém, devido ao uso deste termo em outras tradições do pensamento político, a confusão torna-se aparente.
Jorge Esteves da Silva está correto ao apontar que o termo libertário foi introduzido pelos teóricos anarquistas franceses no século XIX. Se não há, nem deveria ter, direitos de propriedade sobre o uso de palavras, o uso do termo libertário pode se modificar ao longo da dinâmica existente nas transformações linguísticas que sempre ocorreram na história.
Se o termo libertário foi introduzido pelos anarquistas, é compreensível que os seguidores de Joseph Déjacque (1821-1864) reivindiquem o seu uso para a defesa do pensamento político que defende a divisão equitativa do produto do trabalho numa sociedade organizada comunalmente, sem a existência de um governo central. É importante salientar que, antes de Déjacque, Pierre Joseph Proudhon (1809-1865) havia se autointitulado anarquista. O termo libertário começa a ser utilizado como oposição ao mutualismo proudhoniano, um sistema que defendia direitos de propriedade e remuneração proporcional ao trabalho realizado.
Destarte, há neste ponto uma primeira distinção que merece atenção. Nos anarquismos não-proudhonianos o coletivismo é um ponto principal. Estes anarquismos que rejeitam uma liberdade de associação com salários e preços, o chamado anarquismo social, podem ter um caráter comunista ou socialista (posteriormente surge o anarco-sindicalismo). O anarco-socialismo, ou socialismo libertário, é a defesa de uma sociedade na qual todos os meios de produção são socializados. Porém, diferente de Karl Marx, defende que esta socialização ocorra sem a criação de um estado ou estrutura hierarquizante para governar. A revolução dos trabalhadores não trocaria os atuais governantes por novos governantes, como defendeu Marx e ocorreu nas revoluções socialistas ao redor do globo. Contudo, para os anarcocomunistas há um problema grave com esta defesa socialista do anarquismo, pois ainda existira a remuneração pelo trabalho. O anarcocomunismo defende a abolição deste sistema de salários, visando uma distribuição dos bens a partir da necessidade. Tudo seria comum e distribuído para todos conforme fosse necessário o uso. Este sistema de abolição do dinheiro acabaria com a ideia de recompensa, pois todos teriam acesso ao que foi produzido e decidiriam democraticamente em suas comunas como utilizar os recursos e os bens produzidos.
A briga semântica estava lançada no movimento anarquista do século XIX. O primeiro teórico a usar o termo libertário defendia uma posição anarcocomunista. Entretanto, Mikail Bakunin, teórico anarco-socialista, chamou seu anarquismo de socialismo libertário (em oposição ao socialismo autoritário, termo que usava para designar a ideia de Marx). Neste contexto, os anarcocomunistas, que viam no socialismo libertário uma estrutura de preços e salários, consideravam-se mais defensores da liberdade e então surge o comunismo libertário.
Assim, o termo libertário na tradição anarquista não possui um uso uniforme. Obviamente que os anarcocomunistas reivindicam o seu uso devido ao seu surgimento como oposição ao mutualismo de Proudhon e ao anarco-socialismo de Bakunin. A liberdade que defendem é a liberdade social da vida numa comuna democrática com redistribuição por necessidade e não por mérito. Esta é a sociedade sem coerção, sem autoridade e sem amarras, para estes "libertários".
Por este tipo de anarquismo ser mais difundido, ajudado pelas revoltas e revoluções desencadeadas contra o capitalismo (no sentido marxista do termo), não é de estranhar que os defensores do libertarianismo sejam vistos com repulsa ao se considerarem libertários.
O libertarianismo, libertarianism no inglês, dentro da tradição anarquista está posicionado entre outro tipo de anarquismo que floresceu na primeira metade do século XIX, o anarquismo individualista. Nesta vertente é o indivíduo que está em primeiro plano, acima de um contexto social ou comunal. Não se pensará no modo de vida coletivo, mas na efetivação da autonomia individual através de liberdades individuais plenas. Numa sociedade totalmente comunista o indivíduo perde-se no coletivo ao qual está inserido. Por conta disto, se um dos problemas enxergados pelos anarquistas é o do estado como algo coercitivo, para um individualista a decisão da comunidade pode ferir suas liberdades e ele se verá coagido a algo, mesmo que não exista uma estrutura de poder como nas sociedades arquistas.
Se na tradição individualista o libertarianismo defende as liberdades individuais em seu mais alto grau, ao defender um modo de produção de bens e serviços será buscada a forma mais livre de produzir. Portanto, é no livre mercado que se pautará a defesa da efetivação da liberdade de se produzir onde, quando e como quiser. Este ambiente de liberdade só é possível se as relações entre os indivíduos forem voluntárias e não orquestradas por um governo central. Bem diferente dos coletivistas, estes novos anarcoindividualistas defenderão o mercado desimpedido, sendo possível apenas num ambiente no qual sejam respeitadas as propriedades privadas. É exatamente no espaço privado que haverá a efetivação total das vontades e liberdades individuais. Como não são autosuficientes, os indivíduos precisarão efetuar trocas com outros indivíduos. O sistema de preços e as leis de oferta e demanda possibilitarão que as trocas justas ocorram, isto é, as trocas efetuadas voluntariamente serão justas se aceitas por ambas as partes sem a existência de fraude ou coação.
Os libertários, isto é, os libertaristas ou libertarianistas, podem reivindicar o uso da palavra libertário por não especificarem como deve ser a sociedade. Numa sociedade sem um governo central, as pessoas iriam arranjar soluções para a sobrevivência. Pensam que um sistema de mercado seja mais eficiente que sistemas cooperativos, mas não há coação para que se pratiquem trocas baseadas em moeda. Numa sociedade comunista não haveria espaço para o uso da moeda (que foi abolida) e, portanto, indivíduos que desejassem viver com propriedade privada através deste tipo de trocas não teriam espaço. Numa sociedade que ainda há o uso de moeda, indivíduos poderiam se juntar e viver de forma cooperativa numa propriedade, sem receber represálias, visto que não há um "dever ser" econômico. Se libertário é o defensor da liberdade total, então estes novos libertários possuem um argumento para a utilização da palavra. Defendem liberdades individuais e liberdades econômicas.
Apesar dessa defesa das liberdades, as liberdades econômicas eram o ponto menos aceito para uma tradição anarquista. Num século que foi marcado por ditaduras socialistas e por enormes intervenções governamentais na economia era preciso demonstrar que a defesa de uma sociedade com mercados desimpedidos traria mais benefícios para os menos favorecidos economicamente. Esta defesa de uma economia de mercado trouxe para o moderno libertarianismo uma antiga direita, defensora do livre mercado. Este foi um dos motivos para que os novos libertários ficassem associados apenas à defesa de mercados desregulados. Neste contexto, retoma-se uma forma de apresentar o libertarianismo que remonta à tradição individualista do anarquismo. Este libertarianismo retomado do século XIX fica conhecido como libertarianismo de esquerda (left-libertarianism).
O libertarianismo de esquerda não é uma posição política homogênea. Antes, designa diferentes abordagens de questões políticas e sociais num contexto teórico nos quais diferentes teorias relacionam-se. Deste modo, falar em libertários de esquerda pode-se referir aos seguintes grupos teóricos: (1) esquerda libertária, (2) georgismo (geoísmo), (3) escola Steiner–Vallentyne, (4) agorismo, (5) left-libertarianism (libertarianismo de esquerda de livre mercado).
Apesar das diferentes linhas de pensamento, é a quinta vertente a que chama a si mesmo de libertária de esquerda. Há confusão, por exemplo, pelo fato de alguns autores identificarem alguns marxistas como Rosa de Luxemburgo, Anton Pannekoek, Paul Mattick, Cornelius Castoriadis, Jean-François Lyotard e Guy Debord como libertários de esquerda.[1] A esquerda libertária, portanto, alinha-se muito mais com o socialismo libertário, já comentado anteriormente. Contemporaneamente, anarquistas famosos como Murray Bookchin e Noam Chomsky tem se identificado com esta tradição socialista de viés anti-estatal.
O georgismo refere-se à teoria político-econômica elaborada por Henry George. O ponto central do pensamento de George é que as pessoas são proprietárias de tudo o que criam, mas que os bens naturais, como a terra, não deveriam possuir proprietários. Economicamente significa que o único imposto existente deveria ser o imposto sobre a terra. Toda atividade econômica ficaria livre de taxação e a única taxação existente seria eficiente e equitativa ao recair sobre os que possuíssem mais propriedades de terra. Milton Friedman (1978) concordou com a posição de Henry George ao afirmar que o imposto sobre a terra seria menos nocivo e produziria menos distorções econômicas do que os impostos sobre as atividades econômicas.[2] Vale salientar que apesar de não ser um anarquista, as ideias de George foram tomadas por alguns seguidores que reelaboraram o georgismo, transformando-o no chamado geoanarquismo, uma espécie de neo-georgismo.
A Escola Steiner–Vallentyne está alicerçada no pensamento de Hillel Steiner e Peter Vallentyne, além de possuir contribuições de outros acadêmicos e pensadores não necessariamente left-libertarians. A questão chave desta escola é criticar a concepção de autopropriedade de Robert Nozick (famoso pelo seu clássico Anarquia, Estado e Utopia) e a dedução de que a propriedade de outros recursos naturais decorra deste conceito. Neste contexto, o pensamento desta escola aproxima-se do pensamento de Henry George ao afirmar a necessidade de "uma compensação que os proprietários devem aos não proprietários mediante impostos ou rendas sobre a propriedade de recursos naturais, incluindo a propriedade da terra" (ROSAS, 2009).
O agorismo é a doutrina filosófica elaborada por Samuel Edward Konkin III, ativista libertário. O termo remete à palavra ágora do grego. A ágora era a praça principal da pólis grega, o local onde ocorriam as assembleias e onde havia mercados e feiras livres. Ao propor o agorismo, Konkin queria fugir dos antigos rótulos "liberal" e "anarquista". O agorismo seria então a filosofia política baseado nos mercados livres, em suas palavras "libertária em teoria e de livre-mercado na prática". Konkin expôs suas ideias no Manifesto do novo libertário. Neste livro, apresenta o conjunto de conceitos e princípios que baseiam a defesa de uma sociedade livre. Aponta que a nossa condição é o estatismo e que este precisa ser eliminado para que se atinja a sociedade agorista. Defende a contra-economia, isto é, que os libertários evitem ao máximo a economia branca e façam suas trocas no mercado negro, como forma de atingir o estatismo. Konkin não apenas defendeu esta ideia, mas praticou a contra-economia incentivando o surgimento de empreendedores do mercado negro. Foi grande crítico de uma transformação pela via política, como o Libertarian Party, defendendo uma revolução cultural que minasse o estatismo.
O quinto grupo que pode ser definido como libertário de esquerda é o libertarianismo de esquerda. Neste sentido, quando dentro da tradição libertária (do libertarianismo) fala-se de um libertarianismo de esquerda (left-libertarianism) é a este movimento que se refere. Dentro os mais notáveis pensadores desta posição estão Kevin Carson, Roderick T. Long, Charles Johnson, Brad Spangler, Sheldon Richman, Chris Matthew Sciabarra e Gary Chartier.
A principal diferença do libertarianismo de esquerda com o libertarianismo mais difundido no Brasil está relacionada com questões sociais, como drogas e aborto, e questões econômicas, como propriedade da terra e grandes corporações. É certo que autores como Murray Rothbard, Walter Block, Leonard Read e Harry Browne escreveram sobre o libertarianismo não ser nem de direita e nem de esquerda, criticando autores que se posicionam nas vertentes left e right do pensamento libertário. Apesar deste ímpeto de evitar tal classificação, inclusive sob o slogan "nem esquerda, nem direita, libertário", Anthony Gregory apresenta uma distinção que pode auxiliar a diferenciação entre o libertarianismo de esquerda e de direita.
Para Gregory (2006), uma forma de apresentar a diferença é:
Libertários de esquerda concentram-se nas "liberdades individuais", enquanto os de direita se interessam principalmente pelas "liberdades econômicas".
Libertários de esquerda possuem simpatia pelo igualitarismo voluntário, enquanto os de direita são mais favoráveis à hierarquia natural.
Libertários de esquerda podem ser aqueles que vivem estilos de vida esquerdistas culturalmente ao invés do estilo de vida conservador dos libertários de direita.
Libertários de esquerda podem ser os que buscam ativamente outros para abraçarem seu estilo de vida, enquanto os de direita procuram outros para abraçar seu estilo de vida conservador.
Libertários de esquerda podem se opor ao big bussiness, enquanto os de direita os veem como vítimas do estado.
Libertários de esquerda assumem uma posição à esquerda sobre o imperialismo, enquanto os de direita são a favor de uma "forte defesa nacional".
Libertários de esquerda pensam que o estado deva intervir ativamente em assuntos estrangeiros para "proteger liberdades", enquanto os de direita possuem uma visão alinhada com a antiga direita com relação ao imperialismo.
A partir de Gregory podemos compreender as características do que se designa como libertarianismo de esquerda. A defesa das liberdades individuais como o uso de drogas, o aborto e a união homossexual são obviamente posições defendidas majoritariamente pela esquerda. Há textos libertários contrários a estas posições, como Ron Paul defendendo uma posição pró-vida e Justin Raimondo que defende que os homossexuais não devam mendigar favores ao estado, vivendo um casamento livre da intervenção estatal.[3]
Outro ponto importante na abordagem à esquerda do libertarianismo é ser contra o poder das grandes corporações. Há enorme vinculação entre o poder estatal e o poder dos grandes grupos corporativos. Defender a liberdade econômica seria favorecer os que já começam no livre mercado amparados, auxiliados e favorecidos pela condição histórica anterior. Quantas histórias de favorecimento com doações de terras, ou mais sujas, como o pagamento de fiscais do governo para atrapalhar concorrentes e até mesmo a morte de concorrentes não existem no mundo do big business? Como as pessoas poderiam competir num mundo no qual o favorecimento histórico concedeu terras aos amigos dos que detinham poder político? Seria justo ignorar o histórico ilegal de aquisição de terras e bens? Terras sem uso deveriam ser consideradas propriedade e quem as usasse considerados invasores? Para os libertários de esquerda essas questões são fundamentais.
Em questões sociais, os libertários de esquerda desaprovam toda forma de opressão. São, por isso, contrários ao racismo, sexismo, hierarquia e formas autoritárias de educação e cuidados parentais.
Em suma, o libertarianismo de esquerda é uma oposição ao que Kevin Carson chamou de libertarianismo vulgar. Para Carson, a defesa da privatização, desregulamentação, diminuição dos impostos para corporações, negação do aquecimento global, aumento de políticas imigratórias e livre mercado sem a defesa da legalização das drogas, das liberdades civis, reforma nos impostos (fechando brechas usadas pelas grandes empresas), eliminação do bem-estar corporativo e liberdade de operar um negócio sem licença sanitária, por exemplo, é um libertarianismo incompleto, um libertarianismo vulgar.[4]
Temos então o libertarianismo de esquerda como algo diferente do anarcocomunismo e anarco-socialismo (socialismo libertário). As preocupações com os grandes detentores de poder econômico são similares. Porém, ao invés de uma sociedade com abolição total da propriedade privada e da moeda os libertários de esquerda defendem um livre mercado.
A defesa de um livre mercado, entretanto, não se resume a apenas deixar de controlar a economia, mas de pensar um modo no qual cada um possa realmente ser dono de si numa sociedade construída sobre bases igualitárias que diminuíssem as diferenças herdadas por séculos de um sistema que favoreceu poucos em detrimento dos demais.
Com isto, é totalmente plausível chamar o libertarianismo de esquerda de libertário. O libertarianismo é de esquerda, pois considera os menos favorecidos. Talvez o termo libertário seja um problema semântico apenas para os defensores de um libertarianismo preocupado apenas com as questões econômicas.

Para uma visão contrária, ver Progressistas, reacionários, histeria e a longa marcha gramsciana 
_

A história de um dos grandes políticos brasileiros

A história de um dos grandes políticos brasileiros



Miguel Arraes de Alencar (16/12/1917 – 13/08/2005) 
Alexandre Severo/JC

Acaba de morrer no Recife o deputado Miguel Arraes, presidente do Partido Socialista Brasileiro e por três vezes governador de Pernambuco. Era o último representante ainda vivo da geração de políticos que marcou fortemente a história do Brasil nos últimos 50 anos – entre eles, Leonel Brizola, Ulysses Guimarães e Tancredo Neves.



Quem foi Miguel Arraes 
Do lado de fora do Palácio do Campo das Princesas, no Recife, militares fortemente armados não deixavam ninguém passar. Com canhões apontados para o prédio, exigiam que o governador de Pernambuco renunciasse ao cargo e abandonasse o local. Perto dali, uma centena de estudantes preparava uma passeata.

Miguel Arraes de Alencar recusou-se a cumprir a ordem “para não trair” a vontade dos que o elegeram. Foi preso então. Era 1º de abril de 1964, uma quarta-feira. No dia anterior, havia sido deflagrado o golpe militar que derrubaria o presidente João Goulart. O país viveria sob ditadura pelos 21 anos seguintes.

Escoltado por oficiais do IV Exército, metido dentro de um fusquinha, ao cair da noite Arraes saiu do palácio para entrar de vez na história política do país.

Nascido em Araripe, Ceará, chegara ao Recife em 1932 para concluir o curso de Direito. Era o caçula e o único homem de uma família de sete filhos. Por sua vez, seria pai de 10 filhos e se casaria duas vezes. Seu primeiro emprego foi de funcionário público no Instituto do Açúcar e do Álcool (IAA).

Ali, conheceu Barbosa Lima Sobrinho. Por indicação dele, então governador de Pernambuco, foi secretário da Fazenda em 1949. Dali a quatro anos, se elegeu deputado estadual pelo PSD. Reelegeu-se em seguida. Para em 1959 ganhar a prefeitura do Recife apoiado por uma frente de partidos de esquerda.

Com 47,98% dos votos, se elegeu governador de Pernambuco em 1962 pelo Partido Social Trabalhista (PST), apoiado pelo Partido Comunista Brasileiro e setores do PSD. Fez seu discurso de posse do lado de fora do palácio. Diante de uma multidão, citou a certa altura o poeta Carlos Drummond de Andrade: 
– Tenho apenas duas mãos, mas todo o sentimento do mundo.

Ganhou o governo pela esquerda. Governou pela esquerda.

Forçou usineiros e donos de engenho da Zona da Mata do Estado a estenderem o pagamento do salário minimo aos trabalhadores rurais. E deu forte apoio à multiplicação de sindicatos, associações comunitárias e às Ligas Camponesas.
Deposto, foi levado para a ilha de Fernando de Noronha, onde ficou preso por 11 meses. Passou depois pelas prisões da Companhia da Guarda e do Corpo de Bombeiros, no Recife, e da Fortaleza de Santa Cruz, no Rio. Solto em 25 de maio de 1965 por meio de um habeas corpus, foi para o exílio na Argélia.

Em 1979, beneficiado pela anistia decretada pelo presidente João Figueiredo quando a ditadura começava a se esgotar, Arraes voltou ao Brasil e à política. Virara mito em Pernambuco e referência para a esquerda no resto do país. Os mais pobres tinham o retrato dele nas paredes de suas casas.

Pelo PMDB, se elegeu deputado federal em 1982. Para em 1986 “entrar pela porta que saiu” e voltar a governar Pernambuco. Pela mesma porta entraria uma vez mais em 1994. Por ela sairia em 1998 quando tentou se reeleger e foi derrotado pelo atual governador de Pernambuco, Jarbas Vasconcelos.

Entre voltar e sair do Palácio do Campo das Princesas, foi mais duas vezes deputado federal, uma delas como o mais votado do Nordeste, abandonou o PMDB e aderiu ao Partido Socialista Brasileiro (PSB), do qual se tornou presidente. Morreu esta manhã no Recife depois de 59 dias internado em um hospital.

Tinha 88 anos. Estava disposto a se reeleger deputado federal em 2006. Havia fumado durante 72 anos. Bebera bem durante todos esses anos. Comera bem. E imaginava viver tanto ou mais do que sua mãe que morreu aos 96 anos. Foi amigo pessoal de Lula, a quem apoiou desde sua primeira campanha presidencial.

Deixa um herdeiro político – o neto Eduardo Campos, deputado federal, ex-ministro da Ciência e Tecnologia de Lula. Campos planeja ser candidato no próximo ano ao governo de Pernambuco.

13/08/2006 15:04
 Arraes em imagens  
Fotos do Jornal do Comércio, de Pernambuco

Deposto pelos militares por apoiar o então presidente João Goulart e governar com o apoio de forças de esquerda, Arraes saiu preso do Palácio do Campo das Princesas, no Recife, ao cair da noite do dia1º de abril de 1964.


Do Recife, foi levado para a ilha de Fernando de Noronha, onde ficou 11 meses. Passou depois por mais dois períodos de prisão no Recife, e um no Rio. Em 1965, solto por meio de um habeas corpos, exilou-se na Argélia, país africano.


Arraes foi fichado no Departamento de Ordem Política e Social, o Dops. Em julho de 2005, recebeu uma idenização de R$ 689 mil da Comissão de Anistia do Ministério da Justiça por ter sido preso e obrigado a fugir para o exílio.



De volta do exílio em 16 de setembro de1979, Arraes foi recebido por 60 mil pessoas no bairro de Santo Amaro, no Recife. Compareceram ao comício Lula, Jarbas Vasconcelos, atual governador de Pernambuco (à esquerda da foto) e Marcos Freire, ex-senador (entre Jarbas e Lula).


Embora tenham escolhido partidos diferentes depois de voltar do exílio em 1979, Arraes (PMDB e depois PSB) e Brizola (PDT) estiveram juntos no apoio ao governo de João Goulart, na oposição à ditadura militar que durou 21 anos, e no apoio a Lula – seja logo no primeiro turno da eleições presidenciais ou somente no segundo. Brizola disputou com Lula em 1989 e em 1994, e foi vice dele em 1998.


Arraes e o arcebispo de Olinda e Recife, Dom Hélder Câmara, trabalharam juntos pela reforma agrária em Pernambuco. Na época da ditadura militar, Dom Hélder foi tratado como inimigo dela. A imprensa foi proibida de mencionar o nome dele durante sete anos. A casa do arcebispo foi alvo de tiros. E um dos seus assessores, o padre Antônio Henrique Pereira Neto, foi sequestrado, torturado e morto à bala.


A foto é da década de 80. Arraes é o quarto da direita para a esquerda. O primeiro da direita, e o único sem paletó, é o atual assessor especial de Lula, o ex-ministro Luiz Gushiken. Entre Lula e Arraes, Roberto Freire, deputado federal e atual presidente do PPS. Freire apoiou Lula em 2002. Agora lhe faz oposição. É para o PPS que deverá ir nas próximas semanas o atual senador pelo PT do Distrito Federal, Cristovam Buarque.


Arraes e o mineiro Tancredo Neves estiveram juntos no MDB, partido de oposição à ditadura de 1964. Com a proximidade do fim da ditadura, os dois se distanciaram. Em 1979, Tancredo disse: “O meu MDB não é o de Miguel Arraes”. Em 1984, Tancredo pediu e obteve o apoio de Arraes à eleição dele para presidente da República pelo Colégio Eleitoral (deputados + senadores + delegados dos partidos nos Estados). 
Eleito em janeiro de 1985, Tancredo foi internado às pressas na véspera de tomar posse em 15 de março. Morreu no dia 21 de abril daquele ano depois de ser operado sete vezes. O país foi governado até 1989 pelo vice dele, o atual senador José Sarney. O sucessor de Sarney, Fernando Collor, foi o primeiro presidente eleito pelo voto direto desde 1964. Por roubalheira, foi cassado pelo Congresso em dezembro de 1992.


Arraes governou Pernambuco três vezes. A foto é da campanha dele de 1998 quando tentou se reeleger para governar pela quarta vez. Foi derrotado pelo atual governador Jarbas Vasconcelos (PMDB). Os dois haviam sido aliados até o início dos anos 90.


Arraes, presidente nacional do PSB, foi um dos articuladores do apoio do seu partido a Lula em 2002. O neto dele, Eduardo Campos, deputado federal, foi até há pouco ministro de Ciência e Tecnologia do governo Lula. Amanhã à tarde, Lula desembarcará no Recife para o enterro de Arraes.

Plebiscito, por Aluizio Azevedo

FICÇÃO


(Extraído do livro Contos fora de moda, 1894)
A cena passa-se em 1890.
A família está toda reunida na sala de jantar.
O senhor Rodrigues palita os dentes, repimpado numa cadeira de balanço. Acabou de comer como um abade.
Dona Bernardina, sua esposa, está muito entretida a limpar a gaiola de um canário belga.
Os pequenos são dois, um menino e uma menina. Ela distrai-se a olhar para o canário. Ele, encostado à mesa, os pés cruzados, lê com muita atenção uma das nossas folhas diárias.
Silêncio.
De repente, o menino levanta a cabeça e pergunta:
- Papai, que é plebiscito?
O senhor Rodrigues fecha os olhos imediatamente para fingir que dorme.
O pequeno insiste:
- Papai?
Pausa:
- Papai?
Dona Bernardina intervém:
- Ó seu Rodrigues, Manduca está lhe chamando. Não durma depois do jantar, que lhe faz mal.
O senhor Rodrigues não tem remédio senão abrir os olhos.
- Que é? Que desejam vocês?
- Eu queria que papai me dissesse o que é plebiscito.
- Ora essa, rapaz! Então tu vais fazer doze anos e não sabes ainda o que é plebiscito?
- Se soubesse, não perguntava.


O senhor Rodrigues volta-se para dona Bernardina, que continua muito ocupada com a gaiola:
- Ó senhora, o pequeno não sabe o que é plebiscito!
- Não admira que ele não saiba, porque eu também não sei.
- Que me diz?! Pois a senhora não sabe o que é plebiscito?
- Nem eu, nem você; aqui em casa ninguém sabe o que é plebiscito.
- Ninguém, alto lá! Creio que tenho dado provas de não ser nenhum ignorante!
- A sua cara não me engana. Você é muito prosa. Vamos: se sabe, diga o que é plebiscito! Então? A gente está esperando! Diga!...
- A senhora o que quer é enfezar-me!
- Mas, homem de Deus, para que você não há de confessar que não sabe? Não é nenhuma vergonha ignorar qualquer palavra. Já outro dia foi a mesma coisa quando Manduca lhe perguntou o que era proletário. Você falou, falou, falou, e o menino ficou sem saber!
- Proletário - acudiu o senhor Rodrigues - é o cidadão pobre que vive do trabalho mal remunerado.
- Sim, agora sabe porque foi ao dicionário; mas dou-lhe um doce, se me disser o que é plebiscito sem se arredar dessa cadeira!
- Que gostinho tem a senhora em tornar-me ridículo na presença destas crianças!
- Oh! Ridículo é você mesmo quem se faz. Seria tão simples dizer: - Não sei, Manduca, não sei o que é plebiscito; vai buscar o dicionário, meu filho.
O senhor Rodrigues ergue-se de um ímpeto e brada:
- Mas se eu sei!
- Pois se sabe, diga!
- Não digo para me não humilhar diante de meus filhos! Não dou o braço a torcer! Quero conservar a força moral que devo ter nesta casa! Vá para o diabo!
E o senhor Rodrigues, exasperadíssimo, nervoso, deixa a sala de jantar e vai para o seu quarto, batendo violentamente a porta.
No quarto havia o que ele mais precisava naquela ocasião: algumas gotas de água de flor de laranja e um dicionário...
A menina toma a palavra:
- Coitado de papai! Zangou-se logo depois do jantar! Dizem que é tão perigoso!
- Não fosse tolo - observa dona Bernardina - e confessasse francamente que não sabia o que é plebiscito!
- Pois sim - acode Manduca, muito pesaroso por ter sido o causador involuntário de toda aquela discussão - pois sim, mamãe; chame papai e façam as pazes.
- Sim! Sim! Façam as pazes! - diz a menina em tom meigo e suplicante. - Que tolice! Duas pessoas que se estimam tanto zangaram-se por causa do plebiscito!
Dona Bernardina dá um beijo na filha, e vai bater à porta do quarto:
- Seu Rodrigues, venha sentar-se; não vale a pena zangar-se por tão pouco.
O negociante esperava a deixa. A porta abre-se imediatamente. Ele entra, atravessa a casa, e vai sentar-se na cadeira de balanço.
- É boa! - brada o senhor Rodrigues depois de largo silêncio - É muito boa! Eu! Eu ignorar a significação da palavra plebiscito! Eu!... A mulher e os filhos aproximam-se dele.
O homem continua num tom profundamente dogmático:
- Plebiscito...
E olha para todos os lados a ver se há ali mais alguém que possa aproveitar a lição.
- Plebiscito é uma lei decretada pelo povo romano, estabelecido em comícios.
- Ah! - suspiram todos, aliviados.
- Uma lei romana, percebem? E querem introduzi-la no Brasil! É mais um estrangeirismo!..

O homem que escreve cartas de amor


Um escritor de cartas público poliglota em Ho Chi Minh faz ponte entre diferentes mundos, conectando pessoas em torno do planeta com sua caneta tinteiro. Sua profissão talvez esteja morrendo, mas ele já promoveu muitos casamentos

A principal agência de correios de Ho Chi Minh fica perto do Rio Saigon, na parte mais tranqüila da cidade, onde os arranha-céus ainda não furam as nuvens e nenhuma motocicleta cruza as ruas zoando como um enxame de abelhas. Fica na frente da catedral de Notre Dame, em um prédio colonial antigo de 1886. Parece com os mercados antigos de Paris, pintado em cor de pêssego, com ventiladores zumbindo entre colunas ornamentais e a luz solar entrando por uma clarabóia no telhado. É um lugar eterno - a mais bela agência de correio em toda a Ásia.

Duong Van Ngo, um homem forte de 77 anos, estaciona sua bicicleta à sombra dos plátanos, cujos troncos são pintados de branco como se usassem polainas. Ele saúda os vendedores de postais e atravessa os arcos com o relógio da estação. São oito horas, o início de seu dia de trabalho em uma manhã quente e úmida de fevereiro.

Ngo se senta na ponta de uma longa mesa de madeira, abaixo de um mural de Ho Chi Minh. Ele tira de sua mala dois dicionários e uma lista de códigos postais franceses. Depois, coloca uma fita vermelha em sua manga esquerda para ficar facilmente reconhecível e expõe o cartaz: "Informações e Assistência de Redação".

A primeira pessoa a procurar seu balcão é um homem do delta do Mekong. Ele traz uma carta endereçada a um empresário na Europa. Há um ano que ele trabalha como motorista para esse empresário, levando-o para refeições de negócios e reuniões. Ele pede por escrito se o europeu poderia conseguir umseguro saúde para ele e dar-lhe um adiantamento de US$ 200 (em torno de R$ 400). Ngo traduz a carta para o inglês. "Prezado senhor", escreve com sua caneta tinteiro, "poderia educadamente pedir, sinceramente". Ou seria melhor dizer "afetuosamente"? Não, isso é intimo demais. O homem lhe dá uma nota. Ngo coloca-a dentro do dicionário sem nem olhar.

Ngo é um mediador entre mundos - um escritor de cartas profissional do tipo que costumava existir antigamente. Ele escolhe cada palavra meticulosamente, formula as frases cautelosamente, burila o estilo da carta. Ele sabe como são importantes as palavras, e o mal que podem fazer. Ngo não apenas traduz, ele faz uma ponte entre as pessoas, aconselha-as e conforta-as, discretamente e com perfeita atenção à forma.

Ngo trabalha no correio desde os 17 anos. Ele diz que nunca perdeu um dia de trabalho, nem durante as guerras. Ele fala as línguas dos ex-ocupantes fluentemente até hoje; aprendeu francês na escola e inglês com os soldados americanos.

A segunda pessoa a procurá-lo é uma jovem de batom vermelho, luvas e um pequeno chapéu para protegê-la do sol. Ela dá a Ngo seu telefone celular Nokia e mostra algumas mensagens de texto. Estão escritas em francês e parecem românticas. Ngo traduz espontaneamente: "Quando vier visitá-la, você me mostrará o Vietnã e me ensinará sua língua, mal posso esperar". A mulher sorri envergonhada. Ela conheceu o francês por um site da Web. Amanhã vai voltar e compor sua resposta, com a ajuda de Ngo.

As funcionárias do correio chamam-no de o homem que escreve cartas de amor. Ele já provocou tantos casamentos, dizem, e é um poeta. Bem, diz Ngo, "talvez dois ou três casamentos. O amor em geral se esvai entre os continentes, com as duas línguas, duas culturas - você sabe. Não é fácil."

Ngo ouviu milhares dessas histórias. Algumas bonitas, outras trágicas. Ele procurou crianças de soldados americanos e parentes de cidadãos vietnamitas que escaparam de barco após a guerra. Ele testemunhou muito sofrimento. Ele não dá detalhes. Seus clientes pagam-no por seu silêncio.

Algumas vezes, ele mesmo recebe cartas. Os agradecimentos vêm de todo o mundo e são endereçados ao "Escritor de Cartas, Correio Central, Saigon". Ngo nunca recebe mensagens eletrônicas. Detesta computadores e telefones celulares. "As palavras que vêm de uma máquina não tem alma", diz ele, acrescentando que as pessoas que usam tais máquinas perderam toda educação e noção de estilo.

Durante o intervalo para o almoço, Ngo vai até a rua onde os vietnamitas que moram no exterior se sentam em cafés, usando grandes óculos escuros. Eles vieram para as celebrações do Ano Novo. Enquanto saboreiam seus cafés mocha, sistemas de sprinkler jogam vapor de água refrescante em seus rostos. Ngo pede sopa de macarrão em uma banca.

Turistas japoneses chegam durante a tarde e o fotografam como se fosse um fóssil em um museu. As funcionárias do correio grampeiam páginas de fax e conversam. No meio disso tudo, novos clientes esperam na mesa de Ngo. Eles lhe dão seus livros de endereços, assim como caixas para seus parentes no exterior. "Vitogo", diz uma mulher que trabalha no mercado e usa um chapéu de palha de arroz. "A rua é chamada Victor Hugo", diz ele virando os olhos brevemente, "como o famoso escritor." Ele escreve o endereço no documento de envio.

Ho Chi Minh, lá no mural, teria gostado do que ele faz -"conectar pessoas" por meio de sua caneta tinteiro? Ngo sorri. Política, diz ele, está fora de sua província. Ele conta que costumava ser observado pela polícia, porque era suspeito de trair segredos para os inimigos do Estado. Ainda bem, isso acabou, diz ele. Hoje, o Vietnã é global, e o mundo tornou-se um lugar complexo e imprevisível, diz ele. Isso também significa que há maior demanda hoje por seu trabalho do que antes.

Ngo é atualmente o último escritor da cidade antes conhecida como Saigon. O penúltimo, seu colega Lieng, morreu há 10 meses e não foi substituído. Ngo acha que o mundo poderia fazer mais uso de pessoas como Lieng e ele.

Infelizmente, diz ele, "ele simplesmente não quer nos pagar mais".

(Publicado na revista alemã Der Spiegel. Tradução: Deborah Weinberg. Extraído do site UOL - 13/3/2007)