domingo, 1 de setembro de 2013

O setor público: desestatizando a segurança, as ruas e as estradas



N. do T.: com a crescente violência e o evidente despreparo da polícia para lidar não só com bandidos, mas também com o cidadão comum, passa a ser do interesse de todos analisar um projeto de desestatização dosserviços de segurança, o que envolve a privatização de ruas e estradas. Murray Rothbard (em um texto de 1973, que na verdade é um capítulo do seu livro For a New Liberty - The Libertarian Manifesto), detalha a seguir como funcionaria uma sociedade que tivesse esses serviços fornecidos pelo mercado; e explica por que, nesse ambiente, abusos de autoridade policial não seriam plausíveis — muito menos rotineiros, como são hoje. De quebra, o problema do congestionamento, consequência da oferta "a custo zero" de um bem — as ruas públicas —, seria resolvido.

Protegendo as ruas
segurança.jpg
Abolir o setor público significa, é claro, que todos os pedaços de terra, todas as superfícies terrestres, inclusive ruas e estradas, se tornariam propriedade privada, sendo geridas privadamente por indivíduos, corporações, cooperativas ou por quaisquer outros agrupamentos voluntários de indivíduos e capital. O fato de que todas as ruas e áreas terrestres seriam propriedade privada iria por si só resolver muitos dos aparentemente insolúveis problemas da operação privada relativa a algumas áreas. O que precisamos fazer é reorientar nosso pensamento para considerarmos um mundo no qual todas as áreas de terra são geridas privadamente.
Peguemos, por exemplo, o serviço de proteção policial. Como ele funcionaria e como ele seria fornecido em uma economia totalmente privada? Parte da resposta se torna evidente se considerarmos um mundo de terras totalmente privadas, onde as ruas têm donos. Considere a área de Times Square, na cidade de Nova York. Trata-se de uma área notoriamente dominada pela criminalidade, onde a proteção policial oferecida pelas autoridades é mínima. Cada cidadão nova-iorquino de fato sabe que ele praticamente vive e anda pelas ruas — e não apenas na região de Times Square — em um estado de completa "anarquia", dependendo unicamente da serenidade e da boa vontade de seus concidadãos. A proteção policial em Nova York é mínima, fato esse que foi dramaticamente revelado quando, em uma recente greve policial que durou uma semana, a taxa de criminalidade, pasmem!, em nada se alterou. Não houve qualquer aumento acima do normal, que é quando a polícia está supostamente alerta e na ativa. De qualquer modo, suponha que a região de Times Square, incluindo as ruas, fosse gerida privadamente pela, digamos, "Associação dos Comerciantes de Times Square". Os comerciantes saberiam perfeitamente bem que se a criminalidade na sua região fosse desenfreada, se os furtos e os assaltos a mão armada fossem constantes, seus clientes iriam inevitavelmente desaparecer e iriam passar a freqüentar as áreas vizinhas, suas concorrentes. Assim, seria do interesse econômico dessa associação comercial ofertar uma proteção policial eficiente e abundante, de forma que os clientes se sentissem atraídos — ao invés de repelidos — por essa região. A iniciativa privada, afinal, está sempre tentando atrair e manter seus clientes. Assim sendo, qual seria a vantagem de ser servido por lojas de visual atraente, iluminação agradável e serviço cortês se os clientes podem ser assaltados ao andarem pela região?
Além do mais, a associação comercial seria induzida — por causa do seu desejo de lucrar e de evitar prejuízos — a fornecer não apenas uma proteção policial suficiente, mas também uma proteção cortês e aprazível. Uma polícia estatal não só não tem qualquer incentivo para ser eficiente ou para se preocupar com os desejos dos seus "clientes", como também está constantemente tentada a exercer seu poder de força de maneira brutal e coerciva. A "brutalidade policial" é uma característica bem conhecida do sistema policial estatal, e a única oposição prática a ela são algumas queixas remotas de alguns cidadãos molestados. Agora, se a polícia privada da associação comercial acaso caísse na tentação de brutalizar os clientes dos comerciantes, esses clientes rapidamente desapareceriam e iriam para outro lugar. Assim, a associação dos comerciantes teria de garantir que a sua polícia fosse cortês e eficiente.
Esse tipo de proteção policial eficiente e de alta qualidade iria prevalecer por todo o território, em todas as ruas e áreas privadas. Fábricas iriam proteger suas ruas e áreas adjacentes; os comerciantes, as suas ruas; e as empresas donas de estradas forneceriam uma proteção policial segura e eficiente em suas estradas pedagiadas e em qualquer outro tipo de estrada gerida privadamente. Roubos de carga e assaltos a caminhoneiros ou a viajantes comuns seriam nulos. O mesmo princípio é válido para bairros residenciais. Para esses bairros, podemos prever dois tipos possíveis de gerenciamento privado das ruas.
No primeiro tipo, todos os moradores de um determinado quarteirão podem se tornar os proprietários conjuntos daquele quarteirão, formando por exemplo a "Companhia do Quarteirão A". Essa companhia iria então fornecer a necessária proteção policial, os custos da qual seriam pagos tanto pelos moradores e proprietários de imóveis, como pelo aluguel dos inquilinos, caso a(s) rua(s) inclua(m) apartamentos alugados. Desnecessário dizer, mais uma vez, que os donos dos imóveis terão obviamente um interesse direto em garantir que seu quarteirão seja seguro, enquanto que aqueles que querem alugar seus imóveis tentarão atrair inquilinos oferecendo ruas seguras, além dos serviços mais habituais, como água, ar condicionado/calefação, zeladores, porteiros, etc. Perguntar por que os locadores deveriam fornecer ruas seguras em uma sociedade libertária e completamente privada seria tão tolo quanto perguntar hoje por que eles deveriam prover água e rede elétrica para seus inquilinos. A força da concorrência e da demanda do consumidor os obrigaria a fornecer tais serviços. Ademais, não importa se estamos considerando os moradores ou os imóveis para alugar, em ambos os casos o valor capital da terra e dos imóveis será função da segurança das ruas, bem como de todas as outras conhecidas características do imóvel e da vizinhança. Ruas seguras e bem patrulhadas irão aumentar o valor da terra e dos imóveis da mesma maneira que apartamentos bem cuidados são valorizados; ruas tomadas pela criminalidade irão depreciar o valor da terra e dos imóveis da mesma forma que apartamentos dilapidados são desvalorizados. Dado que os proprietários dos imóveis sempre vão preferir um valor maior para a sua propriedade, há um incentivo inerente para que forneçam ruas seguras, bem pavimentadas e eficientes.
No segundo tipo de gerenciamento privado das ruas em áreas residenciais, empresas privadas seriam donas apenas das ruas, e não das casas e dos prédios adjacentes. Essas empresas iriam então cobrar dos moradores e dos proprietários dos imóveis os serviços de manutenção, de melhoramento e de policiamento de suas ruas. Novamente, ruas seguras, bem iluminadas e bem pavimentadas irão estimular proprietários e inquilinos a se mudar para essas ruas; ruas inseguras, mal iluminadas e mal pavimentadas irão afugentar proprietários e usuários. A satisfação dos usuários e o incremento da demanda pelo uso das ruas — tanto por parte dos moradores como pelo trânsito de automóveis — irão aumentar os lucros e o valor das ações das empresas privadas que gerenciam as ruas; a insatisfação dos usuários e a diminuição do uso das ruas, bem como serviços decadentes da empresa, irão afugentar os usuários e diminuir os lucros e o valor das ações dessas empresas. Portanto, as empresas proprietárias das ruas farão o seu melhor para fornecer serviços eficientes, inclusive proteção policial, de modo a conquistar clientes e agradá-los; elas serão levadas a fazer isso pelo seu desejo de obter lucros e aumentar o valor do seu capital. É infinitamente melhor ter de depender da busca de interesses econômicos por parte de donos de imóveis e de empresas administradoras de ruas a ter de depender exclusivamente do "altruísmo" duvidoso de burocratas e funcionários do governo.
Nesse ponto da discussão, é possível que alguém esteja tentado a perguntar: se as ruas são geridas por empresas privadas, e admitindo que elas geralmente iriam se esforçar para agradar seus clientes com a máxima eficiência, o que aconteceria se algum proprietário de rua maluco ou tirânico repentinamente decidisse bloquear o acesso de um proprietário vizinho à sua rua? Como é que este iria entrar ou sair? Poderia ele ficar permanentemente bloqueado, ou mesmo ser extorquido para que lhe fosse permitida sua entrada ou saída? A resposta para essa questão é a mesma dada a um problema similar sobre propriedade de terras: suponha que todos os proprietários de imóveis ao redor da propriedade de uma pessoa repentinamente não mais a deixassem sair ou entrar. E aí? A resposta é que cada pessoa, ao comprar imóveis ou serviços de rua em uma sociedade libertária, iria se certificar de que a compra ou o contrato de arrendamento lhe garantisse acesso pleno por qualquer que seja o período de anos especificado. Com esse tipo de "servidão"[1] garantido a priori por contrato, nenhum tipo de bloqueio repentino seria permitido, já que ele seria uma invasão do direito de propriedade do dono do imóvel.
Não há obviamente nada de novo ou de assustador nos princípios dessa sociedade libertária até então imaginada. Já estamos familiarizados com os efeitos energizantes da concorrência entre serviços de transporte e entre determinadas localizações. Por exemplo, quando as ferrovias privadas estavam sendo construídas nos EUA durante o século XIX, a concorrência entre as empresas ferroviárias forneceu uma incrível força energizante para o desenvolvimento de suas respectivas áreas. Cada empresa fez o máximo possível para estimular a imigração e o desenvolvimento econômico nas adjacências de seus trilhos. A intenção, é claro, era aumentar seus lucros, o valor de suas terras e o valor do seu capital; e cada uma delas se apressou para fazer isso, pois caso contrário as pessoas e os mercados deixariam sua área e se mudariam para os portos, cidades e áreas servidas pelas ferrovias concorrentes. O mesmo princípio seria válido se todas as ruas e estradas também fossem privadas.
sss.jpgDa mesma forma, já estamos familiarizados com os serviços de proteção policial fornecidos por comerciantes e organizações particulares. Dentro de suas propriedades, as lojas têm vigias e sentinelas; os bancos têm guardas; as fábricas têm vigilantes; os shopping centers têm seguranças privados, etc. Uma sociedade libertária iria simplesmente expandir esse saudável e funcional sistema, levando-o também para as ruas. Não é por acaso que ocorrem muito mais assaltos e roubos violentos nas ruas fora das lojas do que assaltos às próprias lojas; isso é porque as lojas são munidas de precavidos guardas particulares, enquanto que nas ruas todos nós precisamos confiar na "anarquia" da proteção policial estatal. E de fato, em várias cidades do mundo têm crescido nos últimos anos, como resposta ao galopante problema da criminalidade, a contratação de vigias privados para patrulhar alguns quarteirões em troca de contribuições voluntárias dos proprietários de imóveis e moradores daquela região. A criminalidade nessas áreas sempre é substancialmente reduzida quando se adota esse método. O problema é que esses esforços às vezes se tornam vacilantes e ineficientes porque as ruas não são propriedade de seus residentes, e assim não há um mecanismo efetivo para se ajuntar o capital necessário que permita garantir uma proteção eficiente em base permanente. Além disso, os vigias que patrulham as ruas não podem estar legalmente armados porque eles não estão na propriedade de seus contratantes, e eles não podem, da maneira como podem donos de loja ou de outras propriedades, abordar qualquer pessoa que esteja agindo de maneira suspeita, porém não criminosa. Eles não podem, em resumo, fazer as coisas, financeira ou administrativamente, que proprietários podem fazer com suas respectivas propriedades.
E mais: um sistema em que a polícia é paga por proprietários e residentes de um quarteirão ou de um bairro iria não só pôr um fim na brutalidade policial contra os cidadãos, mas, principalmente, iria também acabar com o espetáculo atual em que a polícia é considerada em muitas comunidades como um grupo de colonizadores "imperiais" estrangeiros, que estão lá não para servir, mas para oprimir a comunidade. Por exemplo, atualmente temos uma situação comum e que é geral para todas as grandes cidades: áreas pobres e/ou habitadas por maioria negra são patrulhadas por uma polícia contratada por um governo central, governo esse que é tido como estranho para essas comunidades negras e pobres. Já com uma polícia fornecida, controlada e paga pelos próprios proprietários de imóveis e residentes de uma comunidade, a história seria completamente diferente; essa polícia estaria fornecendo — e todos sentiriam que ela estaria fornecendo — serviços aos seus clientes, ao invés de oprimindo-os em prol de uma autoridade estranha.
Um contraste dramático entre os méritos de uma proteção privada vs. pública foi fornecido por algo que aconteceu no Harlem, o bairro negro de Nova York. Na rua West 135th, entre a Sétima e a Oitava Avenida, está localizada a 82ª delegacia do Departamento de Polícia de Nova York. Todavia, a nobre presença dessa delegacia não evitou a erupção de uma onda de roubos noturnos a várias lojas da região. Finalmente, durante o inverno de 1966, quinze comerciantes da região se uniram e contrataram um vigia para patrulhar o quarteirão durante toda a noite; o vigia foi contratado junto a uma empresa privada de segurança que estava lá para fornecer a proteção policial que não estava sendo entregue pelos impostos sobre propriedade pagos pelos comerciantes. Desnecessário dizer que os roubos acabaram.
Mas a mais bem sucedida e mais bem organizada polícia privada em toda a história foi provavelmente a polícia ferroviária dos EUA, que era mantida por várias empresas ferroviárias com a missão de evitar injúrias aos passageiros e impedir o roubo de cargas. Essa moderna polícia ferroviária foi fundada no fim da Primeira Guerra Mundial pela Seção de Proteção da Associação Ferroviária Americana. Funcionou tão bem que, já em 1929, os pedidos de pagamento de indenização por roubo de carga haviam caído 93%. As prisões feitas pela polícia ferroviária — que, na época do maior estudo já feito sobre suas atividades, no início da década de 1930, totalizavam 10.000 homens presos — resultaram em uma porcentagem de condenações muito mais alta — variando de 83% a 97% — do que aquela atingida pelos departamentos de polícia convencionais. A polícia ferroviária era armada, podia prender normalmente e foi retratada por um criminologista nada simpático a ela[2] como sendo uma polícia que tinha uma ampla reputação de bom caráter e bom preparo.
Determinando as regras das ruas
Uma das indubitáveis conseqüências de todas as áreas terrestres de um país serem privadamente geridas por indivíduos e empresas é que haveria uma maior riqueza e diversidade de vizinhanças. A natureza da proteção policial e as regras aplicadas pela polícia privada dependeriam das vontades dos proprietários de imóveis ou dos donos das ruas, isto é, os donos de uma determinada área. Assim, os moradores mais receosos em uma área exclusivamente residencial iriam insistir que quaisquer pessoas ou carros que entrassem em sua área tenham previamente marcado hora com um morador, ou então que apenas fossem permitidos entrar através de interfones no portão de entrada. Ou seja, as mesmas regras que hoje são frequentemente aplicadas em prédios e condomínios fechados poderiam ser aplicadas para as ruas privadas dos bairros residenciais. Em outras áreas, as mais espalhafatosas, qualquer um poderia entrar a vontade; e ainda haveria vários outros graus de vigilância entre esses extremos. Muito provavelmente as áreas comerciais, ansiosas em não rejeitar e/ou repelir clientes, estariam abertas para todos. A busca pelo lucro é que determinaria a escolha do método mais eficiente. Isso forneceria uma grande disponibilidade de opções para os indivíduos, que de acordo com seus desejos e princípios poderiam escolher a área que lhes fosse mais aprazível.
Pode-se reclamar que tudo isso daria liberdade para "discriminar". Poderia haver discriminação contra o uso de imóveis ou das ruas por determinados tipos de indivíduos? Sim, não há dúvidas quanto a isso. Mas fundamental ao credo libertário é o direito de cada homem poder escolher quem pode entrar na sua propriedade ou fazer uso dela, considerando-se é claro que a outra pessoa queira fazê-lo.
"Discriminação", no sentido de escolher favoravelmente ou desfavoravelmente de acordo com qualquer que seja o critério que a pessoa utilize, é parte integral da liberdade de escolha — logo, de uma sociedade livre. Mas, é claro, no livre mercado qualquer discriminação é custosa, e acabará sendo paga pelo dono da propriedade em questão.
Por exemplo, suponha um indivíduo que, em uma sociedade livre, seja o proprietário de uma casa ou de um bloco de casas, e esteja em busca de inquilinos. Ele poderia simplesmente cobrar o preço de livre mercado do aluguel e deixar por isso mesmo. Mas aí surgem alguns riscos; ele pode escolher discriminar casais com filhos pequenos, não alugando o imóvel para eles por achar que há riscos substanciais de deterioração de sua propriedade. Por outro lado, ele pode muito bem escolher cobrar um aluguel mais caro para compensar o risco maior, de forma que o preço de livre mercado do aluguel para famílias desse tipo tenderá a ser mais caro do que seria de outra forma. Aliás, em um livre mercado, essa situação vai ocorrer na maioria dos casos. Mas e se houver uma "discriminação" pessoal, ao invés de uma estritamente econômica, da parte do locador? Suponha, por exemplo, que o locador seja um grande admirador de um determinado grupo étnico — por exemplo, suecos loiros e muito altos — e decida alugar seus apartamentos apenas para famílias de tal grupo. Em uma sociedade livre, ele estaria completamente em seu direito se assim procedesse. Mas ele claramente iria sofrer um grande prejuízo, pois teria de dispensar inquilino atrás de inquilino, em uma busca sem fim por suecos loiros e altos. Conquanto esse possa ser considerado um exemplo radical, o efeito é exatamente o mesmo — ainda que em grau variado — para qualquer tipo de discriminação no livre mercado. Se, por exemplo, o locador não gostar de ruivos e, por isso, determinar que não vai alugar seus apartamentos para esse tipo, certamente também irá sofrer prejuízos, ainda que não tão severos quanto no primeiro exemplo.
Em qualquer caso, sempre que alguém praticar "discriminação" no livre mercado, ele vai sofrer as conseqüências — seja na forma de prejuízos, seja na forma da perda de serviços recebidos como consumidor. Se um consumidor decide boicotar os bens vendidos por pessoas das quais ele não gosta - seja esse desgosto justificado ou não —, ele consequentemente irá ficar sem esses bens ou serviços que, de outra forma, teria comprado.
Portanto, em uma sociedade livre, são os donos das propriedades quem determinam as regras de uso de seus domínios, bem como as regras de admissão. Quanto mais rigorosas forem essas regras, menos pessoas irão demandar os serviços dessas propriedades, e assim o proprietário terá de fazer um equilíbrio entre rigor de admissão e perda de receita.
O preceito de que a propriedade é administrada por seus proprietários também fornece a refutação para um sempre utilizado argumento em favor da intervenção governamental na economia. O argumento afirma que "afinal, é o governo quem determina as regras do trânsito — luz verde e vermelha, direção do lado direito da pista, limites de velocidade, etc. Certamente todo mundo tem de admitir que o trânsito degeneraria em caos se não fossem tais regras. Portanto, por que o governo não deveria também intervir em todo o resto da economia?" A falácia aqui não é que o trânsito deva ser regulado; é claro que algumas regras são necessárias. Mas o ponto crucial é que tais regras sempre serão estabelecidas por quem quer que seja o dono e que, portanto, gerencie as ruas e estradas. O governo vem criando regras para o trânsito simplesmente porque é ele quem sempre foi o proprietário e, consequentemente, o gerente das ruas e estradas; em uma sociedade libertária baseada na propriedade privada seriam os proprietários quem iriam definir as regras para o uso de suas ruas.
Entretanto, será que em uma sociedade puramente livre as regras de trânsito não tenderiam a ser "caóticas"? E se alguns proprietários designassem a luz vermelha como "pare", enquanto outros escolhessem a verde, ou até mesmo uma azul, etc.? Não teríamos algumas ruas com a mão de direção no lado direito enquanto em outras ela seria no lado esquerdo? Tais perguntas são absurdas, é claro. Obviamente, seria do interesse de todos os proprietários de ruas e estradas terem regras uniformes para essas questões, de modo que o tráfego possa fluir e se integrar suavemente, sem dificuldades. Qualquer proprietário de rua excêntrico ou dissidente que insistisse em uma mão de direção à esquerda, ou no verde para "pare" ao invés de "vá", iria rapidamente se ver cercado de acidentes, além de perder todos os clientes e usuários.
É interessante observar que as ferrovias privadas nos EUA do século XIX enfrentaram problemas similares e os resolveram harmoniosamente e sem dificuldades. Cada ferrovia permitia os vagões de suas concorrentes em seus trilhos; elas se interconectavam entre si para benefício mútuo; as bitolas das diferentes ferrovias foram reajustadas para se tornarem uniforme; e classificações uniformes de cargas regionais foram implementadas para 6.000 itens. E tem mais: foram as empresas ferroviárias, e não o governo, que tomaram a iniciativa de consolidar a mixórdia caótica e ingovernável de fusos horários que existiam até então. Para ter exatidão na programação e na tabela de horários, as empresas tiveram de se unir; e em 1883 elas concordaram em alterar os cinqüenta e quatro fusos horários dos EUA para apenas os quatro que prevalecem até hoje. Um jornal financeiro de Nova York, o Commercial and Financial Chronicle, exclamou que "as leis do comércio e o instinto de auto-preservação efetuaram reformas e melhorias que todos os corpos legislativos juntos não conseguiram realizar!"
Precificando ruas e estradas
290524233_075612b7bc_o.jpgSe, em comparação, examinarmos as performances das ruas e estradas estatais, torna-se difícil imaginar que um gerenciamento privado poderia acumular um histórico mais ineficiente e irracional. Além da péssima qualidade, sobre a qual já virou clichê falarmos, hoje já é amplamente reconhecido, por exemplo, que os governos federal e estadual, incitados pelo lobby das fabricantes de automóveis, das petrolíferas, das fabricantes de pneu, e de empreiteiras e sindicatos, incorreram em uma vasta expansão de estradas. Em termos econômicos, estradas fornecem gordos subsídios aos seus usuários; em termos práticos, elas tiveram um papel central na morte das ferrovias como um empreendimento viável. Assim, enquanto caminhões podem operar em estradas construídas e mantidas pelo contribuinte, as empresas ferroviárias tiveram de construir e manter suas próprias estradas de ferro. Ademais, as estradas e ruas subsidiadas levaram a uma demasiada expansão de subúrbios acessíveis apenas por automóveis, que por sua vez levaram a uma demolição coerciva de várias casas e negócios, tanto para a construção de mais estradas, como para a construção dos subúrbios, e trouxeram um pesado fardo para o centro das cidades. O custo para o contribuinte e para a economia têm sido enormes.
Particularmente subsidiado tem sido aquele usuário urbano de automóvel que se locomove diariamente entre sua casa e o trabalho; e é precisamente nas cidades que os congestionamentos vêm aumentando como conseqüência desse subsídio dado aos usuários de automóveis, o que sempre leva a um excesso de oferta desse tipo de tráfego. O professor William Vickrey, da Universidade Columbia, estimou que as vias expressas urbanas foram construídas a um custo que varia entre 6 e 27 cents por veículo-milha, enquanto que os usuários dessas vias pagam em impostos, tanto o imposto sobre a gasolina como o imposto sobre o veículo automotor, apenas 1 cent por veículo-milha. Portanto, é o contribuinte regular, e não o motorista, quem paga pela manutenção das ruas. Ademais, o imposto sobre a gasolina é pago por milha rodada, não importa qual rua ou estrada esteja sendo usada, e não importa a hora do dia. Logo, quando estradas são financiadas pelos fundos arrecadados com o imposto sobre a gasolina, os usuários das estradas rurais de baixo custo estão sendo taxados com o intuito de subsidiar os usuários das vias expressas urbanas, cujos custos são muito maiores. Estradas rurais normalmente custam apenas 2 cents por veículo-milha para serem construídas e mantidas.
Além disso, o imposto sobre a gasolina dificilmente pode ser considerado um sistema racional de precificação para o uso das estradas, e nenhuma empresa privada jamais iria precificar dessa forma o uso de suas estradas. Empresas privadas precificam seus bens de forma a "equilibrar o mercado", de maneira que a oferta iguale a demanda e não haja nem escassez e nem excedentes. O fato de os impostos sobre a gasolina serem pagos por milha, independentemente da estrada, significa que as altamente demandadas ruas urbanas e estradas estão enfrentando uma situação tipicamente criada pelo governo: o preço cobrado pelo seu uso está muito abaixo do preço de livre mercado. Esse subsídio dado aos motoristas urbanos resulta em enormes e exacerbados congestionamentos nas ruas e estradas, especialmente nas horas do rush, enquanto que ao mesmo tempo deixa toda uma malha de estradas rurais praticamente inutilizada. Um sistema racional de precificação iria, ao mesmo tempo, maximizar os lucros para os proprietários das ruas e propiciar ruas sempre livres de congestionamento. No atual sistema, o governo mantém o preço para os usuários de ruas congestionadas em níveis extremamente baixos, e muito abaixo do preço de livre mercado; o resultado é uma escassez crônica de espaço trafegável, o que resulta em congestionamento.
Mas como seria um sistema racional de precificação instituído pelos proprietários privados das ruas? Em primeiro lugar, as ruas iriam cobrar pedágios, mas com variação de preços de acordo com a demanda. Por exemplo, os pedágios seriam bem mais caros durante a hora do rush e durante quaisquer outras horas de pico, e mais baratos durante as horas mais calmas. Em um livre mercado, a maior demanda durante as horas de pico levaria a preços de pedágio maiores, até que o congestionamento fosse eliminado e o fluxo do tráfego se tornasse estável. Mas as pessoas têm de trabalhar!, o leitor vai reagir. É claro, mas elas não têm de ir em seus próprios carros. Alguns irão compartilhar seus carros com outras pessoas (transporte solidário), enquanto outros irão pegar ônibus expressos (que seriam abundantemente ofertados em um livre mercado) ou trens; já outros irão se esforçar para alterar seus horários de trabalho, de modo a poderem ir e voltar em horas escalonadas. Dessa forma, o uso das ruas durante as horas de pico estaria restringido àqueles mais dispostos a pagar o preço de equilíbrio de mercado por seu uso.[3] Finalmente, os maiores lucros obtidos pelas empresas operadoras de túneis e pontes, por exemplo, estimulariam outras empresas privadas a construir mais dessas estruturas. A construção de ruas e estradas seria governada não pelos clamores de grupos de interesse e de usuários que querem mais subsídios, mas pelos eficientes cálculos de demanda e custo efetuados pelo mercado.
Não obstante tudo isso, a idéia de ruas urbanas privadas ainda espanta as pessoas. Afinal, como elas seriam precificadas? Onde exatamente ficariam os pedágios? Haveria pedágios em cada quarteirão? É óbvio que não, dado que tal sistema seria claramente anti-econômico, além de proibitivamente custoso tanto para o proprietário como para o motorista. Em primeiro lugar, os proprietários das ruas vão precificar o estacionamento em suas ruas muito mais racionalmente do que o modelo atual. Eles vão cobrar muito mais caro para se estacionar nas ruas congestionadas do centro, em resposta à enorme demanda. E contrariamente à prática atual, eles vão cobrar proporcionalmente mais caro, ao invés de mais barato, de quem estacionar durante todo o dia. Ou seja, os donos das ruas tentarão induzir uma rápida rotatividade nas áreas congestionadas. OK, tudo certo quanto a estacionar; novamente, esse é um quesito de fácil compreensão. Mas, e quanto a dirigir em ruas congestionadas? Como isso poderia ser precificado? Existem várias maneiras possíveis. Com a tecnologia moderna e seu constante aperfeiçoamento, desafios desse tipo são risíveis. Uma técnica arcaica sugere que câmeras de TV ou máquinas fotográficas sejam instaladas nas esquinas das ruas de modo a captar as placas dos veículos, com as faturas sendo enviadas aos motoristas ao final de cada mês. Outra, mais moderna, sugere que cada carro seja equipado com um receptor eletrônico que emitiria um sinal exclusivo por carro, sinal esse que seria captado por um aparelho instalado na referida esquina. Outra, ainda mais moderna, garante que sensores óticos, de alguma forma que só os engenheiros sabem, fariam todo o serviço.
330552_pr_01.gifO que importa aqui é que o problema da precificação racional das ruas seria de fácil resolução para a iniciativa privada e para a tecnologia moderna. A técnica que será utilizada para tal é problema para engenheiros. O que sabemos como economistas é que o livre mercado, a busca por lucros sob um o regime de propriedade privada e a moderna tecnologia são capazes de viabilizar essa exigência. Empreendedores em um livre mercado já se mostraram capazes de solucionar rapidamente problemas muito mais difíceis; tudo o que é necessário é dar a eles o espaço para agirem.
Conclusão
Se todos os sistemas de transporte se tornassem livres, se as estradas, as companhias aéreas, as ferrovias e as hidrovias fossem liberadas de suas labirínticas redes de subsídios, controles e regulamentações, e se elas se tornassem um sistema puramente privado, como os consumidores iriam alocar seu dinheiro para transporte? Será que voltaríamos às viagens ferroviárias, por exemplo? As melhores estimativas de custo e demanda para transportes predizem que as ferrovias se tornariam o principal meio de transporte de carga de longa distância, os aviões seriam os preferíveis para transporte de passageiros de longo alcance, os caminhões para cargas de pequena distância e os ônibus para as comutações púbicas diárias. Embora as ferrovias ressuscitassem para uso em transporte de cargas de longa distância, elas não seriam restabelecidas como transporte de passageiros.
Portanto, não é difícil imaginar um setor aéreo e uma rede de ferrovias particulares, não subsidiados e desregulamentados; mas poderia haver um sistema de estradas privadas? Tal sistema seria viável? Uma resposta é que estradas privadas funcionaram admiravelmente bem no passado. Na Inglaterra antes do século XVIII, por exemplo, as estradas — invariavelmente geridas pelos governos locais — eram mal construídas e pessimamente mantidas. Essas estradas públicas jamais teriam suportado a poderosa Revolução Industrial que a Inglaterra vivenciou no século XVIII, a "revolução" que prenunciou a era moderna. A vital tarefa de aperfeiçoar as praticamente intransitáveis estradas inglesas ficou a cargo de companhias privadas que, começando em 1706, organizaram e estabeleceram a grande rede de estradas que fez da Inglaterra a inveja do mundo. Os proprietários dessas companhias privadas eram em geral mercadores, donos de terras e industrialistas da área que estava sendo servida pela estrada, e eles recuperaram seus custos cobrando pedágios em pontos selecionados. Frequentemente, a coleta de pedágios era arrendada por um ano ou mais para indivíduos selecionados através de licitações concorrenciais. Foram essas estradas privadas que desenvolveram um mercado interno na Inglaterra e que reduziram enormemente os custos de transporte do carvão e de outros materiais volumosos. E já que era mutuamente benéfico para elas, as companhias de pedágio se interligaram entre si para poder formar uma rede de estradas interconectadas por todo o país — tudo isso resultado da iniciativa privada em ação.
Como na Inglaterra, o mesmo ocorreu nos EUA algum tempo depois. Defrontando-se novamente com estradas praticamente intransitáveis construídas por unidades governamentais locais, companhias privadas construíram e financiaram uma grande rede de estradas pedagiadas por todos os estados do nordeste americano, aproximadamente entre 1800 e 1830. Mais uma vez, a iniciativa privada provou-se superior na construção e manutenção de estradas, em oposição às retrógradas operações do governo. As estradas foram construídas e operadas por corporações privadas, que cobravam pedágios dos usuários. Essas empresas foram amplamente financiadas por mercadores e pelos donos das propriedades adjacentes às estradas, e elas voluntariamente se interligaram, formando uma rede interconectada de estradas. E essas foram as primeiras estradas realmente boas dos EUA.
_______________________
Murray N. Rothbard (1926-1995) foi um decano da Escola Austríaca e o fundador do moderno libertarianismo. Também foi o vice-presidente acadêmico do Ludwig von Mises Institute e do Center for Libertarian Studies.
Notas
[1] Em termo jurídico, servidão é um encargo que dá ao possuidor de um terreno o direito de usar ou tirar algum proveito de uma área contígua que pertence a terceiros. Por exemplo, direito de passagem, busca de água, instalação de fios elétricos, etc. [N. do T.]
[2] Ver Jeremiah P. Shalloo, Private Police (Philadelphia: Annals of the American Academy of Political and Social Science, 1933).
[3] Algumas pessoas podem argumentar que essa é uma idéia "elitista", pois apenas os mais ricos poderiam fazer uso constante de seus veículos. Como contra-argumento, basta lembrar que em uma sociedade puramente libertária não existe absolutamente qualquer tipo de imposto. E como a carga tributária média de um país como o Brasil está na casa dos 35%, isso significa que a ausência de todos os impostos deixaria toda a população mais rica, na média (os funcionários públicos, de início, empobreceriam; porém, em uma economia totalmente desregulamentada,  eles não teriam dificuldades em encontrar empregos mais produtivos e bem mais importantes, como os de manobrista, frentista, caixa de padaria, coveiro, etc. Não mais viveriam luxuosamente à custa de seus concidadãos).  Além disso, a ausência de impostos incidentes sobre mercadorias e transações, bem como a ausência de uma burocracia estatal que eleva o custo dessas transações, faria com que os preços dos bens e serviços caíssem significativamente. Logo, haveria um duplo aumento da riqueza.
Ademais, no caso brasileiro, o pagamento anual de pedágios dificilmente sairia mais caro do que o IPVA pago por dois carros, quantidade hoje normal para uma família de classe média-baixa. E isso sem levar em consideração o benefício da melhor qualidade das ruas e das estradas privadas, bem como a ausência de congestionamentos e a garantia de segurança plena.[N. do T.]

Murray N. Rothbard (1926-1995) foi um decano da Escola Austríaca e o fundador do moderno libertarianismo. Também foi o vice-presidente acadêmico do Ludwig von Mises Institute e do Center for Libertarian Studies. 

O mito de que o laissez faire é o responsável pela crise atual



MarxPress.jpgA imprensa está trabalhando com afinco para criar um dos maiores mitos da história: o mito de que a atual crise financeira é resultado direto da liberdade econômica e do capitalismo laissez faire.
A tentativa de culpar o laissez faire é prontamente confirmada por uma pesquisa no Google utilizando-se os termos "crisis + laissez faire". Na primeira página dos resultados, ou nos itens aos quais esses resultados levam, aparecem declarações dos seguintes tipos:
· "A crise hipotecária representa o fracasso do laissez faire".
· "[Nicolas] Sarkozy diz que a economia 'laissez faire', a 'auto-regulação', e a visão de que o 'todo-poderoso mercado' sempre sabe o que é melhor acabaram".
· "A ideologia americana do laissez faire, como praticada durante a crise do subprime, foi tão simplista quanto perigosa", diz Peer Steinbrück, ministro das finanças da Alemanha.
·  "[Henry] Paulson utiliza uma abordagem laissez faire para a crise financeira..."
·  "Para os dias do laissez faireau revoir"[1]
Artigos recentes no The New York Times fornecem confirmações adicionais. Por exemplo, um artigo declara que "Os Estados Unidos têm uma cultura que celebra o capitalismo laissez faire como sendo o ideal econômico..."[2]Um outro artigo nos informa que "Por 30 anos, o sistema político americano tem sido enviesado em favor das desregulamentações dos negócios e contrário a novas regras"[3] Em um terceiro artigo, uma dupla de repórteres garante que "Desde 1997, Mr. Brown [o Primeiro Ministro Britânico] tem sido uma voz poderosa em favor da adoção, pelo Partido Trabalhista, da filosofia econômica americanista que defende a baixa regulamentação. Essa postura laissez faire estimulou os bancos britânicos a se expandirem internacionalmente e irem buscar retornos em áreas bem distantes da sua missão principal, que é a de atrair depósitos."[4] Deste modo, até a Grã-Bretanha é descrita como tendo uma "postura laissez faire."
A mentalidade exibida nessas declarações está tão completamente em desacordo com o real significado delaissez faire que ela até seria capaz de descrever a política econômica da velha União Soviética, em suas últimas décadas, como sendo laissez faire. Por essa lógica, é assim que seria caracterizada a política de Brejnev e de seus sucessores de permitir que os trabalhadores das plantações coletivas cultivassem por conta própria pedaços de terra de até uma acre e vendessem o produto nos mercados das cidades soviéticas. Seguindo-se a lógica da mídia, isso também seria "laissez faire" — pelo menos em comparação à época de Stalin.
O capitalismo laissez faire tem um significado muito bem definido, mas que é totalmente ignorado, contradito e categoricamente corrompido por declarações como as de cima. O capitalismo laissez faire é um sistema político-econômico baseado na propriedade privada dos meios de produção em que os poderes do estado são limitados à proteção dos direitos do indivíduo contra a iniciação de qualquer força física. Essa proteção deve ser utilizada sempre que houver alguma iniciação de força física da parte de outros indivíduos, de governos estrangeiros e, mais importante, de seu próprio governo. Essa última função é realizada por recursos como uma constituição escrita, um sistema de divisão de poderes com pesos e contrapesos, uma explícita declaração de direitos, e uma eterna vigilância exercida pelos cidadãos que têm o direito de ter e portar armas. Sob o capitalismo laissez faire, o estado consiste apenas e essencialmente de uma força policial, tribunais de justiça, e uma força de defesa nacional, que reprime e combate aqueles que iniciarem força física. E nada mais.[5]
A total absurdidade dessas declarações que garantem que o atual ambiente político-econômico dos EUA de alguma maneira representa o capitalismo laissez faire se torna berrantemente óbvia quando se tem em mente o papel extremamente limitado do governo em um genuíno ambiente laissez faire e então compara esse papel aos seguintes fatos relativos à atualidade dos Estados Unidos:
1.      Os gastos governamentais nos EUA atualmente chegam a mais de 40 por cento da renda nacional — isto é, a soma de todos os lucros, salários e ganhos com juros auferidos no país. Isso sem levar em conta nenhum dos maciços gastos extra-orçamentários, como aqueles direcionados às semi-estatais Fannie Mae e Freddie Mac.Também não se está considerando os recentes gastos com os variados "socorros financeiros". O que essa porcentagem significa é que mais de 40 dólares de cada 100 produzidos são apropriados pelo governo contra a vontade dos cidadãos que produzem esse montante. O dinheiro e os bens envolvidos são entregues ao governo apenas porque os cidadãos que os produzem não querem ir para a cadeia. Assim, a liberdade de eles utilizarem a totalidade de sua própria renda é violada em escala colossal. Em contraste, sob um capitalismo laissez faire, os gastos do governo seriam tão modestos que uma simples tarifa sobre vendas poderia ser suficiente para financiá-los. O imposto de renda de pessoa física e jurídica, o imposto sobre a herança e sobre ganhos de capital, o imposto para a Seguridade Social e para a saúde pública não existiriam.
2.      Há atualmente quinze gabinetes ministeriais federais, nove dos quais existem com o único propósito de interferir respectivamente na habitação, nos transportes, na saúde, na educação, na energia, na mineração, na agricultura, no trabalho e no comércio; e praticamente todos eles atualmente invadem desrespeitosamente um ou mais aspectos da liberdade econômica do indivíduo. Sob um capitalismo laissez faire, onze desses quinze gabinetes deixariam de existir e somente os ministérios da justiça, da defesa, do estado e do tesouro permaneceriam. E, ademais, dentro desses ministérios, reduções adicionais seriam feitas, tais como a abolição da Receita Federal, pertencente ao Ministério do Tesouro, e da Divisão Antitruste, pertencente ao Ministério da Justiça.
3.      A interferência econômica dos atuais ministérios é reforçada e amplificada pelas mais de cem comissões e agências federais, sendo as mais conhecidas delas, além da Receita Federal, do Fed e da FDIC [agência federal cuja função é garantir os depósitos feitos em bancos comerciais], o FBI, a CIA, a EPA [agência que regulamenta o meio ambiente], a FDA [agência de vigilância sanitária, equivalente à nossa Anvisa], a SEC [agência que regulamenta a bolsa de valores — equivalente à nossa CVM], a CFTC [agência reguladora que controla os mercados de futuros e de opções], a NLRB [agência que regulamenta os sindicatos], a FTC [agência que regulamenta o mercado, para "proteger o consumidor"], a FCC [agência que regulamenta a área de telecomunicações e radiodifusão], a FERC [agência que regulamenta a área de energia], a FEMA [agência direcionada para serviços de emergência. Teve "ótima" atuação após o furacão Katrina], a FAA [agência que regulamenta o tráfego aéreo], o CAA [decreto do "ar limpo"], a INS [serviço de imigração e naturalização], a OHSA [agência da segurança do trabalho], a CPSC [agência que protege contra riscos associados ao consumo], a NHTSA [agência que regulamenta a segurança das estradas], a EEOC [agência que promove a igualdade racial nos empregos], a BATF [agência que regulamenta álcool, tabaco, armas de fogo e explosivos], o DEA [agência anti-drogas], a NIH [agência responsável por pesquisas biomédicas], e a NASA. Sob um capitalismo laissez faire, todas essas agências seriam abolidas, com a possível exceção do FBI, que seria reduzido às suas legítimas funções de contra-espionagem e de combate a crimes contra a pessoa e a propriedade que ocorressem entre os estados.
4.      Para completar esse catálogo de interferência governamental e de atropelamento de qualquer vestígio delaissez faire, o Registro Federal, datando do final de 2007, o último ano para o qual havia dados completos, continha 73.000 (setenta e três mil) páginas de detalhadas regulamentações governamentais. Trata-se de um aumento de mais de 10.000 (dez mil) páginas desde 1978. Esses 30 anos durante os quais ocorreu  esse aumento de páginas foram os mesmos anos em que, de acordo com o The New York Times, "o sistema político americano tem sido enviesado em favor das desregulamentações dos negócios e contrário a novas regras". Sob um capitalismo laissez faire não haveria Registro Federal. As atividades dos remanescentes ministérios e de suas subdivisões seriam controladas exclusivamente por legislações devidamente promulgadas, e não por regras criadas arbitrariamente por funcionários governamentais não eleitos.
5.     E, é claro, a tudo isso deve ser acrescentado o aparato maciço de leis, secretarias, agências e regulamentações em nível estadual e municipal. Sob um capitalismo laissez faire, a maioria desses aparatos seria completamente abolida, e os que restassem passariam pelo mesmo tipo de redução radical no tamanho e escopo por que passaram seus semelhantes em nível federal.
O que essa breve descrição mostrou é que o atual sistema político-econômico dos EUA está tão distante de um capitalismo laissez faire que, na realidade, ele se aproxima mais é de um estado policial. A capacidade que a mídia tem de ignorar toda a maciça interferência governamental que existe hoje e caracterizar o atual sistema econômico americano como sendo de liberdade econômica e laissez faire mostra que ela, se não profundamente desonesta, vive em um mundo ilusório.
A intervenção governamental é a responsável pela crise
Muito além disso está o fato de que a responsabilidade real pela crise financeira jaz precisamente nas maciças intervenções governamentais, principalmente nas intervenções realizadas pelo Federal Reserve System (o banco central americano), que fez injeções maciças de dinheiro no sistema financeiro baseando-se na crença de que simplesmente criar dinheiro do nada e disponibilizá-lo no mercado de crédito é um substituto válido para todo ocapital (riqueza) criado pela produção e pela poupança. Essa é uma política que o Fed vem seguindo — desde sua criação em 1913, mas com um vigor excepcional desde 2001 — para superar o estouro da bolha do mercado de ações cuja criação foi ele mesmo quem inspirou.
O Federal Reserve e outras porções do governo perseguem uma política de criação de dinheiro e crédito para proteger os bancos e ajudá-los a encobrir a realidade, fazendo parecer que é possível o correntista ter o dinheiro e emprestá-lo ao mesmo tempo. Essa fraude ocorre da seguinte maneira: quando indivíduos ou empresas depositam dinheiro nos bancos, eles continuam tendo acesso irrestrito a esse dinheiro — seja para fazer compras ou para pagar contas — por meio de cheques ou cartão de débito, ao invés de terem de utilizar o dinheiro físico. E como os bancos estão agora aptos a emprestar os fundos que foram depositados dessa forma (normalmente os bancos criam novas contas-correntes, ao invés de fazerem empréstimo direto de dinheiro físico), eles simplesmente incorrem na criação de dinheiro adicional. Os depositantes (correntistas) continuam tendo acesso ao dinheiro deles, ao mesmo tempo em que os tomadores de empréstimo têm agora acesso ao grosso dos fundos depositados. Ou seja, o mesmo dinheiro teoricamente agora tem dois donos distintos e com acesso simultâneo a ele. Nos anos recentes, o Banco Central estimulou a tal ponto esse processo que os depósitos à vista (conta-corrente) foram criados a uma razão 50 vezes maior do que as reservas reais em dinheiro que os bancos possuíam [ou seja, um compulsório de 2 por cento], uma situação mais do que propícia a implosão.
Todo esse novo e adicional dinheiro entrando no mercado de crédito é basicamente capital fictício, no sentido de que ele não representa novos e adicionais bens de capital no sistema econômico, mas, sim, uma mera transferência de parte da atual oferta de bens de capital que, em mãos diferentes, será aplicada em atividades menos eficientes e geralmente mais imprevidentes. A atual crise imobiliária é talvez o exemplo mais evidente disso em toda a história.
Uma quantia maior que um trilhão e meio de dólares de dinheiro criado do nada em conta-corrente foi canalizada para o mercado imobiliário como resultado das taxas de juros artificialmente baixas causadas pela presença de uma quantia crescente de dinheiro novo no mercado de crédito. Por causa da natureza de longo prazo de seu financiamento, o setor imobiliário é especialmente suscetível aos efeitos de taxas de juros mais baixas, que podem ser astutamente utilizadas para reduzir os pagamentos mensais de hipotecas. Isso fez aumentar a demanda por imóveis e pelos empréstimos hipotecários necessários para financiar essa demanda. (Ver um resumo dessa seqüência aqui).
Por um período de anos, o resultado foi um enorme aumento na construção e na compra de novos imóveis, o que fazia com que os preços das casas subissem rapidamente, o que levava a um espiral de novos aumentos na construção e na compra de novas casas na expectativa de que haveria um aumento contínuo em seus preços.
Para se ter uma medida da irresponsabilidade do Fed, no período de tempo transcorrido desde 2001 ele aumentou a oferta de depósitos em conta-corrente em mais de 70 por cento da quantia total que ele já havia criado durante os 88 anos de sua existência — ou seja, ele criou quase 2 trilhões de dólares.[6] Esse foi o aumento da quantia em que os depósitos a vista (conta-corrente) excediam as reservas bancárias (o dinheiro que os bancos têm disponível para pagar os correntistas que quiserem dinheiro físico). O Fed provocou esse aumento do capital ilusório por meio da criação de reservas bancárias adicionais. Ele criou essas reservas bancárias adicionais para poder atingir uma taxa de fundos federais (taxa básica de juros) — isto é, a taxa de juros que os bancos cobram entre si para o empréstimo de reservas no mercado interbancário — que estivesse muito abaixo da taxa de juros determinada pelo mercado. Durante um período de três anos, de 2001 a 2004, o Fed derrubou as taxas de juros para menos de 2 por cento e, de julho de 2003 a junho de 2004, ele as derrubou ainda mais, mantendo-as em aproximadamente 1 por cento. (Para ver em mais detalhes como o Banco Central determina as taxas de juros, clique aqui).
O Federal Reserve também possibilitou aos bancos operarem com uma porcentagem de reservas bancárias em seu menor nível histórico. Enquanto que num livre mercado os bancos manteriam reservas em ouro em um montante igual aos seus depósitos a vista — ou ao menos em uma proporção substancial de seus depósitos a vista[7] —, o Fed se esforçou para tornar possível que os bancos operassem com reservas de papel-moeda inconversível em um montante que sequer chegava a 2 por cento do total de depósitos.
O Federal Reserve derrubou a taxa básica de juros e produziu esse vasto aumento na oferta de capital ilusório com o propósito de diminuir todas as taxas de juros praticadas pelo mercado. Esse capital ilusório adicional só poderia encontrar tomadores de empréstimo a uma taxa de juros mais baixa. O objetivo do Fed era diminuir os juros a níveis tão baixos de modo que eles não poderiam sequer compensar o aumento nos preços. Ele deliberadamente buscou obter uma taxa de juros real negativa sobre o capital, isto é, uma taxa menor do que a taxa em que os preços sobem. Isso significa que um emprestador, ao receber os juros devidos após um ano, tem um poder de compra menor do que tinha no ano anterior, quando ele tinha apenas o seu principal.
Ao fazer isso, o objetivo último do Fed era estimular o investimento e os gastos em consumo. Ele queria que o custo de se obter capital fosse mínimo, de modo que ele pudesse ser investido na maior escala possível, e que as pessoas considerassem que segurar dinheiro fosse algo prejudicial, o que iria estimulá-las a gastá-lo mais rapidamente. Gastos e mais gastos eram tudo o que o Fed queria, na crença de que era isso o que devia ser feito para se evitar o desemprego em larga escala.
Depois de algum tempo, o desejo do Federal Reserve de obter uma taxa de juros negativa foi alcançado, mas em um grau muito além daquele desejado. Ele queria uma taxa real de retorno negativa em 1 ou 2 por cento. Mas o que ele obteve no mercado imobiliário foi uma taxa de retorno real negativa capaz de ser medida apenas em termos dos enormes prejuízos do capital investido. Nas palavras do The New York Times, "Desde que a crise começou, as instituições financeiras de todo o mundo já perderam por volta de $500 bilhões em títulos lastreados em hipotecas. A menos que alguma coisa seja feita para estancar o rápido declínio dos valores dos imóveis, essas instituições provavelmente irão perder valores adicionais em torno de $1 trilhão a $1,5 trilhão."[8]
Essa vasta perda de capital ocorrida na derrocada do setor imobiliário é que é responsável pela incapacidade de os bancos fazerem empréstimos para muitos negócios aos quais normalmente poderiam e iriam emprestar. A razão pela qual eles não podem mais emprestar é que os fundos e a riqueza real que foram perdidos não mais existem e, logo, não podem ser emprestadas a mais ninguém. Essa política do Federal Reserve de expansão de crédito baseada na criação de novos e adicionais depósitos a vista serviu apenas para disponibilizar capital para tomadores de empréstimo indignos de crédito. Consequentemente, tal política privou outros mutuários, com histórico creditício muito melhor, do capital que precisavam para permanecer com seus negócios ativos. Essa política se tornou uma política de redistribuição e destruição.
Esse capital que acabou sendo mal investido e perdido no setor imobiliário é um capital que agora está indisponível para empresas como Wickes FurnitureLinens 'N ThingsLevitz FurnitureMervyns e inúmeras outras, que foram à falência por não terem conseguido obter os empréstimos que precisavam para se manter operantes. E, é claro, dentre as principais vítimas estão os próprios grandes bancos. Os prejuízos que eles sofreram acabaram com seu capital e levaram-nos à bancarrota. E a lista de mortos e feridos certamente continuará subindo.
Qualquer discussão sobre a derrocada do setor imobiliário seria incompleta caso não se mencionasse o sistemático consumo do capital imobiliário que foi estimulado durante vários anos pela mídia e pelos ignorantes da ciência econômica. Crentes fiéis da ideologia keynesiana de que os gastos em consumo representam a base genuína da prosperidade, os palpiteiros consideravam que o constante aumento nos preços dos imóveis era uma maneira poderosa de estimular tais gastos. Se o preço dos imóveis aumenta, aumenta-se o patrimônio dos proprietários, o que os permite renegociar suas hipotecas e até mesmo contrair mais empréstimos para financiar mais consumismo. E isso, segundo os palpiteiros, manteria a economia funcionando em nível ótimo. Mas, o que ocorreu, foi previsivelmente o oposto: esse esquema serviu apenas para sobrecarregar muitas famílias com hipotecas que agora já são maiores do que o valor de suas casas. Isso não teria ocorrido caso as hipotecas não tivessem sido utilizadas para financiar mais consumo. Esse consumismo é a causa de ter havido uma perda de capital ainda maior do que a perda ocorrida em decorrência dos maus investimentos.
Também não seria completa uma discussão sobre a derrocada imobiliária que não mencionasse o papel exercido pelas garantias governamentais que foram dadas aos vários empréstimos imobiliários. Se o governo garante o principal e os juros de um empréstimo, não há qualquer motivo para que um emprestador se preocupe com as qualificações do mutuário — afinal, ele não terá prejuízos se fizer o empréstimo, não importa o quão ruim ele acabe sendo.
Um número substancial de empréstimos hipotecários carregava tais garantias. Por exemplo, um artigo do The New York Times descreveu o Ministério da Habitação e Desenvolvimento Urbano como "uma agência que azeitou as engrenagens hipotecárias para os compradores de primeira viagem, assegurando bilhões de dólares em empréstimos". O artigo descreve como esse ministério reduziu progressivamente os padrões de empréstimos: "famílias não mais precisavam mostrar um histórico de cinco anos de renda estável; três anos já eram suficientes... os emprestadores agora podiam eles mesmos escolher seus avalistas, ao invés de se submeterem a um grupo selecionado pelo governo... os emprestadores não mais tinham de entrevistar cara a cara os mutuários assegurados pelo governo", pois a aprovação do governo para a concessão do seguro hipotecário havia se tornado automática.
O artigo do Times segue descrevendo como que "Emprestadores" da estirpe do Countrywide Financial, que era um dos maiores e mais destacados, "despontaram em cena apenas para atender aqueles mutuários cujo histórico creditício era muito ruim para colocá-los na categoria de empréstimos 'prime', que cobra taxas de juros menores". O artigo observa que o "Countrywide assinou uma promessa ao governo de que faria uso de 'esforços ativos e criativos' para estender a propriedade de imóveis às minorias e aos americanos de baixa renda".[9] "Esforços ativos e criativos" é uma boa descrição do que os emprestadores fizeram ao oferecer tipos tão bizarros de hipotecas, como aquelas que requeriam o pagamento de "juros somente", e depois permitindo que até mesmo os juros deixassem de ser pagos ao utilizarem o artifício de adicionar os juros à quantia ainda pendente do principal. (Esse tipo de hipoteca era apropriado para aqueles cuja única razão de comprar uma casa era esperar que os preços subissem suficientemente para poderem revendê-la).
Da mesma forma que inúmeras casas foram compradas baseando-se na infundada crença de que os preços subiriam eternamente, uma vasta quantia de complexos derivativos financeiros foi vendida baseando-se na infundada crença de que o Federal Reserve de fato tinha o poder que sempre alegou ter de evitar toda e qualquer depressão — poder esse que a mídia e a maioria dos economistas repetida e entusiasmadamente afirmavam verdadeiro.
Os derivativos receberam uma cobertura tão negativa da imprensa que passa a ser necessário evidenciar que uma apólice de seguro de um imóvel é um derivativo. E muitos dos derivativos que foram vendidos e que agora estão criando problemas de insolvência e quebradeira — a saber, os "credit default swaps (CDS)" — eram apólices de seguro, de uma forma ou de outra. O defeito delas é que, ao contrário dos seguros comuns feitos para imóveis, os CDS não tinham uma lista de exclusões suficientemente abrangente.
As apólices de seguro de imóveis excluem de sua cobertura danos causados por guerras e, em vários casos, dependendo das condições de risco de uma determinada área, por terremotos e furacões. Da mesma forma, aqueles derivativos mais complexos deveriam excluir perdas resultantes de colapsos financeiros causados pela expansão maciça de crédito orquestrada por um banco central. (Porém, considerando-se que de fato seja impossível determinar tal exclusão, até porque muitos dos prejuízos podem ocorrer antes de a natureza da causa se tornar evidente, então esses derivativos não deveriam existir e o mercado não mais irá criá-los por causa dos riscos inaceitáveis que eles acarretam). Acontece que décadas de lavagem cerebral feita pelo governo, pela mídia e pelo sistema educacional acabaram convencendo a todos de que tal colapso não mais era possível.
A crença na impossibilidade de depressões também teve um papel proeminente na criação e venda das "collateralized debt obligations (CDOs - obrigações de dívidas colateralizadas)". Aqui, hipotecas de qualidade totalmente díspares foram empacotas conjuntamente e securitizadas no mercado secundário. Em muitos casos, grandes compradores empacotaram coleções dessas securities e securitizaram essas securities. Como cada vez mais proprietários foram dando calote em seus empréstimos, ninguém mais agora é capaz de julgar o valor dessas securities. Para fazer isso, seria necessário desemaranhar todos esses pacotes de securities até o nível de hipotecas individuais.
Tal emaranhado de securities jamais seria vendido em um mercado que não estivesse completamente sobrepujado pela intensa propaganda de que depressões são impossíveis sob o gerenciamento governamental do sistema financeiro.
Finalmente, uma discussão sobre a derrocada imobiliária não seria completa se não fizesse menção às formas de extorsão virtual que serviram para encorajar empréstimos a mutuários indignos de crédito. Sobre isso, a enciclopédia Wikipedia escreve,
Community Reinvestment Act [CRA] ... é uma lei federal americana cujo propósito é estimular os bancos comerciais e as associações de poupança a satisfazerem as necessidades dos tomadores de empréstimo de todos os segmentos de suas comunidades, inclusive as vizinhanças de baixa e média renda ... As regulamentações do decreto CRA dão aos grupos comunitários o direito de comentar e protestar contra os bancos que não cumprirem as diretivas do CRA. Tais comentários podem ajudar ou obstruir as expansões das atividades desses bancos.
Essas palavras significam exatamente isso: o decreto CRA dá poderes completos aos "grupos comunitários" para que eles determinem o sucesso ou o fracasso financeiro de um banco. Somente se um banco estivesse fazendo empréstimos significativos para mutuários que, em condições normais, não obteriam tais empréstimos, é que esses "grupos comunitários" ficariam satisfeitos e deixariam que o banco continuasse operando desimpedidamente. O mais famoso desses grupos comunitários é a ACORN.
Um decreto como o CRA só foi possível por causa das ameaças de calúnia contra os bancos, que seriam acusados de "racistas" caso escolhessem não conceder empréstimos a pessoas cujo risco creditício era enorme e que também calhassem de pertencer a alguma minoria. Essas ameaças de calúnia caíram como uma luva para várias agências governamentais que exercem poder discricionário sobre os bancos e que, por isso, têm o poder da intimidação e podem prejudicá-los caso não obedeçam aos desejos dessas agências. O mesmo é válido para todos os outros emprestadores de hipotecas, além dos bancos.
O que essa extensa análise das reais causas da atual crise financeira mostrou é que foi a intervenção governamental, e não um livre mercado ou um capitalismo laissez faire, a responsável por cada aspecto essencial dessa crise.
O mito do laissez faire e o marxismo da mídia
O mito de que o laissez faire existe nos EUA atual e de que ele é o responsável pela atual crise econômica é propugnado por pessoas que não têm conhecimento algum sobre uma teoria economia sólida e racional ou sobre a real natureza de um capitalismo laissez faire. Elas defendem tal idéia apesar de terem estudado — ou melhor,por terem estudado — nas principais faculdades e universidades do país e do mundo. Em termos de assuntos econômicos, essas pessoas foram educadas inteira e exageradamente nas doutrinas totalmente falaciosas e perniciosas de Marx e Keynes. Ao alegarem ver a existência de um laissez faire em meio a todas essas maciças interferências governamentais, que constituem o exato oposto do laissez faire, elas estão tentando reescrever a realidade com o intuito de fazê-la se conformar às suas visões e preconcepções marxistas do mundo.
Elas absorvem as doutrinas de Marx muito mais nas aulas de história, filosofia, sociologia e literatura do que nas aulas de economia. As aulas de economia, conquanto normalmente não sejam marxistas, fornecem apenas refutações altamente insuficientes das doutrinas marxistas e dedicam quase a totalidade do tempo defendendo o keynesianismo e outras doutrinas anticapitalistas menos conhecidas, tais como a doutrina da concorrência perfeita e pura.
São muito poucos os professores e alunos que já leram uma única página sequer dos escritos de Ludwig von Mises, que é o teórico supremo do capitalismo e alguém cujo conhecimento dos escritos é essencial para se obter uma compreensão profunda do capitalismo. Quase todos eles, portanto, são essencialmente ignorantes de uma teoria econômica sólida.
Quando eu digo que o sistema educacional e a mídia são marxistas, não estou insinuando que seus membros defendem a socialização completa da propriedade ou que eles são necessariamente defensores do socialismo. O que estou dizendo é que eles são marxistas na medida em que aceitam as idéias de Marx em relação à natureza e ao funcionamento do capitalismo laissez faire.
Eles aceitam a doutrina marxista de que, na ausência de uma intervenção governamental, o interesse próprio e a busca do lucro — a "cobiça desenfreada" — dos empresários e capitalistas iriam derrubar o salário para um mínimo de subsistência, enquanto que elevariam as horas de trabalho para o limite da resistência humana, impondo condições de trabalho horríveis e obrigando crianças pequenas a irem trabalhar nas fábricas e nas minas. Eles apontam para o padrão de vida miseravelmente baixo e para as terríveis condições suportadas pelos assalariados nos primórdios do capitalismo, principalmente na Grã-Bretanha, e acreditam que isso comprova sua argumentação. E eles prosseguem, argumentando que foram apenas as intervenções do governo na forma de legislações pró-sindicatos e pró-salário mínimo, leis de jornada máxima de trabalho, proibição de qualquer trabalho infantil, e decretos referentes às condições de trabalho, que serviram para melhorar as condições dos assalariados. Eles acreditam que a revogação dessas legislações levaria a um retorno das miseráveis condições econômicas do início do século XIX.
Eles vêem os lucros dos empresários e capitalistas como sendo ganhos imerecidos e injustos, arrancados dos assalariados — supostamente os verdadeiros produtores — pelo equivalente à força física, donde consideram que os assalariados são escravos virtuais ("escravos assalariados") e que os capitalistas "exploradores" são os virtuais donos de escravos. Intimamente ligado a isso, eles consideram que a tributação dos empresários e capitalistas e o conseqüente uso desses proventos em benefício dos assalariados, em aplicações como a seguridade social, a saúde pública, a educação pública, e as moradias públicas, são políticas que servem pura e simplesmente para devolver aos assalariados uma pequena porção da renda que alegadamente lhe foi pilhada durante o processo da "exploração".
Em total acordo com Marx e sua doutrina de que, sob o capitalismo laissez faire, os capitalistas expropriam toda a produção do assalariado acima do nível necessário para sua mínima subsistência, eles crêem que a intervenção do governo não prejudica ninguém, exceto os capitalistas e empresários imorais. Nunca os assalariados. Assim, não apenas os impostos utilizados para pagar pelos programas sociais, mas também os salários mais altos determinados pelas legislações pró-sindicatos e pró-salário mínimo, são tidos como saídos unicamente dos lucros, sem qualquer efeito negativo sobre os assalariados, como o desemprego. O mesmo raciocínio se dá para o efeito da menor carga horária de trabalho imposta pelo governo, para as condições de trabalho melhores e para a abolição do trabalho infantil: os custos maiores resultantes dessas políticas simplesmente são considerados como se saídos da "mais-valia" dos capitalistas, e nunca do padrão de vida dos próprios assalariados.
Essa é a mentalidade de toda a esquerda e em particular dos membros do sistema educacional e da mídia. É a visão de que a busca pelo lucro e pela satisfação material são inerentemente letais caso não sejam forçosamente retaliadas e rigidamente controladas pela intervenção governamental. É, como foi dito, uma visão que considera os empresários e os capitalistas como sendo donos de escravos, não obstante o fato de que empresários e capitalistas não utilizam armas, chicotes ou correntes para encontrar e manter seus trabalhadores. Ao contrário, a única arma do capitalista e do empresário é oferecer melhores condições e melhores salários em relação ao que esses trabalhadores poderiam encontrar alhures.
Não surpreendentemente, o sistema educacional e a mídia compartilham a visão de Marx de que o capitalismo laissez-faire é uma "produção anárquica", o qual os empresários e os capitalistas gerenciam atabalhoadamente, como galinhas sem cabeça.  Na visão deles, racionalidade, ordem e planejamento emanam apenas do governo, e não de participantes no mercado.
E essa, como eu disse, é a estrutura intelectual da grande maioria dos professores de hoje e de suas várias gerações predecessoras. E essa é exatamente a mesma estrutura intelectual de seus alunos, que zelosamente absorveram seus ensinamentos equivocados e que acabaram, alguns deles, se tornando repórteres e editores das principais publicações midiáticas, tanto jornais como revistas. É a intelectualidade de seus alunos que hoje comenta e comanda as edições de praticamente todos os canais de notícias.[10] E é através dessa estrutura intelectual que a mídia hoje tenta entender e reportar a atual crise financeira.
De acordo com a visão deles, o capitalismo laissez faire e a liberdade econômica são uma fórmula para a injustiça e para o caos, ao passo que o governo é a voz e o agente da justiça e da racionalidade nas questões econômicas. Tão firmemente eles mantêm essa crença que, quando vêem algo que pensam ser evidência de injustiça e caos em larga escala no sistema econômico, tal como ocorreu na atual crise financeira, eles automaticamente presumem que isso seja o resultado previsível da busca pelo interesse próprio e da liberdade econômica que torna possível essa busca. Dada essa atitude básica, o princípio que guia os "jornalistas" contemporâneos é a idéia de que sua função é encontrar os empresários e capitalistas que são responsáveis pela maldade e os funcionários do governo que deram a liberdade para eles cometerem esse mal. Finalmente, uma vez cumprida a missão acima, a tarefa final passa a ser identificar e apoiar as políticas de intervenção e controle governamental que supostamente irão eliminar o mal e impedir sua repetição no futuro.
Seu temor e ódio da liberdade econômica e do capitalismo laissez-faire, bem como a necessidade que sentem de serem capazes de denunciar o sistema como sendo a causa de todos os malefícios econômicos, são tão grandes que eles chegam ao ponto de fingir para eles mesmos e para sua audiência que tal sistema de fato existe no mundo atual, quando ele claramente não existe nem remotamente. Ao fazerem a assertiva de que o laissez faireexiste e é o responsável pelo problema atual, eles se tornam aptos a direcionar toda a força do ódio que sentem pela liberdade econômica e pelo capitalismo laissez faire contra aquela mínima fatia de liberdade econômica que, de alguma maneira, conseguiu se manter existindo e contra a qual os iluminados agora decidiram desferir sua fúria. Essa fatia, eles alegam, é a responsável total pela inanição dos trabalhadores na desumana exploração da mão-de-obra que, em sua ignorância, eles garantem que é imposta pelos capitalistas sob um sistema laissez faire. Suas platéias, já devidamente doutrinadas pela lavagem cerebral tanto da mídia como do ambiente educacional que freqüentaram, rapidamente passam a seguir ordens e ajudam no esforço de estimular o ódio.
O resultado é sentenciado por palavras como as que seguem, que apareceram em um daqueles mesmos artigos doThe New York Times que eu havia citado antes:
Temos agora uma raiva coletiva, uma repulsa, por todo o sistema financeiro, e é óbvio que teremos uma forte reação regulatória... cujos efeitos irão se transmitir para outros setores porque os eleitores estão com a consciência de que "as grandes empresas são animais selvagens e elas precisam ser colocadas em suas jaulas"[11]
E é dessa maneira que os inimigos do capitalismo e da liberdade econômica se mostram capazes de prosseguir sua campanha em prol da destruição econômica e da devastação. Eles utilizam a acusação de "laissez faire" como uma espécie de gazua para aumentar os poderes do governo. Por exemplo, no início dos anos 1930, eles acusaram o presidente Hoover de estar seguindo uma política laissez faire, mesmo com ele intervindo maciçamente na economia para impedir a queda dos salários, queda essa que era essencial para evitar que uma reduzida demanda por mão-de-obra se transformasse em desemprego em larga escala. O desemprego maciço que previsivelmente resultou dessa intervenção de Hoover, e o qual eles tiveram êxito em justificar como sendo conseqüência dolaissez faire, foi utilizado ardilosamente por eles para enganar todo o país, fazendo as pessoas apoiarem resolutamente as intervenções ainda maiores que surgiram depois, com o New Deal.
Hoje, eles continuam jogando esse mesmo jogo. Sempre denunciando o laissez faire e sempre alegando que os fracassos desse fantasma precisam ser superados com ainda mais regulamentações e controles governamentais. Hoje, as maciças intervenções não só do New Deal, mas também do Fair Deal (Truman), da New Frontier (Kennedy), da Great Society (Johnson) e de todas as administrações subseqüentes, foram acrescentadas àquelas mesmas grandes intervenções que já existiam ainda na década de 1920 e às quais Hoover substancialmente expandiu. E, ainda assim, supostamente continuamos vivendo sob o laissez faire. Parece que enquanto alguém continuar sendo capaz de se mover e respirar sem estar sob o jugo do estado, o laissez faire continuará sendo a política dominante, o que torna necessário a criação de ainda mais controles governamentais.
O ponto final lógico desse processo é que, um dia, todos terminarão acorrentados a uma parede, ou ao menos sendo forçados a fazer algo tipo viver em um CEP cujos números sejam os mesmos do seu CPF. E então o governo saberá exatamente quem é cada um, onde essa pessoa está e deixará claro que ela não poderá fazer absolutamente nada sem antes ter obtido a devida aprovação e permissão do estado. E então o mundo estará a salvo de qualquer um que tente fazer algo que o beneficie e que, por isso, supostamente prejudique os outros. E, quando chegarmos a esse ponto, o mundo irá desfrutar toda a prosperidade gerada pela total paralisia.

Um “austríaco híbrido” e pouco conhecido: Wicksteed



Wicksteed.jpg
Este artigo não pretende ser original. Minha principal motivação para escrevê-lo é tornar mais conhecido o nome de um economista que muito provavelmente só nos remete vagamente a uma ou outra nota de rodapé esquecida na implacabilidade do tempo e na imensidade de livros já lidos e que repousam em alguma estante. Não realizei pesquisa profunda para esse intento, apenas tomei como principal referência um artigo de Israel Kirzner que vou mencionar mais adiante, bem como informações que colhi durante poucos dias na Internet. Alguns confundem seu sobrenome com o deKnut Wicksell (1851-1926), considerado o pai da Escola Sueca de Economia e famoso por sua obra no campo da teoria monetária.
Mas de quem vamos tratar aqui é de Philip Henry Wicksteed (1844-1927), filho de um clérigo da igreja unitária, que foi ministro dessa mesma denominação (que, como sabemos, acredita em um Deus uno, rejeitando a Santíssima Trindade), classicista, medievalista (ficou famoso por seus trabalhos sobre a obra do poeta florentino Dante Alighieri), crítico literário e, a partir da meia idade, economista. Foi influenciado por Henry George e William Stanley Jevons e exerceu alguma influência sobre o pensamento de Joseph Schumpeter, Ludwig von Mises e, mais tarde, Henry Hazlitt e Murray Rothbard.
Seu interesse em Dante serviu para consagrá-lo como um dos maiores medievalistas de sua época e suas motivações teológicas, bem como sua preocupação com a ética da sociedade comercial moderna despertaram seu interesse  pela economia. Talvez essas preocupações o tenham levado a ser membro da Sociedade Fabiana, uma organização britânica cujo objetivo era propagar os princípios socialistas de maneira gradual, mediante reformas e não por revoluções, algo como o que tentou fazer Antonio Gramsci posteriormente. Essa sociedade deu origem a uma reformulação política da qual acabou surgindo, em 1900, o Partido Trabalhista britânico.
Mas como? Um socialista da Escola Austríaca? Bem, não nos assustemos com isso, porque Joseph Schumpeter chegou a escrever que Wicksteed "estava um pouco fora da profissão de economista"...
No entanto, sua teoria econômica é anti-marxista por excelência. Como escreveu Alceu Garcia em 2002,
"Quando a doutrina econômica marxista emergiu de sua obscuridade inicial em fins do século XIX e reclamou um lugar de honra no panorama teórico da disciplina, já encontrou um novo e firme edifício científico erigido a partir das descobertas dos pioneiros do marginalismo, na década de 1870. Descartada a teoria clássica do valor-trabalho, o marxismo, que dela deduzia todo o seu sistema, também soçobrou. Autores treinados na nova técnica, como Eugene von Böhm-Bawerk, Philip Wicksteed e Vilfredo Pareto, analisaram e refutaram as teses marxistas com a maior facilidade. O marxismo foi portanto barrado na porta de entrada do templo da respeitabilidade científica no campo da economia, e ficou confinado a guetos ortodoxos estagnados que não eram levados a sério fora de seu círculo".
Portanto, ele poderia ser enquadrado atualmente como um social-democrata moderado e não como um socialista e muito menos como um comunista. Wicksteed manteve uma postura subjetivista no pensamento econômico, colocando a medida de valor na mente do consumidor e não apenas no próprio bem. Mesmo não tendo sido reconhecido em vida como um grande economista, influenciou, embora indiretamente e nem sempre claramente, a segunda geração de austríacos notáveis, ??entre eles Ludwig von Mises, em cuja obra alguns insights de Wicksteed são perceptíveis às mentes mais atentas.
Além disso, devemos notar que sua preocupação sempre manteve natureza teológica e que foram aquelas questões de forte apelo no que hoje os politicamente corretos chamam de "social" que contribuíram para despertar seu interesse pela ciência econômica.
Lecionou economia durante muitos anos em Londres e, em 1894, publicou seu célebre An Essay on the Co-ordination of the Laws of Distribution, em que tentou provar matematicamente que um sistema distributivo que recompensasse os proprietários das fábricas de acordo com a produtividade marginal esgotaria o produto total produzido. Mas foi em 1910, com The Common Sense of Political Economy, que surgiu mais claramente sua maneira peculiar de enxergar a teoria econômica.
Como observou o Prof. Israel Kirzner no capítulo 7 do excelente The Great Austrian Economists  (Randall G. Holcombe, Mises Institute, 1999. iBooks), sob o título Philip Wicksteed: the British Austrian, Wicksteed ocupa na História do Pensamento Econômico uma posição situada entre a de Jevons e a dos austríacos.
A opinião de Kirzner é que, do ponto de vista doutrinário, Wicksteed tem alguma identificação com a tradição iniciada por Carl Menger, embora não possamos classificá-lo como um austríaco puro, no senso que essa expressão significa. Embora tenha sido contemporâneo de Menger, Wieser e Böhm-Bawerk, tudo leva a crer que ele não teve contacto direto e nem por cartas com nenhum deles e nem tampouco esteve em Viena. Mas, emThe Common Sense, obra com quase novecentas páginas distribuídas em dois volumes, ele citou Menger duas vezes, Wieser três, Böhm-Bawerk duas e Mises uma vez, ainda que não tenha revelado qualquer influência forte dessa primeira geração de economistas austríacos. Quem teve maior influência sobre ele foi William Stanley Jevons, citado diversas vezes no livro mencionado e que de certa forma também possuía algo de "austríaco". Sua obra influenciou em alguns pontos a segunda geração dos seguidores da tradição de Menger, mas, embora Mises, no final de sua vida, tenha se referido ao The Common Sense como um "grande tratado" de Wicksteed, ninguém pode afirmar que tenha sido fortemente influenciado por ele. Em Ação Humana, Mises o cita apenas uma vez, em uma nota de rodapé.
Em que sentido, então, o Prof. Kirzner, um austríaco de quatro costados, refere-se a Wicksteed como um "austríaco britânico"? A resposta é que existe uma afinidade não desprezível entre ele e os austríacos em relação ao âmbito, caráter e conteúdo da análise econômica. Sob o ponto de vista ideológico, no entanto, Wicksteed não foi um austríaco, pois era um tanto simpático ao socialismo, como observamos anteriormente, o que se explica pelo fato de que em sua época, as ideias socialistas tinham apelo mais forte em Londres do que em Viena. É importante, para que o entendamos melhor, atentarmos para o fato de que sua abordagem não seguiu a tendência marshalliana dominante naquele tempo, nem tampouco a de Leon Walras que, como sabemos, juntamente com Menger e Jevons, foram os "descobridores" da doutrina da utilidade marginal, em 1871, embora trabalhando independentemente. Foi por desconfiar ou rejeitar o pensamento clássico sobre o funcionamento dos mercados e por rejeitar as ideias de Marx que Wicksteed aproximou-se dos austríacos, especialmente de Mises.
Naqueles anos, a maior influência sobre a mainstream economics era a de Alfred Marshall, que a herdara dos clássicos. Marshall não procurou destruir essa tradição, mas limitou-se a preencher algumas lacunas que julgava haver encontrado nas obras dos economistas clássicos. Já Wicksteed, assim como Menger e Jevons, acreditavam que era preciso fazer uma reconstrução completa na teoria econômica. Marshall foi um revisionista, enquanto Wicksteed foi um revolucionário em termos de teoria econômica.
Kirzner, no artigo citado, escreve que podemos identificar fortes componentes austríacos nesse intento revolucionário de Wicksteed, que seriam decorrentes de sua postura subjetivista e destaca três deles, a saber, sua forte ênfase no componente subjetivista dos custos; sua rejeição à visão clássica da teoria econômica com seu modelo do homo oeconomicus; e sua preocupação com o processo de mercado, em contraposição à visão clássica de equilíbrio de mercado. A esses três componentes analisados pelo Prof. Kirzner, acrescento um quarto, que pode revelar alguma influência na obra de Hayek, especialmente a partir dos anos quarenta, o da imperfeição do conhecimento.
Nas palavras de Kirzner,
Podemos aventar a hipótese de que, em relação a estes três aspectos do 'austrianismo' de Wicksteed, o primeiro parece ter sido o que mais impressionou o Robbins, o segundo talvez seja o que mais tenha impressionado Mises, e o terceiro talvez seja o de maior interesse para os austríacos modernos, os discípulos de Mises e Hayek.
Vamos resumir em seguida cada um desses três componentes austríacos seguindo o excelente artigo de Kirzner.
1o. O subjetivismo
Wicksteed se rebelou contra a visão clássica da atividade econômica, especialmente a de produção, que a estuda a partir de relações estritamente técnicas, totalmente distintas das considerações de utilidade marginal que regem as decisões de consumo. Para ele, em nenhum caso o custo de produção pode ter influência direta sobre o preço de uma mercadoria, pois, em todos os casos em que os custos de produção ainda não foram incorridos, o fabricante faz uma estimativa das alternativas ainda em aberto para ele antes de determinar se, e em que quantidades, a mercadoria deve ser produzida, e o fluxo de produção assim determinado estabelece o valor marginal e o preço.
A única hipótese em que o custo de produção pode afetar o valor de um bem é no sentido de que ele próprio é o valor de outro bem. Assim, os custos de produção possuem uma natureza claramente subjetiva. Para Wicksteed, então, o custo desempenha um papel na explicação do preço de mercado apenas quando equivale ao valor previsto de uma alternativa em perspectiva, que é, no momento da decisão de produção, rejeitada em favor do que se decidiu produzir.
Como observou o Prof. James Buchanan, "o trabalho de Wicksteed exerceu uma influência muito importante na teoria dos custos que surgiu no final dos anos 1920 e início dos anos 1930 na London School of Economics".
2o. O objeto de estudo da teoria econômica
Em Common Sense, Wicksteed manifesta grande interesse sobre o que realmente significa o adjetivo economics(em português, o melhor significado para esta palavra é teoria econômica). E ele manifesta essa sua busca tentando desenvolver as implicações revolucionárias da obra de Jevons, tentando demonstrar a incoerência da visão clássica da teoria econômica, sustentando que é arbitrário o procedimento analítico de enxergar a busca de riqueza material como um campo exclusivamente distinto da pesquisa econômica. E vai mais além, argumentando que, além de arbitrário, esse expediente é inútil, do ponto de vista analítico, para sequer dizer o mínimo, para enxergar as conclusões da ciência econômica como dependentes do domínio dos motivos egoístas — empregados não com o sentido de individualistas -, que são característicos do homo oeconomicus.
Nesse aspecto, as semelhanças com os insights de Mises são bastante visíveis. Ambos insistiram no aspecto da aplicação universal das conclusões deduzidas de nossa compreensão dos propósitos e racionalidade dos agentes econômicos ao tomarem suas decisões. Então, um preço, no sentido mais restrito do "dinheiro usado para adquirir um bem material, um serviço ou um privilégio", é para ele apenas um caso especial de um conceito mais amplo, aquele das condições sob as quais diversas alternativas são oferecidas aos agentes.
Para Mises, a exclusão de motivos altruístas da teoria econômica é arbitrária, porque é baseada em uma compreensão equivocada dos fins da ação humana, já que o que movimenta o comportamento dos agentes nos mercados são simplesmente suas intenções. Wiksteed caminhou dentro dessa perspectiva, ao insistir que o "propósito de excluir de consideração os motivos benevolentes ou altruísticos no estudo da teoria econômica é algo completamente irrelevante e inadequado".
Então, vemos com clareza que aquilo que Wicksteed e os austríacos estavam fazendo era consistentemente e subjetivamente redirecionar o foco da análise econômica dos objetos puramente materiais do método clássico para as implicações das escolhas individuais. Aqui, encontramos um componente do individualismo metodológico comum a Wicksteed e aos austríacos.
3o. O mercado como um processo
Na concepção de Wicksteed, um mercado "é o mecanismo pelo qual os que possuem escalas de preferências elevadas para um determinado bem são colocados em comunicação com os que, relativamente ao mesmo bem, possuem escalas de preferências baixas, de modo que as trocas podem oferecer satisfação mútua até que o equilíbrio seja estabelecido. Mas esse processo sempre e necessariamente exige tempo". [negritos nossos]
Sem qualquer dúvida podemos achar aspectos dessa definição consistentes com os postulados da Escola Austríaca sobre o processo de mercado. Alguns poderão argumentar que a afirmativa de Wicksteed de que os mercados tendem para o equilíbrio seria "não austríaca", mas por outro lado — e aí é que reside sua importância — ele também reconhece explicitamente que o mercado é um processo em que há uma tendência demorada, ou seja, que demanda tempo, no sentido do equilíbrio, durante a qual os agentes estão em comunicação uns com os outros e não como uma instituição social em que se assume no instante seminal a hipótese de conhecimento perfeito mútuo, que é instantaneamente transplantado em uma matriz de preços e quantidades de equilíbrio.
Aqui, é bastante clara a semelhança de Wicksteed com Mises, Rothbard e o próprio Kirzner, bem como com Hayek, este último no que se refere à imperfeição e dispersão do conhecimento. Lionel Robbins, na longa introdução que escreveu para The Common Sense, já chamava a atenção para esse aspecto austríaco da obra de Wicksteed, muitos anos antes de Hazlitt, Rothbard e Kirzner sequer pensarem em estudar economia, como também bem antes de Hayek desenvolver sua teoria do conhecimento.
A abordagem de Wicksteed é diferente das de Jevons e Marshall e é bem diferente da de Pareto que, como sabemos, na linha de Leon Walras, se transformou no principal teórico do "equilíbrio geral". Sua análise do equilíbrio não o vê como um fim por si próprio, mas como uma ferramenta analítica para tentar explicar as tendências de uma determinada situação do mundo real. Sua preocupação com a evolução ao longo do tempo dos fenômenos econômicos era muito maior do que com os resultados finais momentâneos. Então, vemos que Wicksteed, dentro da tradição austríaca, vê as decisões dos agentes nos mercados não como implicações de condições de equilíbrio que de alguma forma foram aceitas como existentes, mas como as causas iniciais, bem como as fases características do processo de mercado em seu caminhar no sentido do equilíbrio.
4o. A questão do conhecimento
Ao rejeitar o equilíbrio dos mercados como paradigma da ciência econômica e ao analisar os mercados como processos dinâmicos, Wicksteed, implicitamente, estava querendo chamar a atenção para o fato de que o conhecimento dos agentes econômicos das circunstâncias de tempo e de espaço não é perfeito e ao definir os mercados como mecanismos em que os indivíduos com escalas de preferências elevadas para um determinado bem se comunicam com os que, relativamente ao mesmo bem, têm escalas de preferências baixas, de modo que as trocas podem oferecer satisfação mútua até que o equilíbrio seja estabelecido, ele estava antecipando os rudimentos da teoria do conhecimento que Hayek desenvolveria a partir dos anos quarenta.
Nesse sentido, Wicksteed também foi um austríaco. Não tenho informações sobre se Hayek conhecia com profundidade a obra de Wicksteed, mas a probabilidade de que a conhecesse é quase de 100%, o que me permite incluir este quarto elemento que não foi enfatizado por Kirzner em seu brilhante artigo. Portanto, creio que podemos admitir que Hayek, conhecedor profundo da obra de Mises, que, por sua vez, conhecia bem a de Wicksteed, também foi de certa forma influenciado por este último.
Kirzner conclui seu artigo escrevendo que
"Em conclusão, talvez o sentido em que Wicksteed pode ser visto como um austríaco possa ser encontrado nas observações de Mises acerca das características distintivas do economista".
E encerra citando Mises,
"O economista trata de assuntos presentes e operantes em cada homem. O que distingue [o economista] de outras pessoas não é nenhuma oportunidade esotérica para lidar com algum assunto não acessível aos outros, mas a maneira como ele olha para as coisas e descobre nelas os aspectos que as outras pessoas não conseguem perceber. Foi isso que Philip Wicksteed tinha em mente quando escolheu para seu grande tratado [The Common Sense] um lema do Fausto, de Goethe: A vida humana todos a vivem, mas apenas poucos a conhecem". [Em alemão: Eins jeder lebt's, nicht vielen ist's bekannt e em inglês; We are all doing it; very few of us understand what we are doing"]
Esta frase de Goethe também pode ser aplicada, claramente, à questão hayekiana da limitação do conhecimento: se quase todos vivem sua própria vida, porém sem conhecê-la, é porque o conhecimento de quase todos é limitado e contém imperfeições.
Philip Henry Wicksteed foi sem dúvida um homem multitalentoso, uma personalidade singular e um modelo de erudição: classicista, medievalista crítico literário e economista, sendo que quando se interessou pela ciência econômica já tinha mais de quarenta anos. Juntamente com John Aitken traduziu do italiano para o inglês aDivina Comédia, de Dante Alighieri. Em 1903 escreveu um livro, The Convivio of Dante Alighieri e também publicou Dante and AquinasThe Early Lives of Dante e From Vita Nova to Paradisoque o consagraram como profundo conhecedor do maior dos poetas italianos.
Construiu reputação como um dos maiores medievalistas de seu tempo. Escreveu estudos teológicos e sobre ética desde 1867, ano em que se formou, com medalha de ouro, em Classicismo no Manchester New College e continuou a escrever sobre Teologia mesmo depois que deixou o púlpito, em 1897. Além disso, suas críticas literárias eram reconhecidas pelo público como excelentes. Foi, sem dúvida, um humanista e universalista de mão cheia, o que também o aproxima dos economistas austríacos que como todos sabem não se restringem nem se limitam a estudar apenas a teoria econômica. Isso é particularmente importante na atualidade, em que a maioria dos economistas limita-se à técnica de maximizar funções, às regressões econométricas, aos modelos dinâmicos de equilíbrio geral e aos gráficos.
Em The Common Sense, um volume bastante extenso, encontramos pouquíssimos gráficos e uma ou outra equação algébrica que qualquer estudante mediano do ensino básico entende com facilidade. No entanto, a teoria econômica exposta na obra é densa e profunda, tal como nos livros dos economistas austríacos, a começar por Human Action.
Outro fato que chama a atenção e que impressiona, sobretudo no mundo de hoje, em que a especialização em campos restritos é a tônica, é que ele foi competente em todas essas múltiplas facetas de sua vida profissional. O segredo para tal sucesso só pode ser explicado por três determinantes: inteligência bem dotada, busca de conhecimentos e dedicação exemplar ao trabalho.
Finalizo explicando por que classifiquei Wicksteed, no título deste artigo, como um austríaco híbrido. Evidentemente, sua simpatia pelo socialismo e seu envolvimento com os fabianos o afastam da tradição de Menger. Mas não se pode negar que ele foi, sem dúvida, quase que um autêntico austríaco na ênfase ao subjetivismo, na discussão sobre o objeto de estudo da ciência econômica, na abordagem dinâmica dos mercados como processos que convergem para o equilíbrio (mas que, contudo, não chegam a atingi-lo) e na aceitação de que o conhecimento dos agentes econômicos está longe de ser perfeito.
Se pudéssemos retirar de sua biografia seu lado fabiano, seria — é claro! — muito bom, mas de qualquer forma acredito que ele tenha sido uma personalidade a ser exaltada e respeitada por todos os que se interessam pela tradição de Carl Menger.

Ubiratan Jorge Iorio é economista, Diretor Acadêmico do IMB e Professor Associado de Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ).  Visite seu website.