terça-feira, 3 de dezembro de 2013

Liberdade e guerra - uma breve história

Liberdade e guerra - uma breve história
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Saul atacando David (1646)
Guercino (1591—1666)
Em seu livro A Anatomia do Estado, Murray Rothbard escreveu:
Assim como as duas interrelações humanas básicas e mutuamente exclusivas são a cooperação pacífica ou a exploração coerciva — produção ou depredação —, a história da humanidade, em particular a sua história econômica, também pode ser considerada uma disputa entre estes dois princípios. 
Essa disputa tem sido unilateral.  No mundo antigo, impérios dominavam a vida política. Sistemas impiedosos baseados na escravidão, no roubo e na guerra eram a regra ao redor do mundo.  Uma exceção, em um território rodeado por impérios desse tipo, eram as tribos de Israel.  Mesmo alertados pelo próprio Deus sobre a miséria que enfrentariam caso renunciassem voluntariamente à liberdade que gozavam sob o regime descentralizado dos juízes em favor de um rei terreno que os governasse, eles clamaram pela própria escravização.  É instrutivo que a recompensa que os israelitas julgavam justa não obstante seu alto preço fosse a de ter um rei que os liderasse em batalha.  Tendo Saul como rei, Israel não mais desfrutou de períodos de paz como quando sob a liderança dos juízes; esteve constantemente em guerra.  Como Samuel havia alertado, Saul tomou seus filhos como soldados, suas filhas e seus empregados como escravos, suas melhores terras, suas colheitas e seus rebanhos, assim reduzindo os israelitas à servidão.[1]
Os israelitas não seriam o último povo a sucumbir ao canto de sereia da guerra.  A respeito da importância da guerra como um instrumento para o engrandecimento do poder do estado em sua disputa contra a liberdade, Rothbard escreveu:
Em uma guerra, o poder do estado é levado ao extremo, e sob os slogans da "defesa" e da "emergência", ele pode impor uma tirania ao público que, em tempos de paz, enfrentaria franca e aberta resistência.  Desta forma, a guerra provê muitos benefícios a um estado e, de fato, todas as guerras modernas trouxeram aos povos envolvidos um permanente legado de maiores encargos estatais sobre a sociedade. 
A guerra não apenas amplia enormemente as transferências de riqueza da sociedade para o estado para que este fortaleça seu regime, como também promove a ideologia pró-estado.  Como o estado vive parasiticamente da produção de seus hospedeiros, aqueles que se beneficiam destas transferências de riqueza devem ser sempre uma minoria da população.  As vítimas do estado têm de ser a maioria e, portanto, sua aceitação da depredação promovida pelo estado deve ser cuidadosamente engendrada, caso contrário será o fim desse mesmo estado.
A legitimidade do estado deve ser fabricada e mantida por meio da ideologia.  Do despotismo oriental à hegemonia americana, o estado nunca falhou em atrair, com seu poder e riqueza, aqueles que se esforçassem para criar sua apologia.  Mas mesmo toda a litania de alegações — que nossos governantes são sábios e seus governos são beneficentes, que nossos governantes nos protegem de perigos terríveis, que nossos governantes mantêm a coesão social, que nossos governantes preservam a tradição gloriosa de nossos ancestrais, que nossos governantes incorporam os interesses da sociedade, que nossos governantes são designados por Deus, que nossos governantes trazem ciência e razão à sociedade, que nossos governantes são capazes de controlar a economia e assim por diante — nunca conseguiu explicar como é possível transformar hegemonia em associação voluntária, tributação em oferenda espontânea, coerção em liberdade de escolha, homicídio em massa em defesa, regulação econômica em prosperidade e enriquecimento de todos.  Se o estado é a fonte de onde jorram todas as benesses sociais, então por que seus apologistas estão sempre tentando fortalecer seu poder instigando um sentimento de culpa nos bem sucedidos e de inveja nos mal sucedidos?
Nós libertários conseguimos ver através das mentiras e dos sofismas da ideologia pró-estado porque soubemos aceitar a verdade promovida por aqueles que sempre defenderam a liberdade.  Extrapolando da nossa experiência, podemos ver que a ideologia antiestado é condição necessária para se estabelecer e manter a liberdade.  As vantagens que ela tem sobre a ideologia pró-estado são que, primeiro, ela apela aos interesses da maioria, e segundo, ela se apóia na verdade a respeito da natureza da ação humana.  Ao passo que a liberdade é consistente com a ação humana, o estado está fundamentado em uma flagrante contradição, a saber: a ideia de que a única maneira de haver uma instituição que proteja nossos direitos é criando uma instituição que se baseie totalmente na própria violação dos nossos direitos.
Os antigos israelitas seguiam uma ideologia que possuía muitas das qualidades necessárias para manter o poder estatal restringido, como, por exemplo, uma lei superior à qual todo homem estava sujeito, e um sistema de governo descentralizado. Por algumas gerações, os reis de Israel foram um tanto quanto contidos pela lei superior. Mas a perversidade dos reis posteriores foi aumentando, a lei superior acabou sendo finalmente abandonada, e as liberdades dos israelitas foram extintas.[2]
Levaria muitos séculos para que o mundo testemunhasse outra faísca de liberdade.  Ela foi acesa sob Sólon, em Atenas, e sua brasa brilhou mais vivamente durante o reinado de Péricles.  Mas a liberdade durou somente enquanto Péricles e sua geração estiveram vivos.  De acordo com Lord Acton, o sistema ateniense não foi capaz de proteger as minorias e de colocar o estado sob o domínio da lei.  A democracia de Atenas, no final, levou ao conflito de classes, o que destruiu o sistema.  A Guerra do Peloponeso extinguiu tanto Péricles quanto a chama da liberdade ateniense.[3]
Em Roma, os estóicos redescobriram o conceito de lei superior à qual todos os homens estão sujeitos.  Em sua maior formulação, nas mãos de Cícero, Sêneca e Fílon, os estóicos afirmaram que há uma comunidade universal dos filhos de Deus e que Sua voz deveria ser obedecida.  A liberdade seria alcançada por meio da obediência das leis naturais de Deus. Com uma ideologia melhor que a dos gregos, a nova batalha pela liberdade durou bem mais em Roma do que em Atenas. Mas ela nunca atingiu na prática as elevadas expressões alcançadas na teoria.[4]Como Acton escreveu,
Indivíduos e famílias, associações e dependências eram material mais do que suficiente para o poder soberano consumir para seus próprios objetivos.  O que o escravo era nas mãos de seu mestre, o cidadão era nas mãos da comunidade.  As mais sagradas obrigações desapareceram ante as vantagens públicas. Os passageiros existiam para sustentar o navio.[5]
No auge de seu poder, antes que as guerras do império abortassem sua liberdade e prosperidade embrionárias, Roma encontrou uma esperança de liberdade nos homens livres das comunidades teutônicas.  Quando seus líderes foram convertidos ao cristianismo, eles converteram seu povo.  Após a queda de Roma, seus governos descentralizados persistiram uma vez que a Igreja resistia à centralização do poder estatal, permitindo um longo período de incubação para o nascimento da liberdade.[6]
A vez da liberdade chegou durante o século X, quando os escandinavos interromperam suas invasões agressivas à Europa e passaram a praticar o livre comércio de forma pacífica.  No século seguinte, o Mediterrâneo estava seguro para a navegação europeia. Veneza e as cidades do norte da Itália prosperaram expandindo suas rotas comerciais e levando a divisão do trabalho às cidades do interior.  As cidades hanseáticas fizeram o mesmo no norte da Europa. Como escreveu Henri Pirenne, a Europa tornou-se uma região de cidades construídas pelo capital.[7]
O florescimento do comércio na Europa foi fortalecido pelo desenvolvimento de uma ideologia pró-liberdade, elevada a um apogeu inédito pela doutrina cristã do indivíduo. O próprio Deus havia encarnado e vivido como um homem.  Jesus Cristo sofreu e morreu para assegurar a salvação de cada indivíduo.  No Céu, Deus glorificará cada pessoa com um corpo espiritual para viver em comunhão com Ele e com o próximo. Nações prosperam e entram em decadência, mas o indivíduo viverá pela eternidade.
Como mostrou Harold Berman, no século XI a Igreja reformulou o direito canônico em linhas mais favoráveis à propriedade privada e ao contrato. A lei canônica funcionou como um fermento para os diferentes sistemas legais, tanto o civil quanto o comercial.[8]  Berman escreveu:
Talvez a característica mais distintiva da tradição legal ocidental seja a coexistência e a competição dentro da mesma comunidade de jurisdições diferentes e de sistemas legais diferentes. É essa pluralidade de jurisdições e sistemas legais que torna a supremacia da lei necessária e possível.
O pluralismo legal originou-se na diferenciação entre o governo eclesiástico e os governos seculares.  A Igreja declarou sua independência do controle secular, sua jurisdição exclusiva em determinados assuntos, e sua jurisdição concorrente em outros assuntos ... A lei secular, por sua vez, estava dividida em vários tipos concorrentes, incluindo a lei real, a lei feudal, a lei senhorial, a lei urbana, e a lei comercial.[9]
Na medida em que a proteção legal da propriedade privada ia sendo lenta mas decisivamente ampliada da Igreja e dos mercadores para qualquer indivíduo, o progresso econômico foi levado às massas.  A pequena revolução industrial, engendrada pela proteção da propriedade privada e dos contratos, atraiu a atenção de estudiosos que queriam explicar o funcionamento da economia florescente.  Jean Buridan e Nicholas Oresme escreveram trabalhos no século XIV explicando a atividade econômica tendo como moldura a sociedade como uma ordem natural surgida do funcionamento das leis que Deus imprimiu à natureza das coisas.  A lei natural também formou a base para leis feitas pelo homem na alta Idade Média.  Como Berman escreveu,
Na era formativa da tradição jurídica ocidental, a teoria da lei natural predominou.  Era consenso geral que o direito humano, em última análise, derivava, e deveria ser aprovado, pela razão e pela consciência.  De acordo não apenas com a filosofia do direito da época, mas também com o próprio direito positivo, qualquer lei positiva, fosse ela editada ou baseada em costumes, deveria estar em conformidade com a lei natural, caso contrário ela careceria de validade como lei e poderia ser ignorada.  Esta teoria era baseada tanto na teologia cristã quanto na filosofia aristotélica.  Mas ela também estava baseada na história da luta entre autoridades eclesiásticas e seculares, e na política do pluralismo.[10]
Quando irrompiam guerras no contexto desta ideologia cristã pró-liberdade, elas meramente desaceleravam, em vez de interromperem por completo, o ímpeto da liberdade.  A Guerra dos Cem Anos veio para consolidar o poder estatal e fomentar a ideologia pró-estado.  As forças reacionárias eram fortes o bastante para inaugurar a era do absolutismo monárquico.  A ascensão do estado-nação começou a ameaçar a liberdade no Ocidente como até então nada havia ameaçado antes, desde o poder estatal de Roma.  Assim como autores mercantilistas vocalizavam a ideologia pró-estado nos séculos XVI e XVII, os escolásticos tardios revidavam com suas visões pró-liberdade.
A Escola de Salamanca desenvolveu uma visão sobre política e economia fundada na lei natural.  O fundador da escola, Francisco de Vitória, argumentou que todos os indivíduos merecem a mesma proteção legal para suas pessoas e para suas propriedades. Como Tom Woods escreveu,
Vitória afirmou que o homem não podia ser privado da sua capacidade civil por estar em pecado mortal, e que o direito de possuir coisas para uso próprio (isto é, o direito à propriedade privada) pertencia a todos os homens, mesmo que fossem pagãos ou tivessem costumes considerados bárbaros.  Os índios do Novo Mundo eram, portanto, iguais aos espanhóis em matéria de direitos naturais.  Possuíam as suas terras de acordo com os mesmos princípios pelos quais os espanhóis possuíam as deles.[11]
A visão da lei natural dos escolásticos foi elevada por Hugo Grócio em sua obra sobre o direito internacional no século XVII, e a ideologia pró-liberdade foi posteriormente refinada nas obras sobre direitos naturais de Locke e Jefferson nos séculos XVII e XVIII.
A América provou ser terreno fértil para a ressurreição da liberdade.  O poder estatal não foi capaz de reprimir as tendências de pessoas possuidoras de uma ideologia pró-liberdade de viverem respeitando a propriedade privada e os contratos, no território aberto e nos governos descentralizados da América do Norte colonial.  Estados-nações tiveram de se contentar com limitações ao seu poder diante das possibilidades que suas vítimas tinham de escapar de suas depredações.  Durante o seu apogeu no século XIX, o liberalismo clássico espalhou os frutos da liberdade, da paz, da prosperidade e da prosperidade humana.  Mas a ideologia pró-liberdade refinada pelos liberais clássicos não estava livre de impurezas.  Seu defeito fatal estava patente na centralização do poder estatal através da constituição americana, que impunha um formato de estado-nação sobre o sistema de governos descentralizados dos 13 estados. Como Hans-Hermann Hoppe escreveu,
A filosofia política liberal clássica — como personificada por Locke e mais proeminentemente demonstrada na Declaração de Independência de Jefferson — era antes e acima de tudo uma doutrina moral.  Inspirada na filosofia dos estóicos e dos escolásticos tardios, ela estava centrada ao redor das noções de soberania do indivíduo, apropriação original de recursos naturais (sem dono), na propriedade e no contrato como sendo um direito humano universal implícito na natureza do homem enquanto animal racional.  No ambiente de governantes monárquicos (reis e príncipes), esta ênfase na universalidade dos direitos humanos colocou a filosofia liberal em radical oposição a todo e qualquer governo estabelecido.  Para um liberal, todo homem, rei ou aldeão, estava sujeito aos mesmos princípios universais e eternos de justiça.  E um governo, ou ele conseguia justificar sua existência como sendo um contrato entre proprietários privados, ou ele não poderia ser justificado de forma alguma.[12]
Tragicamente, da genuína proposição de que uma ordem social liberal requer que seus membros utilizem violência defensiva para suprimir a agressão contra a pessoa e a propriedade, liberais clássicos incorretamente concluíram que deveria haver um provedor monopolístico dessa violência defensiva.  De acordo com a visão de que o estado é essencial para uma ordem social liberal, os liberais clássicos permitiram que o poder estatal mantivesse um ponto de apoio que ele mais uma vez utilizaria para atacar a liberdade.
Esse momento veio em 1914.  Como Rothbard escreveu,
Mais do que qualquer outro período, a Primeira Guerra Mundial foi o crítico divisor de águas para o sistema empresarial americano.  A economia transformou-se em um "coletivismo de guerra", uma economia totalmente planejada e conduzida amplamente pelos interesses dos grandes negócios e por meio da intervenção do governo central, o qual serviu como o modelo, o precedente e a inspiração para o capitalismo corporativo de estado pelo restante do século XX.[13]
Como um prelúdio para a sua destruição na Grande Guerra, a ideologia pró-estado havia desferido um ataque frontal à liberdade no século XIX.  Hunt Tooley registrou a função das ideologias no ímpeto à guerra em seu livroThe Western Front.[14] Como Ralph Raico observou[15] em sua crítica ao livro de Tooley,
Tooley lida habilmente com as correntes intelectuais e culturais da Europa pré-guerra. Contribuindo para a propensão à violência havia o anarco-sindicalismo de Georges Sorel e uma forma degenerada de nietzscheanismo; porém, acima de tudo, havia o darwinismo social — na realidade, somente Darwinismo —, que ensinava o conflito eterno entre raças e tribos de humanos e de outras espécies.
Mesmo na América, a ideologia pró-estado havia conseguido degenerar o pensamento cristão durante a Era Progressista, despindo-o de sua forma pró-liberdade.  Richard Gamble documenta esta degeneração em seu livroThe War for Righteousness.[16]  Como Raico escreveu em sua crítica ao livro de Gamble,
Ao final do século XIX, protestantes progressistas, frequentemente influenciados pela Teoria da Evolução, estavam pregando pela transformação sucessiva da igreja, depois da sociedade americana, e finalmente do mundo todo. Ao rejeitar o calvinismo tradicional, eles rejeitaram também a distinção agostiniana entre a Cidade de Deus e a Cidade do Homem.  A Cidade do Homem deveria ser transformada na Cidade de Deus, aqui na Terra, por meio de uma alteração do cristianismo, o qual deveria ser redefinido como uma doutrina socialmente ativista.[17]
A Grande Guerra liberou as forças coletivistas do socialismo e do fascismo ao longo de todo o mundo ocidental. Como Raico escreveu,
A Primeira Guerra Mundial foi o ponto de inflexão do século XX.  Se ela não houvesse ocorrido, os Hohenzollern da Prússia muito provavelmente permaneceriam como chefes da Alemanha, com seu arsenal de reis e nobres subordinados encarregados dos estados germânicos menores.  Com qualquer vitória que Hitler pudesse ter obtido nas eleições do Reichstag, poderia ele ter erigido sua ditadura totalitária e homicida em meio a esta poderosa superestrutura aristocrática?  Altamente improvável.  Na Rússia, os poucos milhares de comunistas de Lênin confrontaram o imenso exército imperial russo, o maior do mundo.  Para que Lênin tivesse qualquer chance de sucesso, aquele exército deveria ser antes pulverizado, que foi exatamente o que os alemães fizeram.  Portanto, um século XX sem nazistas ou comunistas.  Imagine isso.  Foi o ponto de inflexão na história da nação americana, que sob a liderança de Woodrow Wilson transformou-se em algo radicalmente diferente do que havia sido antes.[18]
Em nenhum outro lugar a transformação radical foi mais evidente do que no direito.  A tapeçaria legal do Ocidente, tecida por mais de um milênio, foi esgarçada e fendida na Primeira Grande Guerra.  Harold Berman escreveu,
Quando os diferentes regimes legais de todas essas comunidades — locais, regionais, nacionais, étnicas, profissionais, políticas, intelectuais, espirituais, e outras — são engolidos pela legislação do estado-nação ... [isso] é, de fato, o maior perigo representado pelo nacionalismo contemporâneo.  As nações da Europa, que se originaram de sua interação umas com as outras no contexto da cristandade ocidental, tornaram-se cada vez mais separadas entre si no século XIX.  Com a Primeira Guerra Mundial, elas se separaram violentamente e destruíram os laços comuns que as haviam mantido previamente ligadas, ainda que frouxamente.  E, no final do século XX, ainda sofremos com a historiografia nacionalista originada no século XIX, que apoiou a desintegração do patrimônio legal comum ao Ocidente.[19]
Mesmo na terra onde a liberdade ardia com maior brilho, a guerra provou ser uma força potente para o retrocesso. Como Rothbard escreveu,
Historiadores têm geralmente tratado o planejamento econômico da Primeira Guerra Mundial como um episódio isolado, ditado pelas necessidades da época, e tendo pequena significância posterior.  Mas, ao contrário, o coletivismo de guerra serviu como uma inspiração e um modelo para um temível conjunto de forças destinadas a moldar a história da América no século XX.[20]
A Primeira Guerra Mundial destruiu a economia mundial que havia sido construída durante o século XIX sob o liberalismo clássico.  Como Maurice Obstfeld e Alan Taylor demonstraram em seu livro Global Capital Markets: Integration, Crisis, and Growth, o nível de integração da economia mundial subiu de moderadamente baixo em 1860 para moderadamente alto em 1914.  A Grande Guerra desintegrou a economia mundial, retornando-a a um nível substantivamente abaixo daquele vigente em 1860.  E ao final da Segunda Guerra Mundial (que foi uma continuação da Primeira Guerra Mundial), o nível de integração era metade do nível de 1860.  O nível de integração da economia mundial só foi superar aquele de 1914 no século XXI.[21]  Os governos levaram 70 anos para realizar aquilo que a liberdade fez em questão de dias.
A Grande Guerra destruiu o padrão-ouro clássico e introduziu uma era de moedas fiduciárias de papel. Hiperinflações e depressões foram o resultado.  Como Steve Hanke e Nicholas Krus documentaram, dos 56 episódios de hiperinflação da história apenas um ocorreu antes de 1920.[22]  E como George Selgin, William Lapstras e Lawrence White demonstraram, os cem anos de política monetária do Federal Reserve resultaram em mais instabilidade econômica e financeira do que o menos insolvente sistema bancário americano existente antes de o Fed ser criado.[23]
A Grande Guerra aniquilou o mundo liberal clássico e iniciou um século de ascensão do estado coletivista.  A civilização ocidental, tendo dado à luz a liberdade e a alimentado, sacrificou sua cria antes que ela tivesse tido a oportunidade de atingir a maturidade ao redor do mundo.  Em vez de liberdade, a hegemonia americana espalhou o corporativismo pelos quatro cantos da Terra.
Como nós, nossos predecessores trabalharam para divulgar a ideologia pró-liberdade durante dias negros, quando a liberdade havia sido eclipsada pelo poder estatal.  Sua estratégia envolvia a criação de instituições independentes.  Christopher Dawson, em seu livro The Crisis of Western Education, demonstrou que os movimentos intelectuais da Renascença e do Iluminismo se desenvolveram ao largo do estado.  Dawson escreveu,
Na Inglaterra e nos Estados Unidos, a tradicional relação entre a igreja, a escola e o sistema medieval de independência corporativa conseguiu sobreviver, não obstante os ataques de reformadores políticos e educacionais.  Os abusos do antigo sistema e a negligência da educação primária certamente não eram menos flagrantes na Inglaterra do que no continente europeu.  Mas a força do princípio do livre-arbítrio e a ausência de um estado autoritário fizeram com que o movimento reformista na Inglaterra seguisse um caminho independente e criasse suas próprias organizações e instituições.[24]
Para restaurar a liberdade em nossa era, devemos erigir empreendimentos genuinamente privados e instituições educacionais independentes.  Por meio de organizações como o Mises Institute, podemos fazer a nossa parte no século XXI para reverter essa maré do estatismo coletivista que se ergueu no século XX, exatamente como nossos predecessores fizeram ao reverter o absolutismo no século XVIII.  Não devemos repetir seus erros.  Desta vez, nossa ideologia pró-liberdade deve abraçar suas implicações lógicas e rejeitar completamente a ideia de estado. Somente assim pode todo o potencial da vida, da liberdade e da propriedade ser concretizado na prosperidade de toda a raça humana.


[1] I Samuel 8.
[2] I Reis e II Reis.
[3] Lord Acton, Essays in the History of Liberty, Vol. 1, (Indianapolis: Liberty Classics, 1985), pp. 12-13.
[4] Acton, Essays in the History of Liberty, pp. 24-25.
[5] Acton, Essays in the History of Liberty, p. 18.
[6] Acton, Essays in the History of Liberty, pp. 30-33.
[7] Henri Pirenne, Medieval Cities (Princeton, N.J.: Princeton University Press, 1925); idem, Economic and Social History of Medieval Europe (London: Routledge, 1936); and Acton, Essays in the History of Liberty, pp. 35-36.
[8] Harold Berman, Law and Revolution (Cambridge, Mass.: Harvard University Press, 1983).
[9] Berman, Law and Revolution, p. 10.
[10] Berman, Law and Revolution, p. 12.
[11] Tom Woods, Como a Igreja Católica Construiu a Civilização Ocidental (São Paulo: Quadrante, 2010),
[12] Hans Hoppe, Democracy, the God that Failed (New Brunswick, N.J.: Transaction Publishers, 2001), p. 225.
[13] Murray Rothbar, War Collectivism: Power, Business, and the Intellectual Class in World War I (Auburn, Ala.: Mises Institute, 2012), p. 7.
[14] Hunt Tooley, The Western Front: Battle Ground and Home Front in the First World War (New York: Palgrave McMillan, 2003).
[15] Ralph Raico, Great Wars and Great Leaders: A Libertarian Rebuttal (Auburn, Ala.: Mises Institute, 2010), p. 230.
[16] Richard Gamble, The War for Righteousness: Progressive Christianity, the Great War, and the Rise of the Messianic Nation (Wilmington, Del.: ISI Press, 2003).
[17] Raico, Great Wars and Great Leaders, p. 193. Itálicos no original.
[18] Raico, Great Wars and Great Leaders, pp. 1-2.
[19] Berman, Law and Revolution, p. 17.
[20] Rothbard, War Collectivism, pp. 34.
[21] Maurice Obstfeld and Alan Taylor, Global Capital Markets: Integration, Crisis, and Growth (Cambridge: Cambridge University Press, 2004).
[22] Steve Hanke and Nicholas Krus, "World Hyperinflations," Cato Working Paper (Washington: Cato Institute, 2012). A exceção foi na França, durante a Revolução, em 1795.
[23] George Selgin, William Lastrapes, and Lawrence White, "Has the Fed Been a Failure?" Cato Working Papers(Washington: Cato Institute, 2010).
[24] Christopher Dawson, The Crisis of Western Education (Steubenville, Oh.: Franciscan Press, 1989), p. 67.

Jeffrey Herbener é professor de economia no Grove City College.

Por que a economia não é um jogo de soma zero

Por que a economia não é um jogo de soma zero
 

competir.jpgApesar de toda a ampla literatura disponível, ainda há pessoas que genuinamente acreditam que a economia é um jogo de soma zero, isto é, que para algumas pessoas ganharem outras têm necessariamente de perder.  Tais pessoas acreditam que a economia seria uma espécie de bolo, cujo tamanho é fixo e representa toda a riqueza disponível.  Sendo assim, cada indivíduo que se apossa de uma fatia está na realidade retirando esta fatia da boca de outro indivíduo.  A verdade, no entanto, é que este bolo de riqueza não tem um tamanho fixo; ao contrário, ele cresce de maneira tal que há cada vez mais quantidade disponível para todos.
O fundador da Escola Austríaca de economia, Carl Menger, deixou claro que, para que uma coisa possa ser considerada um bem econômico, quatro circunstâncias devem ser observadas: 1) deve existir uma necessidade humana; 2) a coisa em questão deve ser capaz de satisfazer essa necessidade humana; 3) o indivíduo deve conhecer a adequabilidade da coisa em satisfazer sua necessidade; e 4) o indivíduo deve usufruir poder de disposição sobre esta coisa.
Tendo em mente estas quatro circunstâncias às quais o austríaco condicionou a existência de bens econômicos, podemos deduzir por que a economia não é um jogo de soma zero na qual toda a riqueza possível já se encontra dada de antemão.
Em primeiro lugar, a imensa maioria das coisas, na forma como se encontram em seu estado natural, não nos permite satisfazer nossas necessidades.  Por mais que toda a matéria já exista e esteja disponível na natureza, ela não nos foi dada de uma forma que nos permita satisfazermos nossas necessidades.  A matéria tem de ser trabalhada e transformada por meio do trabalho e de investimentos.  A madeira das árvores deve ser cortada e processada para a fabricação de abrigos dentro dos quais iremos morar; as terras têm de ser aradas e cultivadas para que possamos colher alimentos que irão saciar nossa fome; o ferro e o alumínio têm de ser extraídos das minas para que seja possível a fabricação de aviões que irão nos transportar de um ponto do globo a outro.  Só é possível criar riquezas quando transformamos coisas (que não satisfazem diretamente nossos desejos) em bens (que satisfazem).  É por isso que recursos minerais que estão no subsolo não configuram riqueza por si só.  Eles têm antes de ser transformados.  E isso só irá ocorrer com investimentos maciços, mão-de-obra capacitada e tecnologia avançada.
Em segundo lugar, a incapacidade dos objetos em seu estado natural em satisfazer diretamente nossas necessidades advém do fato de que nem sequer conhecemos todas as suas combinações e usos possíveis.  A tecnologia, que é a arte de combinar e ordenar a matéria para que ela gere o resultado desejado, também não nos vem dada; antes, ela deve ser descoberta por meio da investigação e da experimentação, duas atividades que, por sua vez, requerem o uso de outros bens econômicos.  Em outras palavras, dado que não somos oniscientes, não apenas temos de criar bens econômicos a partir das coisas que nos circundam, como também temos de descobrir informações acerca de como transformar essas coisas em bens econômicos — informações que, por si só, constituem uma nova fonte de riqueza.
Terceiro e último, por mais adequado que seja um bem em satisfazer nossas necessidades, ele será totalmente inútil se não o tivermos ao nosso alcance.  A natureza pode ter sido generosa em nos agraciar com rios caudalosos por todo o planeta; no entanto, estes rios não proporcionarão nenhum serviço àquele indivíduo que se encontra no meio do deserto.  Em outras palavras, não apenas temos de produzir os bens, como também temos de saber distribuí-los aos seus usuários finais. 
Em nossos sistemas econômicos, produção e distribuição andam de mãos dadas: com o intuito de maximizar nossa eficiência na fabricação de bens econômicos, cada um de nós se especializa em produzir um ou dois bens econômicos no máximo, mesmo que necessitemos de uma grande variedade deles para satisfazer nossas mais diversas necessidades — ou seja, somos produtores especializados e, ao mesmo tempo, consumidores generalizados.
Demandamos os mais amplos e variados bens econômicos e, em troca, podemos apenas ofertar nossa extremamente limitada e específica especialização.  E, ainda assim, as trocas ocorrem.  Portanto, a maneira de termos acesso aos mais diversos bens econômicos é oferecendo em troca nossa extremamente limitada oferta de bens.  E isso ocorre por meio das trocas comerciais.
O problema é que, desde Aristóteles, a humanidade acredita que as trocas comerciais ocorrem somente entre bens com igualdade de valor.  Se o bem A é trocado pelo bem B, então necessariamente o valor de A deveria ser igual ao valor de B.  Consequentemente, nenhuma troca comercial poderia gerar valor, e sim apenas redistribuí-lo.  A interpretação alternativa (a de que o valor de A seria superior ao de B, ou vice-versa) seria ainda mais desalentadora, pois implicaria que, em toda e qualquer transação, um lado ganharia à custa do outro (ele entregaria algo com um valor objetivo maior em troca de algo com um valor objetivo menor).
No entanto, graças a Carl Menger, que popularizou a descoberta de que o valor dos bens não é objetivo mas simsubjetivo, a realidade se comprova totalmente distinta: em toda e qualquer transação comercial, cada lado atribui àquele bem que está recebendo um valor subjetivo maior do que àquele bem que está dando em troca.  Afinal, se não fosse assim — se você não valorizasse mais aquilo que está recebendo do que aquilo que está dando em troca —, a transação simplesmente não ocorreria.  Em decorrência deste fato, conclui-se que os indivíduos geram riqueza ao simplesmente trocarem bens econômicos.  Ao fazerem isso, eles estão recorrendo a um meio (trocas comerciais) para chegar àqueles fins que lhes são mais valiosos.
Em definitivo, a economia não é um jogo de soma zero, uma vez que durante todo o processo de produção de bens e serviços estamos gerando riqueza: seja quando investigamos como converter coisas em bens, quando de fato convertemos as coisas em bens, e quando distribuímos os bens por meio das trocas comerciais.
Ao contrário do que supõem os socialistas — que toda a riqueza já está criada e dada, e que é necessário apenas redistribuí-la —, o livre mercado é o único arranjo no qual os indivíduos podem se organizar de modo a incrementar ao máximo possível a oferta de bens e serviços, os quais iremos utilizar para satisfazer de maneira contínua nossos mais variados fins.
A economia, portanto, não é um jogo de soma zero, mas sim um jogo de saldo positivo e expansivo — a menos que o estado entre em cena e se aposse destes ganhos. 
O bolo não está dado e não possui tamanho fixo.  Ao contrário, ele cresce e permite fatias cada vez maiores para todos — exceto se o estado entrar em cena e gulosamente abocanhar uma grande fatia.

Juan Ramón Rallo é diretor do Instituto Juan de Mariana e professor associado de economia aplicada na Universidad Rey Juan Carlos, em Madri.