terça-feira, 3 de setembro de 2013

Cartas de Londres: Cenas do metrô de Londres, por Beatriz Portugal


Éramos os dois únicos passageiros no vagão. Ele sentava à minha frente e comia um sanduíche no vão entre as pernas, com os braços apoiados nos joelhos. A atenção ia da comida ao jornal aberto no banco ao lado. Ele parecia adivinhar que eu espiava o jornal dele e virava a página exatamente quando eu terminava de ler. Só faltou comentar as manchetes gritantes que falavam da derrota vexatória do primeiro ministro em votação parlamentar sobre ação militar do Reino Unido na Síria.
Mas não trocamos palavras, pois aqui a regra tácita é manter a distância. As pessoas se evitam ao máximo, enfurnadas em livros e jornais ou nas telas de seus celulares. De vez em quando olhares se cruzam por um milésimo de segundo, mas a vergonha sempre vence. O que sobra é testemunhar pedaços da vida alheia, como daquele homem que seja lá por que comia com tanta pressa antes de chegar ao seu destino.
Tudo isso faz parte do charme do metrô londrino mas mais do que uma atração, o metrô é parte essencial da capital britânica. Alem de ser um excelente meio de transporte, é um microcosmo de Londres.
Do pedinte ao milionário, estão todos ali, ombro a ombro sofrendo igualitariamente no calor com a falta de ar condicionado e sempre atentos à malas ou pacotes que possam estar abandonados, prontos para avisar o policial mais próximo.
A primeira linha foi inaugurada há 150 anos, o que faz do metrô londrino o mais antigo do mundo. São mais de três milhões de passageiros por dia passando por suas 270 estações. Os trens percorrem a distancia equivalente a 1.735 voltas ao redor do mundo (ou 90 viagens de ida e volta até a lua). Não à toa, parece ter vida própria.


Nele há de tudo um pouco: cenas engraçadas, cenas tristes, cenas chocantes, cenas emocionantes. É lá que os londrinos muitas vezes mostram o que têm de melhor e de pior.
Foram nas idas e vindas no metrô que descobri que todo londrino que se preza acha um absurdo ter de esperar mais de três minutos por um trem. E também conheci o fenômeno tipicamente inglês de se concentrar nas portas ao invés de se espalhar pelo vagão. Já vi pombos que, sempre nas mesmas estações, sobem e descem de vagões como se fosse a coisa mais natural do mundo.
Outro dia vi um moço que, na pressa de entrar, pisou em falso. Caiu de cara no chão, ficando com uma perna esticada na plataforma e a outra no vão entre plataforma e vagão. Duas pessoas se levantaram para ajudá-lo. Ele, muito sem graça, levantou e bateu nas coxas para tirar a sujeira. Entre perguntas se ele estava bem, o moço respondeu sério o que numa frase resume a beleza do humor britânico - contido, criativo e ao mesmo tempo irreverente, sempre usado para facilitar as interações sociais. Fazendo referencia ao constante anúncio de “mind the gap” (algo como, atenção ao vão), ele: “I didn’t mind the gap”.

A síndrome da censura, por Carlos Alberto Di Franco

GERAL


O mais recente caso de proibição judicial ao trabalho jornalístico — a proibição de que o jornal “Gazeta do Povo”, do Paraná, publique informações sobre investigações abertas pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ) contra o presidente do Tribunal de Justiça do estado, Cleyton Camargo — reacende a síndrome da censura prévia no Brasil.
A liminar garantindo que as notícias sobre as denúncias não fossem publicadas no jornal foi concedida há um mês. O desembargador, no pedido, sustenta que “os fatos em notícia (...) vieram impregnados pelo ranço odioso da mais torpe mentira”. Pediu, ainda, que as reportagens sejam banidas do portal do jornal na internet. Quer dizer: censura prévia multiplataforma. Proíbe-se a sociedade de ter acesso a informação de indiscutível interesse público.
Sem prejuízo do meu sincero respeito pelas decisões do Judiciário, a censura prévia é uma bofetada na democracia. O controle ao jornal é mais um precedente gravíssimo. É importante que a sociedade reaja. Caso contrário, a violência judicial pode se transformar em rotina.
“Nada mais nocivo que a pretensão do Estado de regular a liberdade de expressão, pois o pensamento há de ser livre, essencialmente livre. Liberdade de imprensa concerne a todos e a cada cidadão. Esta garantia básica, que resulta da liberdade de expressão do pensamento, representa um dos pilares em que repousa a ordem democrática.” São palavras do decano do Supremo Tribunal Federal (STF), ministro Celso de Mello, um sensível defensor dos valores democráticos.


O que está em jogo, para além da garantia constitucional da liberdade de imprensa, é o direito que tem a sociedade de ser informada. É difícil imaginar que o Brasil possa superar a gravíssima crise ética, que transformou amplos setores do serviço público num exercício de cinismo e arrogância, sem ampla liberdade de imprensa e de expressão.
Além de inconstitucional, a liminar que censura o trabalho da “Gazeta do Povo” caminha na contramão do anseio de transparência no comportamento dos homens públicos que domina a sociedade brasileira. A experiência demonstra que a escassez de informação tem sido uma aliada da perpetuação da impunidade.

O Zorro e o Tonto, por Paulo Delgado

POLÍTICA


Paulo Delgado
Um senador polêmico, com vestígios de inimigo, entra porta adentro da Embaixada do Brasil pedindo socorro e é prontamente acolhido. Boa tradição diplomática, fonte de prazer para quem respeita nossa história.
Um jovem diplomata, sem saber que seria extravagante, se põe a recolher indícios para encontrar uma solução, e, sem muita barganha, empresta ao caso sua reputação. Bons sinais vindos de um funcionário do Estado que sabe que trabalhar com a consciência pesada leva à má reputação. Uma decisão que tira o Brasil do isolamento regional e o repõe no destino universal da diplomacia humanitária e pacifista.
O que espanta no caso é a iniciativa do governo e a sua afeição por um valor maior do que qualquer conveniência não serem defendidas por ninguém que o apoia. Menos o diplomata que deu sequência ao ato da presidente de 8 de junho de 2012 ao conceder, de pronto, asilo ao perseguido politico, o qual o Itamaraty não soube cumprir por pressão do governo interessado em marginalizar o asilado.


Se eu fosse presidente, nomeava o garoto chanceler pela sutil capacidade de perceber que o governo boliviano estava disposto a fechar os olhos para uma saída furtiva, como se deu, e o brasileiro desejava encerrar o asilo na Embaixada, como ocorreu.
Bastava aplicar a inteligência às relações oficiais entre Estados e confiar que a transbordante amizade entre governantes não tomasse conta do discernimento político entre nações. É claro que a ação astuta do subordinado, de um posto que nossa diplomacia fez mais importante do que Washington, assusta o superior submetido a outra cadeia de comando. Assim, 110 anos depois do Tratado de Petrópolis, a noção de fronteira entre Brasil e Bolívia, não é mais geográfica, política ou jurídica.

A importância das instituições para o progresso econômico



collaboration.jpgNo final dos anos 1980, quando o domínio do império soviético na Europa central começou a se esfacelar, surgiu uma premente questão política para a qual poucas pessoas até então haviam dado atenção: como transformar economias socialistas em economias de mercado plenamente operantes?  
Quanto mais esta discussão ganhava atenção, mais pavoroso era constatar o quão pouco os economistas profissionais eram capazes de contribuir.  Por exemplo, no encontro anual da American Economic Association, um considerável número de proeminentes economistas simplesmente admitiu não ter a mais mínima ideia de como criar a ordem institucional necessária para se estabelecer uma economia de mercado.
Na primeira metade do século XX, vários economistas se tornaram cada vez mais interessados em tentar fazer com que a economia se transformasse em uma disciplina "rigorosamente científica".  Do ponto de vista destes economistas, tal objetivo requeria a construção de modelos quantitativos, nos quais os indivíduos e suas ações eram reduzidos a meras "variáveis dependentes" dentro de uma série de equações matemáticas.  O indivíduo se tornava uma simples variável passiva, a qual "reagia" a várias "limitações" que existiam dentro da arena das trocas voluntárias.  Neste cenário, as instituições políticas, jurídicas e econômicas ao redor deste indivíduo eram simplesmente um "pano de fundo" que servia como base para uma análise quantitativa sobre como as pessoas fazem suas escolhas de acordo com as limitações existentes. 
Como estas instituições surgiram e se desenvolveram, e como as ideias e as ações dos indivíduos influenciaram e moldaram estas instituições ao longo do tempo, eram questões quase nunca discutidas.
No entanto, ao longo dos últimos 30 anos, desenvolveu-se um novo ramo da ciência econômica chamado de Nova Economia Institucional, cujo objetivo principal é investigar exatamente a interação entre o indivíduo e as instituições sociais.  Um dos principais contribuidores desta área é Douglass C. North, vencedor do Prêmio Nobel de economia em 1993 por seus trabalhos sobre a história econômica da Europa e dos EUA.  Em seu livroEntendendo o Processo de Mudança Econômica, North explica a importância das instituições para o aprimoramento das condições humanas, e mostra as dificuldades de se desenvolver teorias e implantar políticas voltadas para o melhoramento da sociedade.
North começa sua obra dando ênfase ao inquestionável fato de que o homem vive em um mundo repleto de incertezas e imprevisibilidades, realidade essa que, por si só, impossibilita toda e qualquer aplicação daqueles modelos matemáticos estáticos e deterministas que dominam a esmagadora maioria dos manuais de economia.  O "método científico" funciona maravilhosamente bem para permitir ao homem dominar as leis do mundo da física, mas possui severas limitações e falhas inerentes quando aplicado indiscriminadamente à condição humana e ao comportamento humano.
O homem possui qualidades exclusivas que são singularmente distintas das características inerentes aos objetos de estudo da física e da química: criatividade e objetividade.  O homem raciocina, imagina e planeja.  Isso introduz um elemento de imprevisibilidade que não está presente no estudo da natureza inanimada.  A ação humana simplesmente não está propensa a probabilidades estatísticas estáveis.
Adaptando alguns temas oriundos da psicologia cognitiva, North argumenta que o homem está mais para um descobridor racional de padrões do que para um solucionador lógico de problemas.  Em outras palavras, tudo indica que a mente humana evoluiu de tal maneira a estar sempre tentando observar uma ordem e uma relação entre coisas e eventos, mesmo quando tais fenômenos podem não estar lá.  Como resultado deste comportamento mental, o homem está continuamente tentando estabelecer padrões e relações neste mundo, sempre com o intuito de alcançar inteligibilidade e um grau de certeza previsível.
Esta é a origem das crenças e ideias humanas a respeito de "como as coisas funcionam", desde superstições primitivas até as mais complexas teorias sobre a natureza e o funcionamento da ordem social.  Este sistema de crenças e ideias é transmitido de geração para geração, e vai sendo solidificado nos costumes, nas tradições e em outras instituições culturais.  Consequentemente, a ordem institucional é o resultado cumulativo de gerações de mentes que interagiram entre si.
As regras sob as quais os homens vivem, argumenta North, foram geradas pelos esforços do próprio homem em tentar reduzir suas incertezas sociais.  Ao voluntariamente restringir suas próprias ações e as de seus conterrâneos por meio de normas, valores e procedimentos interativos que definem e determinam os códigos de conduta — bem como os fundamentos da legitimidade e da obediência —, o homem introduz graus de previsibilidade aos processos sociais e econômicos.
Algumas destas regras institucionais foram formalmente criadas por meio de códigos jurídicos e políticos.  Mas a grande maioria, se não a quase totalidade, é de regras informais que foram aprendidas e absorvidas em decorrência do simples fato de se nascer e viver dentro de uma determinada sociedade — regras estas que frequentemente não são explicitamente enunciadas.
A grande transformação observada na evolução sociocultural do homem, explica North, ocorreu quando as relações de troca evoluíram do pessoal para o impessoal: ou seja, quando evoluíram da pequena tribo e suas relações face a face para um amplo mercado no qual homens separados pelo tempo e pelo espaço, e sem qualquer parentesco entre si, se tornaram crescentemente interligados por meio de transações monetárias.
Crenças e ideias sobre o que era justo, moral e correto começaram a se desenvolver de uma maneira que tornou possível o desenvolvimento, ao longo dos séculos, das instituições hoje presentes nas modernas economias de mercado.  North lista uma série destas mudanças históricas ocorridas na Europa Ocidental, especialmente no sistema bancário, nos mecanismos de crédito (como notas promissórias, duplicatas ou letras de câmbio) e nos contratos comerciais, os quais prepararam o terreno para o crescimento econômico e o contínuo aumento da prosperidade no mundo ocidental observados nos últimos cinco séculos.  Um maior respeito pela propriedade privada, a aceitação de uma relativamente irrestrita concorrência de mercado, um maior apreço pelas liberdades individuais sob os auspícios de leis imparciais, e a imposição de mais limites sobre o poder tributário e regulatório dos governos fizeram com que as energias criativas dos homens em geral e dos empreendedores em particular fossem totalmente liberadas.
No entanto, o fenômeno oposto também pode ocorrer, e North mostra toda a rigidez e corrupção que surgem quando crenças e ideias errôneas geram instituições que concedem poderes crescentes ao estado — seja em sua forma extrema, como na União Soviética, seja em sua forma mais suave, mas não menos danosa, como no moderno estado intervencionista, protecionista e assistencialista.
O dilema é que estas experiências históricas não garantem que as "lições" corretas serão aprendidas.  Como argumenta North, é comum haver muito "ruído" nos processos históricos; nem sempre fica claro quais causas (mudanças institucionais ou políticas) geraram quais efeitos (mudanças no bem-estar econômico, inclusive em graus de liberdade).  Adicionalmente, boa parte da informação e da interpretação sobre mudanças institucionais e políticas chega até a nós por meio de intermediários intelectuais que possuem suas próprias agendas e ideologias, e que não compreendem o real funcionamento de determinados processos socioculturais.
O real perigo de tudo isso, alerta North, não está apenas no fato de que os vários países que jamais desenvolveram as corretas instituições de mercado possam fracassar neste objetivo; está também, e principalmente, no fato de que a liberdade e a prosperidade nunca estão garantidas para sempre em nenhuma sociedade.  Em outras palavras, mesmo as sociedades mais bem sucedidas podem sofrer um retrocesso e se desintegrar, degenerando-se na estagnação econômica e na tirania política — e tudo em decorrência da aceitação de ideias e crenças erradas, que geram mudanças institucionais fatais. 
A correta compreensão do poder e da importância das instituições é essencial tanto para aquela população que queira evitar tragédias quanto para aquela que queira reverter várias políticas perigosas que estejam em curso.

Richard Ebeling 
leciona economia no Hillsdale College em Michigan, é um scholar adjunto do Mises Institute e trabalha no departamento de pesquisa do American Institute for Economic Research.
 Tradução de Leandro Roque