segunda-feira, 30 de setembro de 2013

O diabo existe? A pedagogia do medo e a função civilizatória do sobrenatural


Em Os irmãos Karamázov, Dostoiévski elabora o seguinte diálogo:
− O diabo existe?
− Não, não existe.
− Tanto pior. Não sei o que eu teria feito ao primeiro fanático que inventou Deus. Enforcá-lo seria insuficiente.
− Sem essa invenção não haveria civilização*.
Ao retomar as minhas anotações sobre a leitura deste clássico da literatura universal, lembrei-me de outro trecho sobre a existência daquele cujos nomes são os mais diversos e inimagináveis. Trata-se de uma divertida conversa entre uma criança e sua mãe, escrita por Graciliano Ramos, em sua obra Infância, de inspiração autobiográfica. Vale a pena ler o trecho na íntegra:
Às vezes minha mãe perdia as arestas e a dureza, animava-se, quase se embelezava. Catorze ou quinze anos mais moço que ela, habituei-me, nessas tréguas curtas e valiosas, a julgá-la criança, uma companheira de gênio variável, que era necessário tratar cautelosamente. Sucedia desprecatar-me e enfadá-la. Os catorze ou quinze anos surgiam entre nós, alargavam-se de chofre – e causavam-me desgosto.
Um dia, em maré de conversa, na prensa de farinha do copiar, minha mãe tentava compor frases no vocabulário obscuro dos folhetos, Eu me deixava embalar pela música. E de quando em quando aventurava perguntas que ficavam sem respostas e perturbavam a narradora.
Súbito ouvi uma palavra doméstica e veio-me a idéia de procurar a significação exata dela. Tratava-se do inferno. Minha mãe estragou a curiosidade: impossível um menino de seis anos, em idade de entrar na escola, ignorar aquilo. Realmente eu possuía noções. O inferno era um nome feio, que não devíamos pronunciar. Mas não era apenas isso. Exprimia um lugar ruim, para onde pessoas mal-educadas mandavam outras, em discussões. E num lugar existem casas, árvores, açudes, igrejas, tanta coisa, tanta coisa que exigi uma descrição. Minha mãe condenou a exigência e quis permanecer nas generalidades. Não me conformei. Pedi esclarecimentos, apelei para a ciência dela. Por que não contava o negócio direitinho? Instada, condescendeu. Afirmou que aquela terra era diferente das outras. Não havia lá plantas, nem currais, nem lojas, e os moradores, péssimos, torturados por demônios de rabo e chifres, viviam depois de mortos em fogueiras maiores que a de S. João e em tachas de breu derretido. Falou um pouco a respeito dessas criaturas.
Fogueiras de S. João eu conhecia. Tinha-se feito uma diante de casa. Eu andara à tardinha em redor do monte de lenha que o moleque José arrumava. Admirando os aprestos, espantava-me de haver nascido ali de supetão um mamoeiro carregado de frutos verdes. Á noite deitara-se na pilha uma garrafa de querosene, viera um tição. E eu ficara na calçada até dez horas, olhando as labaredas, que meu pai alimentava com aduelas e sarrafos. A gente da vila mexia-se, ria e cantava, iluminada por outros fogos. No dia seguinte as folhas do mamoeiro se torravam, pulverizavam. E na rua, desentulhada, apareciam grandes manchas negras.
Também conhecia o breu derretido. No armazém, barricas finas continham substância escura que, pisada, tirava a cor das moedas de vintém livres do azinhavre, raspadas no tijolo, molhadas e enxutas. Eu havia esfarelado um pedaço dessa maravilha, com um peso de meio quilo, junto à balança romana da loja. Tinha posto a massa dourada num cartucho de jornal, riscado um fósforo em cima e esperado o fenômeno. Uma lágrima correra no papel, alcançara-me o dedo anular, descera da unha a primeira falange. Largando a experiência, eu me desesperara, abafando os gritos, fora meter a mão num pote de água. Tinha sofrido em silêncio, receando que percebessem a traquinada e a queimadura.
Quando minha mãe falou em breu derretido, examinei a cicatriz do dedo e balancei a cabeça, em dúvida. Se o pequeno torrão, esmagado com o peso de meio quilo, originara aquele desastre, como admitir que pessoas resistissem muitos anos a barricas cheias derramadas em tachas fundas, sobre fogueira de S. João?
- A senhora esteve lá?
Desprezou a interrogação inconveniente e prosseguiu com energia.
— Eu queria saber se a senhora tinha estado lá.
Não tinha estado, mas as coisas se passavam daquela forma e não podiam passar-se de forma diversa. Os padres ensinavam que era assim.
— Os padres estiveram lá?
A pergunta não significava desconfiança na autoridade. Eu nem pensava nisso. Desejava que me explicassem a região de hábitos curiosos. Não me satisfaziam as fogueiras, as tachas de breu, vítimas e demônios. Necessitava pormenores.
Minha mãe estragara a narração com uma incongruência. Assegurara que os diabos se davam bem na chama e na brasa. Desconhecia, porém, a resistência das almas supliciadas. Dissera que elas suportariam padecimentos eternos. Logo insinuara que, depois de estágio mais ou menos longo, se transformariam em diabos. Indispensável esclarecer esse ponto. Não busquei razões, bastavam-me afirmações. Achava-me disposto a crer, aceitaria os casos extraordinários sem esforço, contanto que não houvesse neles muitas incompatibilidades. Reclamava uma testemunha, alguém que tivesse visto diabos chifrudos, almas nadando em breu. Ainda não me havia capacitado de que se descrevem perfeitamente coisas nunca vistas.
− Os padres estivaram lá? — Tornei a perguntar.
Minha mãe irritou-se, achou-me leviano e estúpido. Não tinham estado, claro que não tinham estado, mas eram pessoas instruídas, aprendiam tudo no seminário, nos livros. Senti forte decepção: as chamas eternas e as caldeiras medonhas esfriaram. Começava a julgara história razoável, adivinhava por que motivo Padre João Inácio, poderoso e meio cego, furava os braços da gente, na vacina. Com certeza Padre João Inácio havia perdido um olho no inferno e de lá trouxera aquele mau costume. A resposta de minha mãe desiludiu-me, embaralhou-me as idéias. E pratiquei um ato de rebeldia:
— Não há nada disso.
Minha mãe esteve algum tempo analisando-me, de boca aberta, assombrada. E eu, numa indignação por se haverem dissipado as tachas de breu, os demônios, o prestígio de Padre João Inácio, repeti:
—Não há não. É conversa.
Minha mãe curvou-se, descalçou-se e aplicou-me várias chineladas. Não me convenci. Conservei-me dócil, tentando acomodar-me às esquisitices alheias. Mas algumas vezes fui sincero, idiotamente. E vieram-me chineladas e outros castigos oportunos. **
A pedagogia do medo nos faz acreditar em coisas que nem imaginamos! O menino Graciliano é uma exceção que confirma a regra. De qualquer forma, convenhamos seu estilo é bem-humorado, sem perder de vista a seriedade da questão. Até porque, chineladas fazem doer!
Sim, o Diabo existe! Sem ele, é impensável a existência de Deus. Acreditar em Deus significa aceitar a existência do seu oposto; um necessita do outro para afirmarem-se perante a imaginação humana. Desconfio que foi o próprio Senhor que o criou. Ou terá sido a mente humana quem criou a ambos?!
Se o personagem dostoievskiano estiver certo, ambos são fatores que contribuem para a existência da civilização. Sem a adoração e o temor ao sobrenatural, o ser humano estaria livre de todas as amarras que o prendem à moral religiosa e só Deus – e o Diabo, é claro – sabem do que o humano, demasiado humano, é capaz! Eis que as forças que o oprimem o corpo, as leis e os instrumentos humanos criados para manter a ordem social são insuficientes. É necessário, ainda, controlar as mentes, aterrorizá-las e mantê-las pacificadas. Em outras palavras, é preciso garantir a submissão do espírito. Eis a função civilizadora da idéia de Deus e do Diabo. Não obstante, quantas barbaridades foram e são cometidas em Nome de Deus?!

* DOSTOIÉVSKI, Fiódor. Os irmãos Karamázov. São Paulo: Abril Cultural, 1970, p. 105-106.
** RAMOS, Graciliano. Infância. Rio de Janeiro: Ed. Record, 1981, p. 77-79.

Durkheim: análise sociológica do suicídio


Émile Durkheim (1858-1917)
Seja o amor não correspondido, o apego ao trabalho ou outra causa qualquer, os exemplos literários apresentam-nos a morte voluntária como resultante de motivações individuais. E assim também se dá na vida real. A primeira dificuldade consiste em definir o suicídio. “Como saber que móbil determinou o agente, como saber se, ao tomar a sua resolução, desejava efetivamente a morte, ou tinha outro fim em vista? A intenção é algo demasiado íntimo para poder ser atingida do exterior, a não ser por aproximações grosseiras”, escreve Durkheim. (1983, p.166)
O jovem que se mata por amor; a jovem que deixa dúvidas se realmente tinha intenção de dar cabo à vida; o velho funcionário que pensa em suicidar-se; o indivíduo que se mata por vergonha diante da falência; o soldado que se sacrifica pelos demais; o samurai que se mata em nome da honra; a renúncia desesperada à vida, etc. São inúmeras as situações em que comumente se adota a designação de suicídio. Portanto, é preciso caracterizá-lo. Segundo Durkheim:
Chama-se suicídio todo caso de morte que resulta direta ou indiretamente de um ato positivo ou negativo praticado pela própria vítima, ato que a vítima sabia produzir este resultado. A tentativa de suicídio é o ato assim definido, mas interrompido antes que a morte daí tenha resultado” (Id., p167).
Na literatura predomina o viés individual e psicologizante do suicídio; na vida real, também. É sandice negar os fatores individuais e psicológicos. Não obstante, não é sensato restringir-se ao indivíduo e ao psiquismo. Como observa Durkheim:
“Visto que o suicídio é um ato do indivíduo que apenas afeta o indivíduo, dir-se-ia que depende exclusivamente de fatores pessoais e que o estudo de tal fenômeno se situa no campo da psicologia. E, aliás, não é pelo temperamento do suicida, pelo seu caráter, pelos seus antecedentes, pelos acontecimentos da sua vida privada que normalmente este ato se explica? (Id., p.168)
Se os suicídios podem ser explicados apenas pelos fatores psicológicos, então, desresponsabilizamos a sociedade. No entanto, nem todos os que sofrem por amor, ou outro motivo qualquer, se matam. Por que outros resistem e não sucumbem ao ato suicida? A resposta está na própria sociedade. É isto que Durkheim demonstra em seu clássico estudo sobre o suicídio enquanto um fenômeno eminentemente social. Não que ele desconsidere a psicologia; ele apenas enfatiza os fatores sociais. “Cada sociedade tem portanto, em cada momento da sua história, uma aptidão definida para o suicídio”, afirma (Id., p.169). Ou seja, em cada sociedade há um número constante de suicidas, uma taxa de suicídio relacionada a cada grupo social, a qual “não se pode explicar nem através da constituição orgânico-psíquica dos indivíduos nem através da natureza do meio físico” (Id., p.177).
As causas do suicídio não estão, portanto, nos indivíduos – e no que eles declaram no momento desesperado em que abraçam a morte. Os indivíduos sucumbem à tendência suicidogênea disseminada na sociedade enquanto um estado geral, isto é, como um fator exterior aos indivíduos e independentes deles.[1]
“As razões com que se justificam o suicídio ou que o suicida arranja para si próprio para explicar o ato, não são, na maior parte das vezes, senão as causas aparentes. Não só não são senão as repercussões individuais de um estado geral, mas exprimem-no muito infielmente, dado que permanecem as mesmas e que ele difere. Estas razões marcam, por assim dizer, os pontos fracos do indivíduo, através dos quais a corrente que vem do exterior para incitá-lo a destruir-se se introduz mais facilmente” (Id., p.182).
Em cada sociedade há a tendência coletiva para o suicídio, uma força exterior aos indivíduos, mas que se manifesta através destes. Esta tendência está vinculada aos diferentes hábitos, costumes, idéias, etc. Sua intensidade é também determinada socialmente, isto é, a partir do contexto de cada sociedade específica. Observe-se que as sociedades não são compostas apenas por indivíduos, mas também por fatores físicos materiais independentes destes e que também influenciam a vida social. A intensidade com que se manifesta a tendência suicidogênea depende dos seguintes fatores:
“…primeiro, a natureza dos indivíduos que compõem a sociedade; segundo, a maneira como estão associados, ou seja, a natureza da organização social; terceiro, os acontecimentos passageiros que perturbam o funcionamento da vida coletiva, sem alterar no entanto a constituição anatômica desta, tais como as crises nacionais, econômicas etc.” (Id., p.199).
Em suma, são as condições sociais que explicam, por exemplo, que o fenômeno suicida se manifeste diferentemente nas diversas sociedades. Isto explica também porque o número de mortos voluntários e a sua distribuição entre as diversas faixas etárias e grupos sociais se mantém constante em cada sociedade específica e que só se modifique este quadro quando mudam as condições sobre as quais se sustenta a sociedade.
A relação entre o indivíduo e a sociedade determina as correntes suicidogêneas. Assim, quanto menos o individuo se encontra integrado à sociedade, maior a possibilidade do suicídio egoísta se manifestar:
“Quanto mais se enfraqueçam os grupos sociais a que ele (indivíduo) pertence, menos ele dependerá deles, e cada vez mais, por conseguinte, dependerá apenas de si mesmo para reconhecer como regras de conduta tão-somente as que se calquem nos seus interesses particulares. Se, pois, concordarmos em chamar de egoísmo essa situação em que o eu individual se afirma com excesso diante do eu social e em detrimento deste último, podemos designar de egoísta o tipo particular de suicídio que resulta de uma individuação descomedida” (Durkheim, O Suicídio, apud NUNES, 1998).
Por outro lado, quanto maior a integração do indivíduo à sociedade, maior a manifestação de outro tipo de suicídio: o altruísta. Se o individualismo excessivo pode induzir ao suicídio, a absorção do indivíduo pela coletividade pode ter o mesmo efeito. “Quando desligado da sociedade, o homem se mata facilmente, e se mata também quando está por demais integrado nela”, afirma Durkheim. (Id.)
Há outro tipo de suicídio analisado por Durkheim: o anômico. Este resulta de desequilíbrios sociais ocasionados por crises econômicas e políticas que modificam as condições sociais sob as quais se amparavam os indivíduos. Nestas circunstâncias, rompe-se a autoridade sustentada nas normas tradicionais e os indivíduos ficam sem referências. A crise produz deslocamentos financeiros, gera falências e processos de enriquecimento que fazem surgir os novos ricos. De um lado, a dificuldade em aceitar a situação material inferior; de outro, a cobiça diante da nova riqueza. E, em meio à crise, a moral não mais se sustenta e os indivíduos são obrigados a se educarem numa nova moral adaptada à nova situação. Este processo é doloroso e coloca em movimento a tendência suicidogênea anômica.
Durkheim esclarece que, em condições normais, as correntes suicidogêneas (egoísta, altruísta e anômica) “se compensam mutuamente”. Assim, o indivíduo se encontra num “estado de equilíbrio que o preserva de qualquer idéia de suicídio. Mas, se uma delas ultrapassar um certo grau de intensidade em prejuízo das outras, tornar-se-á, ao individualizar-se e pelas razões expostas, suicidogênea” (DURKHEIM, 1983, p.199).[2]
A sociedade é real, a morte também não é uma abstração. Se aceitarmos e compreendemos esta realidade, podemos viver melhor e nos resignarmos à certeza da finitude. Dessa forma, é possível superar os tabus e o moralismo que envolvem temas como o suicídio.
O mérito de Durkheim está em demonstrar que o suicídio é um fenômeno social e que é possível estudá-lo e compreendê-lo a partir da compreensão da sociedade. O suicídio é um fenômeno presente em todas as sociedades humanas, mas sob as condições da modernidade ele assume uma intensidade nunca vista. A responsabilidade é social e não apenas individual. As diversas áreas do conhecimento podem contribuir, mas é necessário que se respeite as suas especificidades e limites, sem que, por isso, neguem-se mutuamente.
Referências
DURKHEIM, Émile. Da divisão do trabalho social; As regras do método sociológico; O suicídio; As formas elementares da vida religiosa. São Paulo: Abril Cultural, 1983 (Os Pensadores).
NUNES, Everardo Duarte. Durkheim’s Suicide: reassessment of a classic from 19th-century sociological literatureCad. Saúde Pública. [online]. Jan./Mar. 1998, vol.14, no.1 [cited 24 December 2004], p.7-34. Available from World Wide Web: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-311X1998000100002&lng=en&nrm=iso>
UENO, Kayoko. O suicídio é o maior produto de exportação do Japão? Notas sobre a cultura de suicídio no Japão. In: REA, nº 44, janeiro de 2005 [Tradução: Eva Paulino Bueno]. Disponível emhttp://www.espacoacademico.com.br/044/44eueno.htm
ZWAHR-CASTRO, Jennifer. O suicídio entre adolescentes americanos. In: REA, nº 44, janeiro de 2005 [Tradução: Eva Paulino Bueno]. Disponível emhttp://www.espacoacademico.com.br/044/44ecastro.htm.

[1] Isto está relacionado á concepção que Durkheim tem do fato social. Para ele, o fato social, isto é, aquilo do que deve se ocupar a sociologia, se caracteriza por: 1) a coerção social exercida sobre os indivíduos; 2) sua exterioridade em relação aos indivíduos; e, 3) a generalidade. Durkheim mostra que os fatos sociais têm existência própria e independem do que pensam ou da ação dos indivíduos considerados isoladamente. Embora tenhamos personalidade individual, o modo como nos comportamos e agimos obedece a um padrão de condutas e de idéias, valores morais e hábitos, determinados pela sociedade. Esta desenvolve um conjunto de crenças e de sentimentos comuns: a consciência coletiva. Esta consciência não é a simples soma das consciências individuais ou de grupos específicos. Ela é partilhada, em maior ou menor grau, por todos os indivíduos e expressa o tipo psíquico da sociedade, o qual é imperativo e sobrevive às gerações.
[2] O Suicídio foi publicado em 1897. A tipologia durkheimiana permanece atual. Jennifer Zwahr-Castro, ao analisar este fenômeno na sociedade norte-americana, utiliza a sociologia de Durkheim e conclui que, entre os jovens norte-americanos, o mais comum é o suicídio egoístico. (Ver: O suicídio entre adolescentes americanos). Também a socióloga Kayoko Ueno nota que as hipóteses durkeimianas “podem ser ainda relevantes no Japão contemporâneo”. (Ver: O suicídio é o maior produto de exportação do Japão? Notas sobre a cultura de suicídio no Japão).

domingo, 29 de setembro de 2013

Arquitetos de sonhos e esperanças

Arquitetos de sonhos e esperanças

RESENHA
LOPES, Marcos Antônio; MOSCATELI, Renato. (Orgs.) Histórias de países imaginários: variedades dos lugares utópicos. Londrina: EDUEL, 2011 (172 p.)*
Histórias de países imaginários: variedades dos lugares utópicos, organizado por Marcos Antônio Lopes (Doutor em História pela USP e docente na Universidade Estadual de Londrina – UEL) e Renato Moscateli (Doutor em Filosofia Política pela UNICAMP e Pós-Doutorando em Filosofia na Universidade Federal de Goiás – UFG), apresenta uma rica exposição sobre os sonhos e esperanças de mundos ideais imaginados pelas mentes férteis dos filósofos e escritores ficcionistas. São os arquitetos de cidades construídas em ilhas e lugares imaginários, projetos utópicos de regeneração social orientados pelo ideal da perfeição e harmonia humana.
A obra é composta por dez capítulos, escritos por historiadores – na maioria – e docentes do campo filosófico. São eles/as: Célia Maria Borges (UFJF), Estevão Chaves de Rezende Martins (UnB), Fábio Duarte Joly (UFRB), João Antonio de Paulo (UFMG), José Costa D’Assunção Barros (UFRRJ), Márcia Siqueira de Carvalho (UEL), Marcos Antonio Lopes (UEL), Marcos Lobato Martins (UNIFAL) e Renato Moscateli (UFG). O objetivo, nas palavras dos organizadores,
“foi o de oferecer um mapa histórico para aqueles que desejarem conhecer a geografia de alguns dos países imaginários que vêm sendo concebidos desde a Antiguidade clássica, países cujos territórios foram delineados pela ficção, mas que nem por isto se desligaram da assim chamada realidade concreta” (p. 7).
Os autores expõem e analisam o pensamento utópico dos gregos e romanos antigos aos sonhos e esperanças que mobilizaram os jovens na década de 1960, num trajeto que inclui as utopias renascentistas, o espírito profético que sacudiu a Europa moderna, o iluminismo, o ideal socialista científico, a utopia dos prazeres dos socialistas utópicos e as manifestações utópicas na ficção científica.
Neste percurso, fica nítido que as Utopias não são apenas devaneios de mentes ociosas, mas construções imaginárias arquitetadas a partir dos contextos históricos reais, das vidas e relações sócio-históricas de indivíduos concretos de carne e osso.
As Utopias são respostas criativas às desventuras e dilemas da existência humana em cada época histórica. Da Antiguidade clássica à modernidade, os homens e mulheres rebelam-se contra a realidade angustiante e anseiam por um outro mundo no qual os sofrimentos, a desigualdade e opressão social sejam superados. Estes mundos imaginários tanto podem representar o regresso a um passado idílico quanto o salto para um futuro, um vir-a-ser que habita os corações e as mentes dos homens e mulheres do tempo presente.
As Utopias são elaboradas a partir das diversas fontes que nutrem a imaginação humana. Inspiradas pela fé religiosa, elas adquirem contornos proféticos que estimulam a construção do Reino de Deus aqui na terra, mas também podem ser conformistas na espera do paraíso após a morte. A razão, a ciência, a situação política e social, também inspiram a construção das Utopias. Em qualquer dos sentidos, elas negam o real existente e afirmam a esperança de que um outro mundo é possível.
O pensamento utópico não está imune às críticas. Não obstante, os arquitetos de sonhos e esperanças lançam os alicerces de construções imaginárias no solo da realidade existente e encontram nos indivíduos reais as potencialidades da sua materialização. As Utopias são construções mentais de indivíduos em condições sócio-econômicas de pensá-las. Mas o sonho e a esperança não são propriedades de ninguém em particular. Por mais miserável que seja a condição humana, é possível sonhar. É a resposta ao desejo humano da justiça, igualdade e um mundo melhor. Quando as Utopias são assimiladas e tornam-se o móbil profético ou ideológico, elas alimentam os anseios de transformação social. Ao serem materializadas pela ação humana, influenciam e mobilizam multidões.
A leitura de Histórias de países imaginários permite a reflexão crítica sobre Utopias e as formas que elas assumem nas diversas épocas históricas. Por mais que o humano busque a perfeição e arquitete modelos de mundos perfeitos, ele não está desvinculado da realidade imperfeita e, sobretudo, é um ser imperfeito. Assim, não surpreende que os mundos arquitetados incorporem ideais de eugenia social, mantenham hierarquias e formas execráveis de relações sociais.
As Utopias podem gerar o oposto do ideal proposto. Por mais que sintetizem a esperança de realizar os sonhos mais generosos, as construções idealizadas são mediadas pela práxis humana. As Utopias podem se revelar intolerantes, autoritárias e gerar realidades sociais opressivas.
Na medida em que seguimos os autores nesta viagem por lugares utópicos e países imaginários, é-nos possível avaliar criticamente as potencialidades e limites das Utopias. Estas nos remetem às águas sombrias das distopias tão bem expressas por autores como George Orwell em A revolução dos bichos e1984. Eis um dos méritos deste livro.
Os arquitetos de Utopias também podem se revelar demolidores de sonhos e esperanças. De qualquer forma, a realidade social, política e econômica, nos diferentes contextos históricos, fertiliza o solo em que germinam novos sonhos e utopias. A esperança se renova. Mas, sem ilusões! Mesmo que as Utopias nos remetam a mundos imaginários, é salutar manter a razão, o pé no chão da realidade social e não perder de vista o humano demasiado humano.
A leitura de Histórias de países imaginários: variedades dos lugares utópicos contribui para a compreensão dos diferentes significados que as Utopias historicamente assumem (proféticas, científicas, políticas e sociais, etc.). Por outro lado, a obra resgata um tema que, a despeito da desesperança de muitos, permanece atual. Afinal, o ser humano é um ser imaginativo, desejante e capaz de pensar a vida para além da sua existência. As Utopias são necessárias, bem como o entendimento delas. Vale a pena ler, sonhar e manter a esperança.

* Publicado originalmente na REA, nº 133, junho de 2012. Formato em extensão PDF, para impressão, disponível emhttp://www.periodicos.uem.br/ojs/index.php/EspacoAcademico/article/view/17520/9316

O marxismo é religião?

O marxismo é religião?

Certa feita, num evento acadêmico, causou acirrada polêmica e furor um comentário sobre as afinidades eletivas entre marxismo e religião. Não foi meu intuito afirmar que o marxismo em geral é uma espécie de religião laica. Apenas chamei a atenção para o fato de que determinados comportamentos, observados em minhas vivências, muito se assemelham a uma forma religiosa de conceber e praticar uma ideologia. Outro dia, por exemplo, a fala de um companheiro, seu tom de voz e gesticulações, aliado ao conteúdo sectário da sua mensagem, mais me parecia uma pregação profética de verdades dogmáticas. Contribuía até mesmo a aparência física do falante, com sua barba branca que assinalava o passar dos anos. Era um discurso de fé e defesa da ortodoxia. Mais parecia que estava diante de um profeta falando para discípulos convertidos. E não é uma questão de idade. Noutra ocasião, observando um jovem acadêmico a defender o marxismo, tive a impressão de estar perante um sacerdote neófito.
Compreendo a paixão que move uns e outros, mas parece-me que são tênues os limites entre a adesão voluntária e racional a uma determinada ideologia – um ismo qualquer – e a transubstanciação desta em uma crença ortodoxa, à maneira religiosa. Parece-me, portanto, que, em determinados contextos, as ideologias laicas adquirem caráter religioso. Então, seus profetas, pequenos sacerdotes e seguidores, acríticos e papagaios de slogans, agem à maneira dos grandes e pequenos inquisidores. E se não nos lançam na fogueira da inquisição laica é, simplesmente, porque não tem o poder.
Felizmente, este tipo de comportamento não é geral. No entanto, parece-me que há uma certa vinculação entre fé e ideologia. É uma hipótese. Será que as ideologias embutem em si um certo messianismo? Não expressam o desejo humano de construir o paraíso aqui na terra? Estou convencido de que os sonhos de sociedades perfeitas são perigosos. O ser humano real é imperfeito. As sociedades criadas pelo humano são imperfeitas. Imaginar a ordem social perfeita é idealismo – ainda que em nome do materialismo dialético.
Bem sei que há marxistas que não são dogmáticos nem agem à maneira religiosa. Mas também há a patrulha ideológica que, diante de qualquer possibilidade de crítica ao cânone, logo buscam os rótulos políticos – quando não o mero xingamento – para afastar os críticos. De qualquer forma, estas reflexões me fizeram lembrar a leitura de Tempos interessantes: uma vida no século XX, do historiador marxista Eric J. Hobsbawm. Neste livro, Hobsbawm faz referências a termos próprios da religião. Por exemplo, ao analisar o Movimento Comunista Internacional após a morte de Stalin, escreve:
“Embora a Igreja Comunista Universal tivesse feito surgir diversos grupos cismáticos e hereges, nenhum dos grupos rebeldes que ela gerou, expeliu ou matou jamais conseguiu estabelecer-se além do âmbito local como rival, até que Tito o fizesse em 1948…” (p. 226).[1]
O marechal Josip Broz Tito, dirigente máximo da ex-Iuguslávia socialista, foi “excomungado” da “Verdadeira Igreja”, até que, em 1955, houvesse a reconciliação com Kruchev. E os comunistas que tiveram que aceitar a excomunhão, agora se viam obrigados a reconsiderar.
Segundo Hobsbawm, “Para os jovens revolucionários de meu tempo, as manifestações de massa eram equivalentes às missas papais para os católicos devotos” (p. 354). É muito interessante o seu depoimento sobre o significado do ser comunista naquela época:
“Para os que, como eu, se tornaram comunistas antes da guerra, e especialmente antes de 1935, a causa do comunismo era em verdade algo a que pretendíamos dedicar nossas vidas, e alguns de fato o fizeram. A diferença crucial veio a ser entre os comunistas que passaram a vida na oposição e aqueles cujos partidos tomaram o poder, e que portanto se tornaram direta ou indiretamente responsáveis pelo que ocorreu em seus regimes. O poder não corrompe necessariamente as pessoas como indivíduos, embora não seja fácil resistir a sua corrupção. O que o poder faz, especialmente em tempos de crise e de guerra, é tornar-nos capazes de realizar e justificar coisas inaceitáveis se fossem feitas por indivíduos privados. Para os comunistas como eu, cujos partidos nunca estiveram no poder nem metidos em situações que exigissem decisões sobre a vida ou a morte de outras pessoas (resistência, campos de concentração), as coisas foram mais fáceis” (p. 150).
Ser comunista nesta fase, segundo o título da autobiografia de Giorgio Amendola, líder comunista italiano antes da guerra, era “Uma escolha de vida” (Una scelta di vita) (p. 150). Exigia dedicação plena ao partido:
“O “partido de vanguarda” leninista era uma combinação de disciplina, eficiência executiva, completa identificação emocional e um sentimento de dedicação total” (p. 155, grifo do autor).
Um exemplo ilustrativo da “fé” no partido é o depoimento de um amigo do autor, Tedy Prager, sobre uma militante comunista, Freddie, que ficou presa sob uma viga após a detonação de uma bomba inimiga despejada em Cambridge, durante a Segunda Guerra Mundial, mas precisamente em 1941:
“Ela gritava que o fogo estava queimando seus pés, e eu continuava a dar machadadas na viga, mas nada acontecia. Pobre Freddie… Não adianta, ela agora gritava, vou morrer. E então, enquanto as lágrimas me vinham aos olhos devido ao desespero e à fumaça, tão exausto que não conseguia levantar o machado, ela bradou: Viva o Partido, viva Stalin… Viva Stalin, gritava ela, e adeus rapazes, adeus Tedy” (citado p. 155).
Segundo Hobsbawm:
“Freddie não morreu, mas teve as pernas amputadas. Na ocasião, nenhum de nós consideraria surpreendente que as últimas palavras de um membro moribundo do Partido fossem para o Partido, para Stalin e para os camaradas. (Naquele tempo, a idéia de Stalin entre os comunistas estrangeiros era tão sincera, tão natural, tão imaculada pelo que se soube depôs, e tão universal quanto a genuína dor que sentimos em 1953 por ocasião da morte de um homem que nenhum cidadão soviético desejaria – ou ousaria – chamar por um apelido como “tio Joe” na Inglaterra ou “Bigodudo” [Baffone] na Itália. Nossas vidas eram para o Partido. Devíamos tudo o que tínhamos e recebíamos de volta a certeza de nossa vitória e a experiência da fraternidade” (p. 155-156).
“Aceitávamos a absoluta obrigação de seguir a “linha” que nos era proposta, mesmo se discordássemos dela, embora fizéssemos esforços heróicos para nos convencer de sua “correção” intelectual e política a fim de defendê-la, como se esperava de nós. Ao contrário do fascismo, que exigia abdicação automática e submissão à vontade do líder (“Mussolini sempre tem razão”) e o dever incondicional de obedecer a ordens militares, o Partido – mesmo no auge do absolutismo de Stalin – apoiava sua autoridade, pelo menos em teoria, no poder de convencimento da razão e do “socialismo científico”. Afinal de contas, supunha-se que fosse baseado numa “análise marxista da situação”, que todos os comunistas deveriam aprender a fazer” (p. 156).
A dedicação abnegada ao partido era plena e incluía, inclusive, aspectos da vida privada e sentimental:
“Fazíamos o que o Partido nos mandava fazer. Em países como a Grã-Bretanha ele não nos requisitava nada de muito dramático. Na verdade, não fosse sua convicção de que aquilo que faziam estava salvando o mundo, os comunistas poderiam sentir-se entediados com as atividades rotineiras de sue Partido, conduzidas segundo o ritual costumeiro dos movimentos trabalhistas ingleses (camarada presidente, minutas de reuniões, relatório de tesoureiro, resoluções, contatos, vendas de livros, e tudo o mais) em casas particulares ou salas de reunião pouco acolhedoras. Mas obedeceríamos a quaisquer ordens que o Partido nos desse. Afinal, a maioria dos quadros soviéticos e do Komintern, no período do terror stalinista, que sabiam o que os esperava, acataram a ordem de regressar. Se o Partido mandasse abandonar o amante ou o cônjuge, obedecia-se. Após 1933 o Partido alemão no exílio ordenou a Margaret Mynatt (mais tarde inspiradora das Obras completas de Marx e Engels em língua inglesa) que fosse de Paris para a Inglaterra, pois precisava de alguém em Londres, e, como a entrada de comunistas alemães conhecidos era negada, foi necessário contar com um camarada com documentação britânica válida. Sem um momento de hesitação ela abandonou o amor de sua vida (assim me disse ela mais tarde) e partiu. Nunca mais o viu (ou seria a viu?) novamente” (p. 156-157).
“Era impensável qualquer relacionamento sério com quem não fosse membro do Partido ou estivesse para ingressar (ou reingressar)” (p. 157).
Este também foi o caso do primeiro casamento do autor:
“Naturalmente ela era também comunista; filiou-se ao Partido quando casamos – naquela época eu consideraria inconcebível casar com que não fosse membro do Partido…” (p. 200).
“Confesso que no momento em que percebi ser capaz de imaginar uma verdadeira relação com alguém que não fosse recruta potencial do Partido compreendi que já não era mais comunista no sentido integral de minha juventude” (p. 157).
Ser comunista pressupunha um ethos, uma moral revolucionária, uma conduta objetiva e subjetiva, a fé no socialismo e no partido:
“Nesses tempos a sociedade deles é uma versão em miniatura da sociedade ideal, na qual os homens são irmãos e sacrificam tudo pelo bem comum sem abandonar sua individualidade. Se isso é possível no âmbito do movimento, por que não será possível em toda parte” (p. 158).[2]
“A essa altura eu havia reconhecido, com Milovan Djilas, que tratou extraordinariamente vem da psicologia dos revolucionários, que “essa é a moralidade de uma seita”, mas que isso é precisamente o que lhes deu tanta força como impulsores da mudança política” (p. 158).
Hobsbawm enfatiza que “o comunismo representou o ideal de transcender o egoísmo e servir toda a humanidade sem exceção” (p. 160). Isto exigia sacrifícios:
“Dureza, até mesmo falta de piedade, fazer o que tinha de ser feito, antes, durante e depois da revolução, era a essência do bolchevique. Era a reação necessária aos tempos” (p. 160-161).
“Na guerra total em que estávamos metidos, não nos perguntávamos se deveria haver limites aos sacrifícios impostos a outrem, mais do que a nós mesmos. Como não estávamos no poder, nem era provável que chegássemos a ele, esperávamos ser prisioneiros, mais do que ser carcereiros” (p. 161)
“Havia partidos comunistas e seus funcionários, como André Marty que aparece em Por quem os sinos dobram, de Hemingway, que se orgulhavam de seu bolchevismo “duro como aço”, e não menos o Partido Comunista soviético, no qual este se juntava à tradição absolutista de poder ilimitado e à brutalidade da existência russa cotidiana para produzir as hecatombes da era stalinista” (p. 161-162).
“… a prova de sua devoção à causa era a disposição de defender o indefensável.[3] Não era o credo cristão Credo quia absurdum (“acredito porque é absurdo”), e sim o constante desafio: “Podem me experimentar mais: como bolchevique, eu não sucumbo” (p. 162).
A fé pressupõe unicamente a crença. Não há algo de religiosidade neste ethos comunista? O leitor pode argumentar que o depoimento de Hobsbawm se refere ao período stalinista, ao período do culto à personalidade. Tem razão. Mas será que o culto aos líderes, a transformação da teoria dita revolucionária em dogma e a defesa da ortodoxia são aspectos restritos ao predomínio do “guia genial dos povos”? Afinal, há ou não manifestações ideológicas autodenominadas marxistas que mais se assemelham a seitas religiosas? Há ou não afinidades eletivas entre marxismo e religião? Qual a sua opinião, caro leitor, cara leitora?

[1] Todas as citações são de: HOBSBAWM, Eric J. Tempos interessantes: uma vida no século XX.São Paulo: Companhia das Letras, 2002 (grifos meus).
[2] Esse trecho é citado pelo próprio autor e refere-se ao que escreveu logo após a crise de 1956, quando se “encontrava mais próximo das convicções da juventude” (p. 158).
[3] Hobsbawm se refere a Theodore Rothstein, fundador do PC britânico, que sofreu muito ao cair em desgraça aos olhos de Moscou.

O significado da obra de Karl Marx


“O marxismo, que é a mesmo tempo um método, um corpo de pensamento teórico e um conjunto de textos considerados por seus seguidores como uma fonte de autoridade, sempre sofreu a tendência dos marxistas de começar por decidir o que pensam que Marx deveria ter dito e depois procurar a confirmação nos textos, dos pontos de vistas de vistas escolhidos”
(E.J. Hobsbawm)*
Sociologia Positivista tem como objetivo a integração, o consenso, a harmonia social. Na analogia positivista entre a sociedade e o organismo biológico, a tendência natural é as partes constitutivas do todo, ainda que diferenciadas, cooperem no sentido da manutenção da saúde do corpo. Se é natural que o corpo tenda à normalidade, todos os sintomas que possam comprometer sua saúde são patologias, anormalidades.
Assim também é concebida a sociedade. Para os positivistas, os conflitos sociais, as contradições da sociedade industrial, são fenômenos marginais, transitórios, exceções, imperfeições cuja solução transforma-se num problema moral – o natural é a saúde do corpo, não sua doença. O positivismo expressa uma ideologia que justifica a ordem capitalista. Sua preocupação básica reside na manutenção e preservação do status quo.
A perspectiva teórica de Karl Marx (1818-1883) expressa a crítica mais radical à sociedade industrial. O impacto das suas formulações teóricas foi tamanho que boa parte da intelectualidade ocidental não tem feito outra coisa senão o esforço de confirmar ou negar suas idéias. Em Marx, a sociedade capitalista é desvelada, desnudada, analisada em seu âmago. Sua teoria busca apreender o caráter contraditório e antagônico desta sociedade. Todo o seu esforço intelectual destina-se ao desvendamento do funcionamento, estrutura e devir necessário do capitalismo. Marx tem um pé no passado, outro no presente e a cabeça no futuro.
Sua teoria influenciou e influencia milhares de pessoas. Governos foram derrubados e instituídos em seu nome; seus seguidores, a exemplo do cristianismo, cometeram coisas horrendas em seu nome; mas, também levantaram bem alto a bandeira da igualdade, da liberdade e da fraternidade, abandonada há muito pelos que a empunharam nos idos da revolução francesa. Culparam-no, mataram-no e ressuscitaram-no. Uns dizem: Marx está morto! Outros: Marx está vivo! Na verdade, tomam-no e julgam-no pelos que falam em seu nome.
Não poderia ser diferente. Suas idéias já não lhes pertence. Seus seguidores, os marxistas de todas as matizes, interpretaram-nas e enriqueceram-nas com novos elementos teóricos; em outros casos, empobreceram-nas e estimularam graus de ruptura variados.
Seu pensamento tornou-se carne, concretude e realidade na vida e obra de milhões de indivíduos. Como todo mestre, cujo pensamento passa à posteridade, é disputado por seus discípulos. Suas palavras transformam-se em argumento de autoridade e suas idéias não escapam à sacralização. Como ocorreu com o cristianismo, a nova fé não escapa ao fanatismo e ao espírito de seita.
Mas, o maior feito de Marx não é a legião de seguidores que agem em seu nome. Ele próprio chegou a afirmar que não era marxista. O significado maior da sua obra está precisamente na fusão da teoria com a realidade social e, assim, transformar-se numa força política ativa e capaz de transformar o mundo. Sua teoria jamais se propôs a ser uma filosofia abstrata ou diletante, dos que ficam a enunciar problemas teóricos e a resolvê-los teoricamente.
Em Marx, há uma unidade entre teoria e prática que se transforma em práxis transformadora do mundo. Como ele escreveu: “Os filósofos limitaram a interpretar o mundo de distintos modos, cabe transformá-lo.” Marx foi um filósofo, historiador, economista, sociólogo e, sobretudo, cientista. Mas sua relevância não se resume à teoria: ele foi um homem de ação, envolvido nos dilemas sociais e políticos de sua época e, o que é raro em nossos dias, assumindo o ônus de tomar uma posição. Para Marx, a ciência não é neutra. Mas nem por isso perde o rigor científico.

Sugestão de leituraKONDER, Leandro. Karl Marx – Vida e Obra. São Paulo: Paz e Terra, 1999 (154 p.).
__________. O futuro da filosofia da práxis – O pensamento de Marx no século XXI. São Paulo: Paz e Terra, 1992 (141 p.).

Sobre a morte… e a vida!

Sobre a morte… e a vida!

*“A existência de que desfrutais é igualmente dividida entre a morte e a vida. O primeiro dia do vosso nascimento vos encaminha para morrer como para viver” (MONTAIGNE, 2010, p. 77)
“Ao nascermos, morremos, e o fim decorre da origem” (Manílio, IV, 16) [1]
 Por que escrever sobre a morte? Por que pensar sobre o inexorável? Por que consumir o precioso tempo de viver, tempo que não retorna, para refletir a respeito da verdade absoluta da finitude da existência? Não é melhor simplesmente viver a vida sem pensar e submergir no cotidiano dos dias que passam? Morreremos! Que a vida seja intensa em toda a sua plenitude e, de certa forma, esqueçamos de morrer. É preciso viver como se não houvesse o amanhã. Carpe diem!
Não obstante, a morte nos surpreende e caminha ao nosso lado, em nós, desde o momento em que a vida é concebida. Para o feto, ainda em desenvolvimento no ventre materno, a vida é apenas uma possibilidade. O nascimento não representa a vitória sobre a morte, mas simplesmente a continuidade do ciclo da vida. Vida e morte se unem no mesmo ser, e o corpo que se desenvolve, robusto e saudável, já começou a morrer. Não há certeza de que chegará ao tempo da velhice. Seja como for, não resistirá aos ditames da natureza.
Este não é um processo meramente biológico. Se a vida e morte humana transcorressem meramente como uma evolução biológica seríamos reduzidos à categoria de um animal qualquer. Somos animais, mas diferentes. Não pautamos nossa vida apenas pelos instintos, ainda que sejam importantes. O animal não-humano institivamente sente que vai morrer; o ser humano tem a consciência da morte e, culturalmente, desenvolve mecanismos protetores e compensadores diante da certeza da finitude e do pós-morte. A espécie humana se imagina especial destinado a uma vida post mortem e elabora diversas teorias e crenças na esperança de que a vida seja eterna.[2] A morte humana transfigura-se num ritual cultural, religioso e social, circunscrito no tempo e no espaço histórico. Povos e grupos sociais, nas mais diversas sociedades e culturas, têm o seu modo específico de conviver, ritualizar e conceber a morte.
A consciência da morte é humana. Talvez por isto, assuma a face de um drama desesperador e, muitas vezes, insuperável. Embora esteja presente no dia-a-dia, sempre nos parece distante, pertencente a um futuro que nos recusamos a vislumbrar e se refere aos outros. Por que transformamos a morte num tema tabu? Por que a dificuldade em aceitá-la com naturalidade? Não é mais sensato aprender a conviver com a certeza de que morreremos?
Montaigne ensina que a sabedoria está em aprender a não ter medo de morrer. Meditar e aprender sobre a morte é parte do aprendizado do viver bem. Para ele, recusar esta verdade é estupidez:
A morte é o fim da nossa caminhada, é o objeto necessário de nossa mira; se nos apavora, como é possível dar um passo à frente sem ser tomado pela ansiedade? O remédio do vulgo é não pensar nela. Mas de que estupidez brutal pode vir cegueira tão grosseira? É pôr a brida na cauda do burro (MONTAIGNE, 2010, p.63).
Por outro lado, também é risível vincular a morte à idade. É ridícula a arrogância dos jovens diante da velhice, como se a partir de certa idade a morte se anunciasse no rosto enrugado e no corpo decrépito. Quem sabe o horror ao longevo se explique mais pelo espetáculo da morte anunciada do que por antecipar o futuro indesejado ao jovem. Os critérios da morte não são definidos pela certidão de nascimento. O aborto, o natimorto, a morte na infância e adolescência e em qualquer tempo da vida, mostra a sandice de se imaginar imune ao destino finito de todo ser vivente:
Jovens e velhos abandonam a vida da mesma maneira. Dela ninguém sai de outro jeito senão como se tivesse entrado naquele instante, acrescentando-se a isso que não há homem tão decrépito que não pense ainda ter vinte anos no corpo enquanto enxergar Matusalém diante de si. E ademais, pobre louco que és, quem te fixou os prazos de tua vida (Id., 64).
Montaigne escreveu estas palavras aos 39 anos de idade – viveu mais 20 anos. O romano Marco Túlio Cícero provavelmente concordaria com ele. “Aliás, quem pode estar seguro, mesmo jovem de estar ainda vivo até o anoitecer?”, escreveu Cícero (2007, p. 53). Embora apologista da velhice, o sábio romano chamou a atenção para a insensatez de imaginar que a flor da idade torna o jovem imune à morte:
Alimentaria o jovem, apesar de tudo, a esperança de viver ainda muito tempo, enquanto isso é interdito ao velho? Mas vejam, é uma esperança insensata: que pode haver de mais insano que ter por certo o que não o é e por verdadeiro o que é falso? (Id.)
No entanto, a morte considerada prematura é mais impactante. Assim, é mais naturalmente aceita a morte na velhice do que a dos jovens e crianças. Cícero expõe em bela metáfora este paradoxo da vida humana:
Que há de mais natural para um velho do que a perspectiva de morrer? Quando a morte golpeia a juventude, a natureza resiste e se rebela. Assim como a morte de um adolescente me faz pensar numa chama viva apagada sob um jato d’água, a de um velho se assemelha a um fogo que suavemente se extingue. Os frutos verdes devem ser arrancados à força da árvore que os carrega; quando estão maduros, ao contrário, eles caem naturalmente (Id., p. 55)
Não há, porém, como escapar aos desígnios da morte. Com efeito, o contar do tempo é apenas a medida da vida vivida, nada diz sobre a intensidade do viver. O meu avô faleceu com 107 anos de idade, mas será que sua experiência de vida fez valer a pena tamanha longevidade? Na verdade, é preferível a morte ao prolongamento do viver sob a dor e sofrimento constantes e da perda do autocontrole sobre o próprio corpo.
Os avanços científicos tornaram possível o prolongamento da vida biológica, mas não garantem, necessariamente, qualidade de vida. Sob determinadas condições, chega a ser cruel a manutenção da vida – ainda mais quando prolongada artificialmente. O indivíduo que se encontra em tal situação perdeu a capacidade de decidir sobre si mesmo. Ainda que abandonasse os valores religiosos e morais que o formaram, não teria como solicitar que dessem cabo à vida. Se conseguisse, muito provavelmente não seria atendido, pois, em geral, a lei pune a eutanásia. Muito dificilmente algum familiar teria tal iniciativa. Só lhe resta viver – se se pode chamar assim a vida sob tais circunstâncias.
Isto me faz lembrar os struldbrugss, personagens da obra de Jonathan Swift,As viagens de Gulliver. Os struldbrugss, raros entre os luggnaggianos, eram imortais. Porém,
Quando alcançam os oitenta anos, o que é considerado o limite extremo da vida neste país, eles sofrem de todas as excentricidades e doenças dos demais velhos e, além delas, de muitas outras que surgiam com a atemorizante perspectiva de nunca morrer. Não apenas são teimosos, rabugentos, avarentos, taciturnos, presunçosos, tagarelas, como também são incapazes de sentir amizade e encontram-se mortos para todas as afeições naturais, que jamais se prolongam além dos seus netos. Inveja e desejos impotentes são as afeições que prevalecem neles. (…) Aos noventa leses perdem dentes e cabelos; com esta idade já não fazem nenhuma distinção de gosto, então comem e bebem o que puderem conseguir, sem ter apetite e nem satisfação com isso. As doenças que os atacam permanecem, sem evolução ou diminuição. Quando conversam, esquecem os nomes das coisas e os nomes das pessoas, até mesmo dos que são seus amigos e parentes mais próximos (SWIFT, 2003, p.253-255).
E daí para pior… Swift imaginou esta cena dantesca no século XVIII (a primeira edição do livro é de 1726). A ciência atual gera os struldbrugss modernos, embora não possa garantir a imortalidade. Talvez seja tempo das sociedades questionarem os valores que fundamental tais práticas.
A intensidade de uma vida não se mede pela quantidade de tempo vivido. Os animais não-humanos não contam o passar do tempo, apenas vivem. Viver a ver o passar das nuvens, imerso na mediocridade e restrito às funções vitais é diferente do viver intenso e qualitativo. Na vida, alguns meses podem ser mais significativos do que a longevidade:
A utilidade do viver não está na duração: está no uso que dele fizemos. Uma pessoa viveu muito tempo e pouco viveu. Atentai para isso enquanto estás aqui. Ter vivido bastante está em vossa vontade, não no número dos anos (MONTAIGNE, 2010, p. 81).
É possível acomodar-se, amoldar-se e simplesmente viver. Como notou Dostoiévski (1992, p. 68), para uso do cotidiano é “mais do que suficiente a consciência humana comum.” A consciência perspicaz trás à tona o sofrimento. O ser humano é o único capaz de sofrer por antecipação. Então, diriam o vulgo e o douto, por que refletir sobre a morte se esta indubitavelmente induz à angústia?
O comum e o douto que se recusa a pensar sobre a morte se iludem. Pois, ela pode ser sutil e fugaz; mas é impossível relegar sua presença. “Como é possível conseguirmos nos desfazer do pensamento da morte, e que a cada instante não nos pareça que ela nos agarra pela gola?”, pergunta Montaigne (2010, p. 66).
Por mais que façamos de conta que a nossa vez está inscrita em algum lugar do futuro indeterminado, não escapamos ao pensamento sobre a morte. Ainda que nos recusemos firmemente, ela nos espreita e pode nos surpreender. É preciso, portanto, que nos preparemos:
aprendamos a arrostá-la de pé firme e a combatê-la. E para começar a tirar-lhe sua grande vantagem sobre nós, tomemos um caminho totalmente oposto ao comum. Tiremos-lhe a estranheza, frequentemo-la, acostumemo-nos com ela, não tenhamos nada de tão presente na cabeça como a morte: a todo instante a representemos em nossa imaginação em todos os aspectos (Id., p. 68).
Onde ela nos encontrará? Impossível saber:
Qual será a forma da minha morte?
Uma das tantas coisas que eu não escolhi na vida.
Existem tantas… Um acidente de carro.
O coração que se recusa abater no próximo minuto,
A anestesia mal aplicada,
A vida mal vivida, a ferida mal curada, a dor já envelhecida
O câncer já espalhado e ainda escondido, ou até, quem sabe,
Um escorregão idiota, num dia de sol, a cabeça no meio-fio… (Raul Seixas[3]
 
Há muitas formas de morrer. “É incerto onde a morte nos espera, aguardemo-la por toda parte” (MONTAIGNE, 2007, p. 69). O poder econômico, por exemplo, é incapaz de evitar a morte provocada por uma picada de mosquito. Sejamos mais sensatos e humildes, reconheçamos a fragilidade da existência.
Para Montaigne, a morte está relacionada com a liberdade. Somos mais livres na medida em que nos preparamos para morrer:
Meditar previamente sobre a morte é meditar previamente sobre a liberdade. Quem aprendeu a morrer desaprendeu a se subjugar. Não há nenhum mal na vida para aquele que bem compreendeu que a privação da vida não é um mal. Saber morrer liberta-nos de toda sujeição e imposição” (Id., p. 69).
Retiremos as máscaras que nos iludem e nos aprisionam em nossos medos. Não é fácil, mas nos ajudará a conceber a vida e a morte em sua simplicidade:
É preciso tirar a máscara tanto das coisas como das pessoas. Quando for retirada, só encontraremos embaixo essa mesma morte pela qual um criado ou uma camareira passaram ultimamente sem medo. Feliz a morte que não deixa tempo para os aprestos de tal viagem (Id., p.83).
Os fantasmas que criamos são mais assustadores que a morte em si. No final, tudo terminará bem; ou seja, de qualquer forma será o final. Não adianta tentar escapar ao destino comum à condição biológica humana.
Referências
CÍCERO, Marco Túlio. Saber envelhecer e A amizade. Porto Alegre: L&PM, 2007.
DOSTOIEVSKI, Fiodor. Memórias do subsolo e outros escritos. São Paulo, Editora Paulicéia 1992.
MONTAIGNE. Que filosofar é aprender a morrer. In idem, Os Ensaios. São Paulo: Companhia das Letras, 2010, p.59-83.
SWIFT, Jonathan. As viagens de Gulliver. São Paulo: Editora Nova Cultural: 2003.

* Publicado na REA, nº 131, abril de 2012, disponível emhttp://www.periodicos.uem.br/ojs/index.php/EspacoAcademico/article/view/16685/9012