domingo, 29 de setembro de 2013

Quando a guerra é a melhor chance para a paz

Em algum ponto, o pacifismo se torna parte da maquinaria da morte e o isolacionismo, uma forma de genocídio.
Sebastian Junger*, no Washington Post 
Trabalho como repórter de guerra desde 1993, quando me mandei para a Bósnia com uma mochila, um saco de dormir e uma pilha de cadernos de anotações. O primeiro cadáver que vi em uma zona de guerra foi o de uma jovem garota jogada nua nos arredores da cidade kosovar de Suha Reka, após ser estuprada por um grupo de paramilitares sérvios no final da guerra em 1999. Após acabarem com ela, eles cortaram sua garganta e a deixaram à mingua em um campo aberto; quando a vi, o único jeito de saber que era uma mulher – ou mesmo um ser humano – foi pelo esmalte vermelho em suas mãos.
Cresci em uma família extremamente liberal durante a Guerra do Vietnã, e ainda assim achei difícil não me alegrar com o pensamento de que os homens que estupraram e mataram aquela garota pudessem ter morrido durante o bombardeio de 78 dias da OTAN que finalmente trouxe independência ao Kosovo.
Toda guerra que já cobri – Kosovo, Bósnia, Serra Leoa e Libéria – resistiu a todos os esforços diplomáticos para encerrá-la, até que uma ação militar ocidental enfim forçasse uma resolução. Mesmo o Afeganistão, onde as tropas da OTAN entraram em uma guerra civil que já dura uma década, está experimentando seu menor nível de baixas civis em uma geração. Tal histórico deveria forçar mesmo os militantes da paz a considerarem que ação militar é necessária para trazer certas guerras ao fim.
Não obstante, tem havido pouca evidência desse sentimento na oposição americana a ataques com mísseis contra alvos na Síria. Mesmo após 1.400 civis, incluindo 400 crianças, terem sido mortos em um ataque com gás nervoso que com toda probabilidade foi levado a cabo por forças do governo, a perspectiva de intervenção militar americana tem sido encarada com uma combinação de isolacionismo míope e pacifismo reflexo – embora eu não consiga pensar em qualquer definição moral de “antiguerra” que inclua simplesmente ignorar a matança de civis no exterior.
Claro, mesmo o mais ardente pacifista não pode negar que foi a ameaça crível de força pelos EUA que fez com que o regime sírio fosse receptivo à proposta russa de que ele abra mão do controle de seus estoques de substâncias nervosas. Se o acordo falhar, ou provar-se uma mera tática de enrolação, ataques militares, ou pelo menos a ameaça deles, novamente serão necessários. As negações do presidente sírio Bashar al-Assad já são preocupantes. Sua insinuação de que os rebeldes atacaram a si mesmos com gás nervoso para conseguirem a simpatia do mundo me lembra das autoridades sérvias que diziam que a população de Sarajevo estava atirando em si mesma com morteiros; tal alegação era tão pouco convincente então como o é agora.
A objeção mais comum aos ataques é que os Estados Unidos não são o policial do mundo; nós exaurimos nossos depósitos de dinheiro e sangue em duas longas guerras durante a última década, e já é tempo de outros tomarem conta de seus problemas.
Essa é uma posição bastante tentadora, mas que não é válida. A realidade é que nós apostamos nossa segurança militar e econômica em garantir que nenhum outro país – incluindo nossos aliados de longa data – chegue sequer perto de nossa capacidade militar. Estamos seguros em nossas fronteiras porque somos o único país que pode estacionar um navio em águas internacionais e fazer chover mísseis balísticos em endereços específicos em uma cidade estrangeira por semanas e semanas. E temos uma riqueza extraordinária porque nosso comércio externo e importação de petróleo são protegidos pela marinha mais poderosa do mundo. Eu acho quase ofensivo que qualquer pessoa neste país possa imaginar que seja realmente pacifista ao mesmo tempo em que aceita a proteção e os benefícios de todo esse armamento. Se você tem um adesivo que diz “No Blood For Oil”, é melhor que ele esteja em uma bicicleta.
Os Estados Unidos estão em uma posição especial no mundo, o que leva muita gente a abraçar um amplo excepcionalismo americano em política externa. Mesmo que essas pessoas estejam corretas, esses direitos extras invariavelmente vêm com obrigações extras. Precisamente porque reivindicamos tal posição privilegiada é que devemos preservar as leis internacionais que beneficiam a humanidade em geral e nossa nação em particular.
O Iraque permanece um peso na psique americana e contribui para a sensação de desgaste de guerra, mas a invasão de 2003 não foi uma intervenção para conter um conflito em andamento. Foi uma intromissão impopular nos assuntos de um país com problemas mas no geral em paz. Nesse sentido, foi uma intervenção fundamentalmente diferente de outras intervenções militares ocidentais.
A matança étnica na Bósnia foi encerrada por um bombardeio de duas semanas da OTAN, após bem mais de 100 mil civis morrerem. Nem um único soldado da OTAN foi morto. Depois de Kosovo veio Serra Leoa, onde uma guerra civil grotescamente brutal foi encerrada por centenas de tropas especiais britânicas em uma operação de duas semanas nas selvas nos arredores de Freetown. Elas perderam um homem. Em 2003, a guerra civil na Libéria foi facilmente acabada por um contingente de marines dos EUA que aportou após todos os lados – rebeldes, governo e civis – pedirem uma intervenção. Nem um tiro foi disparado.
As baixas civis onde houve ataques foram terrivelmente infelizes, mas constituíram uma pequena fração das baixas no contexto das guerras.
Por fim, há o problema – o problema pacifista – de não se ter uma resposta efetiva para o uso de gás nervoso por um governo contra os seus cidadãos. De um jeito ou de outro, toda pessoa tem a obrigação de defender a dignidade humana, por menores que possam ser os resultados de seus esforços. É esse conceito de dignidade que fez surgirem leis internacionais para a proteção dos direitos humanos, campanhas para reformas prisionais, boicotes contra o apartheid. Nesse contexto, não fazer nada quando diante do mal se torna o equivalente de apoiar ativamente o mal; moralmente falando, não existe meio termo.
A guerra civil na Síria já matou mais de 100 mil pessoas, essencialmente uma pessoa por vez, o que é uma clara abominação, mas não é definido como crime contra a humanidade. O uso massivo de substâncias nervosas contra civis, no entanto, é um crime contra a humanidade. Como tal, trata-se de um crime contra cada pessoa deste planeta.
O presidente Obama não está defendendo uma ação que dizime o regime de Assad e permita às forças rebeldes tomarem o poder. Ele não está dizendo que colocaremos nossas tropas em risco na Síria, ou que será uma empreitada longa e custosa, ou sequer que será particularmente efetiva. Ele está dizendo que não quer que vivamos em um mundo onde gás nervoso pode ser usado contra civis sem consequências de qualquer tipo. Se matar 1.400 pessoas com gás nervoso não é nada demais, então já podemos imaginar a morte de 14 mil. Quando nos acostumarmos com esse número, 14 milhões pode vir em seguida.
Em algum ponto, o pacifismo se torna parte da maquinaria da morte e o isolacionismo, uma forma de genocídio. Não é uma questão de como explicaremos isso para os sírios, mas de como explicaremos para nossos filhos.

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