domingo, 29 de setembro de 2013

Antifascismo e silêncio em Cernuda e Brossa

Antifascismo e silêncio em Cernuda e Brossa

A busca de uma linguagem que não existe, para tratar de afetos que não podem ser ditos em um cenário comum ausente, é sugerida em muito dos melhores poemas de Cernuda.
"Como eu, como todos", de Luis Cernuda
“Como eu, como todos”, de Luis Cernuda
"Escutem este silêncio", de Joan Brossa
“Escutem este silêncio”, de Joan Brossa
Recentemente, foram lançadas edições bilíngues de Luis Cernuda (Como eu, como todos) e Joan Brossa (Escutem este silêncio) pelo Lumme Editor. Trata-se de dois dos maiores poetas nascidos em Espanha no século passado, e os livros cobrem uma lacuna considerável na bibliografia da poesia hispânica publicada no Brasil.
Depois do chamado século de ouro (na verdade, maior do que cem anos) de Quevedo, Cervantes, Lope de Vega, Santa Tereza de Ávila, Góngora e tantos outros, o principal século da poesia espanhola foi o XX, não obstante as longas décadas de franquismo, que levaram diversos autores ao exílio.
Destacou-se, nessa era, a chamada geração de 1927, que contou com Jorge Guillén, Federico García Lorca, Rafael Alberti, Vicente Aleixandre, Dámaso Alonso e, entre outros grandes nomes, Luis Cernuda (1902-1963). Lorca foi assassinado em 1936 pelos franquistas, Aleixandre e Alonso permaneceram no país, Cernuda, Guillén e Alberti se exilaram, mas somente os dois últimos voltaram à Espanha, e Alberti apenas depois da democratização.
Cernuda, andaluz como Lorca, e como este autor também homem de esquerda, colaborou com o governo republicano, trabalhando nas missões pedagógicas que percorreram o país. Ele acabou por emigrar em 1938 em razão da Guerra Civil: “Escribir en España no es llorar, es morir” (“A Larra con unas violetas (1837-1937)”). No seu longo exílio, viveu principalmente nos Estados Unidos, Reino Unido e México (onde morreu), e trabalhou como professor de literatura e de espanhol.
Apenas a poesia completa de Luis Cernuda, sem contar sua prosa (que inclui ensaios, críticas e traduções), tem mais de oitocentas páginas na edição organizada por Derek Harris e Luis Maristany para a Ediciones Siruela. Esta vasta obra não está disponível em sua integralidade na língua portuguesa. Em Portugal, José Bento organizou e traduziu a admirável Antologia poética, edição bilíngue publicada em 1990 pela Cotovia. No Brasil, lamentavelmente, não havia nada de semelhante, até a publicação de Como eu, como todos (Lumme Editor), lembra o poeta Horácio Costa na introdução do livro, com traduções de Ronald Polito e Josep Domènech Ponsatí, apenas da poesia em verso do autor, que escreveu também poemas em prosa.
O poeta e historiador brasileiro Ronald Polito já nos havia legado várias traduções do catalão e do espanhol, algumas também em parceria com o autor catalão Domènech Ponsatí. No livro brasileiro, poucos poemas coincidem com os de José Bento, e é possível ter as duas antologias sem redundância. Em ambas estão, no entanto, certos clássicos da poesia espanhola como “Não dizia palavras” (p. 27):
Não dizia palavras,
Aproximava tão só um corpo interrogante,
Porque ignorava que o desejo é uma pergunta
Cuja resposta não existe,
Uma folha cujo galho não existe,
Um mundo cujo céu não existe.
Essa busca de uma linguagem que não existe, para tratar de afetos que não podem ser ditos em um cenário comum ausente, é sugerida em muito dos melhores poemas de Cernuda. Essa característica está presente em sua poesia lírica, escrita de homem para homem em uma época de grande repressão ao desejo homossexual. Lorca, de quem foi amigo, não ousou publicar seusSonetos do amor obscuro; já Cernuda lançou seu Los placeres prohibidos em 1931, de onde vem o poema antes citado.
“A sombra” (p. 87) parte dessa dificuldade de comunicação, que infunde sua poesia de amor:
Ao despertar de um sonho, procura
Sua juventude, como se fosse o corpo
Do camarada que dormisse
A seu lado e que ao amanhecer não encontra.
A poeta argentina Olga Orozco, em poema de homenagem a Cernuda, “La realidad y el deseo” (título sob o qual o poeta reuniu mais de uma vez sua obra), bem sintetizou esse traço da lírica amorosa do poeta: “Y en medio del amor/ entre uno y outro cuerpo la caída”.
Esta poesia, tantas vezes, cria figurações da ausência, que vão além das circunstâncias do exílio. Em “Noite de lua” (p. 59), trata-se de um dever ético da poesia fazer este confronto: “Definitivamente frente a frente/ O silêncio de um mundo que foi/ E a pura beleza tranquila do nada.”
O nada, aspiração dessa poesia, o prêmio que ela tem a oferecer: “Mas liberdade a sós/ Ganhaste, e te parece// Vitória desolada,/ Figuração da morte” (“O prisioneiro”, p. 83). Neste trecho de “A um poeta futuro” (p. 73), Cernuda aposta na fecundidade política dessa aspiração:
Porque apresento neste distanciamento humano
Quão meus haverão de ser os homens vindouros,
Como esta solidão será povoada um dia.
Embora sem mim, de camaradas puros a tua imagem.
Se renuncio à vida é para achá-la logo
Conforme meu desejo, em tua memória.
Esta antologia serve para cumprir tal aposta na posteridade: que o isolamento do poeta pudesse encontrar uma comunidade, embora póstuma. No entanto, o trabalho editorial não está exatamente à altura da excelência das traduções, apresentando um lapso no recuo das estrofes, inconstância do tamanho da fonte e uma página com troca de posição dos versos em espanhol e em português. Teria sido também desejável incluir ao menos uma cronologia da vida do autor.
Joan Brossa (1919-1998), de uma geração posterior à de Cernuda, é mais conhecido no Brasil, para o que contou sua amizade com João Cabral de Melo Neto, iniciado quando o poeta e diplomata brasileiro trabalhou no consulado do Brasil em Barcelona.
Ronald Polito, com Sérgio Alcides, já havia traduzido o notável Poemas civis; sozinho, oSumário Astral (em plaquete feita pelo próprio tradutor em 2003, e depois, em edição ampliada, pela Amauta, em 2006) e outra antologia, 99 poemas: Antologia cronológica, em 2009 pela Annablume Editora, coorganizada com Victor da Rosa. Resenhei este livro para o número 20 doSopro.
A tradução mais nova é Escutem este silêncio (São Paulo: Lumme Editor, 2011) que, desde o título (um poema de um só verso), destacam-no o tradutor e Victor da Rosa na apresentação, traz a marca da censura do fascismo espanhol. Como se sabe, a repressão era dirigida também contra a língua catalã, e escrever era uma das trincheiras da resistência cultural da Catalunha.
Os poemas são curtos, alguns em versos, outros visuais, como este, de uma só palavra: “fOLHEia”, com as dificuldades de tradução próprias desse gênero. A originalidade de Brossa na poesia visual, sua aspiração de tornar a poesia em coisa, é um dos fatores que o destacam na poesia europeia do século XX; como escreveu João Cabral de Melo Neto no poema “Fábula de Joan Brossa”, “acabou vendo, Joan Brossa/ que os verbos do catalão/ tinham coisas por detrás/ eram só palavras não.”
Esta obra costuma ultrapassar os limites das linguagens artísticas, com um grande interesse metalinguístico. Afinal, sua “Convicção” (p. 105) era esta:
Tenho a convicção de que os homens verdadeiramente
geniais estão além da literatura
e não formaram escritores.
A antologia apresenta alguns exemplos que trabalham com as fronteiras da poesia, como este anti-Magritte: o título é Guarda-chuva e o poema, de uma só linha, resume-se a “Guarda-chuva.” (p. 79). Talvez se trate de uma busca do que realmente significam as palavras, considerando a distorção da linguagem pelo fascismo, como no poema da página 29, intraduzível, em que as palavras lobo e pintinho revelam-se anagramas.
Brossa pede-nos silêncio em “Relâmpago”: “Xiu! É melhor a imagem/ que o comentário.” (p. 27). Esse apelo aos sentidos possuía um significado político. Era necessário ver mais do que o sugerido pelo poder. Em “Fotografia” (p. 49), temos duas visões da letra f, extremamente significativa nesse período: Franco e fascismo são duas das possibilidades de decodificação. A letra, na visão frontal, é larga e imponente. Ao lado, temos o f em perfil: uma simples linha vertical, insignificante.
É esse olhar lateral do poeta, atento para as fraquezas e para o ridículo do poder, que temos neste livro, revelando outra característica desta poética: o humor. O poema “Guerrilheiro linotipista” (p. 53), um ready-made, reproduz trecho de discurso de Ano-novo do ditador Franco, publicado por jornal de Barcelona no fim de 1962, que é interrompido pela exclamação “Burro!”. Este exemplo recorda a natureza da indústria cultural dos Estados Unidos em apenas cinco palavras:
QUEIJO
Armem a ratoeira
Mickey. (p. 99)
Um rato, de fato, e em mais de um sentido! Nesses poemas, boa parte do discurso deve ser criada pelo leitor, a que Brossa se dirige todo o tempo, às vezes explicitamente: todo um poema pode resumir-se a “Você virou a folha.” (p. 92). Nesse sentido, quando menos ele escrevesse, mais rica seria sua poética e, com esse chamado aos discursos do leitor, mais política:
PAÍS
Somos uma sociedade atrasada
que somente se põe em dia nos
símbolos externos.
Queria fazer poemas que não gerassem
linguagem mas que a suprimissem. (p. 107)
Escutem este silêncio, pois, vem a trazer mais algumas facetas da obra deste autor, cuja variedade formal é imensa (ainda há muito por traduzir), abrangendo da sextina ao poema-objeto. A bela edição, feita por Francisco dos Santos, trouxe o título escrito em letras pequenas e em cinza claro, com capa e contracapa brancas. Também nisso foi fiel a Brossa, autor que concebeu alguns dos usos mais políticos do silêncio na literatura.

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