domingo, 29 de setembro de 2013

Agostinho de Hipona e a inevitabilidade do fim


O romance trata, de uma perspectiva pessoal e fatalista, de que nada é eterno no plano físico, de que tudo se dissipa.
"O sermão sobre a queda de Roma", de Jérôme Ferrari
“O sermão sobre a queda de Roma”, de Jérôme Ferrari
Concluí a leitura, em único fôlego, de O sermão sobre a queda de Roma, de Jérôme Ferrari – livro da editora 34, de sua bonita coleção “Fábula”. O autor ganhou notoriedade após este romance conquistar o prêmio Goncourt de 2012, o que garantiu um aumento considerável das vendagens (pergunto-me se ganhar o Prêmio Jabuti surtiria o mesmo efeito, caso fôssemos um país de leitores) e um convite para nossa cada vez menos interessante FLIP. O livro me surpreendeu positivamente, e eu estava bem incrédulo – quando era adolescente, eu adorava um rap chamado “Don’t belive the hype”; hoje escuto mais Bach, mas continuo desconfiando desse tal “hype”.
Um prefácio/orelha assinado pelo Milton Hatoum, incensando a obra. Sacal. Na epígrafe, o autor cita Santo Agostinho. Não o Santo Agostinho a quem atribuem frases histriônicas ou uma conduta exageradamente fescenina antes de sua conversão, mas sim o Bispo de Hipona, o segundo maior doutor da Igreja Católica Romana, mais exatamente o seu sermão de número 81, proferido em dezembro de 410, o qual trata da queda de Roma sob o jugo do vândalo (em sentido próprio, por favor) Alarico. Não é algo que se lê todos os dias. Os demais capítulos têm por título citações deste e de mais três sermões sobre o mesmo assunto; o primeiro: “Talvez Roma não tenha perecido, se os romanos não tiverem perecido”.
E começa a narrativa, que se guia em dois planos: o primeiro trata da vida e das lembranças amargas do avô de um dos protagonistas (com um leve tempero naturalista muito bem empregado); o segundo, com o qual o primeiro acabará por fundir-se, conta a história de dois amigos de infância de origem corsa (embora Matthieu seja muito mais um parisiense) que vão para a Sorbonne estudar filosofia. Intelectuais e artistas indo para Paris viver sua própria “La Bohème” é um dos maiores – e piores – clichês culturais dos últimos dois séculos. Todavia, eles não estão lá para isso. Matthieu quer estudar Leibniz (e assim como o Dr. Panglos de Voltaire é Leibniz, Matthieu é como Cândido, em sua puerilidade) e Libero (um ser de origens rudes), Aristóteles e Santo Agostinho. Libero se desilude com a filosofia pois, segundo suas palavras, “fez fortuna em uma moeda que não mais é corrente”. Os amigos partem para arrendar um bar em sua pequena aldeia natal na Córsega, um dos lugares ainda realmente rústicos da Europa Ocidental.
Embora com um leitmotiv filosófico, não acredito que esta obra possa se enquadrada naquilo que se passou a considerar “romance filosófico”. É, sim, um romance que rompe com boa parte da literatura feita no século passado, inclusive e especialmente por gente que foi escrever em Paris. Há um clima meio soturno de “fim de festa” e, talvez por isso e/ou por ter sido lançado em meio a uma crise econômica, foi entendido como um romance “social”. Não o é. Ele trata, de uma perspectiva pessoal (e fatalista), de que nada é eterno no plano físico, que tudo que é concreto se dissipa, morre.
E tal ponto de vista não combina com a literatura feita por imitadores de Fitzgerald, Hemingway, Henry Miller, Anaïs Nin e Bukowski, que sem entender muito bem o porquê destes autores tratarem de sexo da maneira que trataram, ou da bebida – mais ainda em suas vidas que em suas obras – estão sempre dispostos a gritar “uhull, rock and roll!!”, citar The Strokes e passar vergonha na tentativa desesperada de conseguir algum espaço. Esta fórmula está, obviamente, esgotada. Jérôme Ferrari felizmente passa bem longe dela, embora haja, sim, sexo e bebida no enredo, mas não glorificada, ou “glamourizada”, pra usar um neologismo na moda. Ele não faz o que a Hilda Hist classificou de literatura “bandalheira” e satirizou na obra mais perturbadora escrita no Brasil: O caderno rosa de Lory Lambi. Ele utiliza a figura de Santo Agostinho, aquele que “knew temptation. He loved women, wine and song. And all the special pleasures. Of doing something wrong” para refletir sobre o fim.
Acabei por refletir sobre o fim de certo modo de se fazer literatura, certo espírito. E ao mesmo tempo me assustei, pois para o Bispo de Hipona o mundo é perecível, mas o espírito, não. Então a saída (para a literatura ou para a vida) estaria na fé? Espero que não. Espero mais. Ou, pelo menos, prefiro a escuridão e o silêncio.

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