domingo, 29 de setembro de 2013

Máscaras diante do espelho


"Fingidores", de Rodrigo Rosp, propõe ao leitor um jogo de dissimulações, onde se deixar enganar é requisito básico para o divertimento.
"Fingidores", de Rodrigo Rosp
“Fingidores”, de Rodrigo Rosp
Em 1974, sete anos antes de ser laureado com o Nobel de Literatura e já consagrado autor do cânone teórico Massa e poder, o búlgaro Elias Canneti lançou Der Ohrenzeuge, título inventivamente transposto do alemão, pelo renomado tradutor Hebert Caro, para O Todo-ouvidos. Sui generis em sua conformação linguística, esse híbrido de ficção, ensaio e tipologia social reúne cinquenta personagens (ou descrições de personagens) fundamentados em associações estranhas de palavras e termos inventados, cujo acabamento fica a cargo de uma argamassa de galhofa, escárnio e lirismo. A ideia, tal como a natureza multifacetada desses indivíduos, parte de um exercício complexo de provocação e desgosto por uma literatura que, como queixa-se Canetti no prefácio, “gira em torno de si e empenha-se em demonstrar sempre de novo uma esterilidade dificilmente adquirida”; condição que alguns escritores contemporâneos, com seus meta-romances, só fizeram questão de aplainar. Clarevidência à parte, O Todo-ouvidos é uma compilação onde as histórias são os personagens, gravitando em torno de suas próprias existências e desapercebidos de anteparos estruturais, que refletem no leitor simpatia para se encontrar jocosamente num daqueles tipos ou, de maneira sardônica, igualar seus traços aos de algum desafeto. Tome-se o exemplo do caractere que dá título ao livro, cujas “orelhas são mais fieis do que qualquer gravador”, de modo que nada se apaga nelas, por mais maldoso que possa ser, fixando na memória até aquilo que não entende, e transmitindo-o sem a menor alteração. Você, por acaso, não conheceria alguém assim ?
Caio, protagonista de Fingidores, de Rodrigo Rosp, por exemplo, seria uma combinação d’O Goza-males (em tudo que lhe contam, fareja o desenlace doloroso) com O Caça-perfídias (tem uma propensão especial para sistemas, pois tudo nesse mundo obedece a algum sistema; nada é casual). Nota-se que, embora superlativos em suas características, seriam necessários dois dos caracteres criados por Canetti para tentar infiltrar a complexidade que doma as ações desse professor universitário às voltas com autoindagações provocadas por temas como fidelidade, amor, sexo, literatura e finitude. Caio é cético, tanatofóbico, hedonista, irredutível, invejoso, pessimista e sonso, ou, em convenientes ângulos, finge apenas que é, vale-se de máscaras à tonalidade da situação. Cabe aqui mencionar que o romance, que não é um romance, é uma comédia, que não é uma comédia. O livro dissimula na mesma medida que seu protagonista, evidenciando o grande mérito de Rosp: convencer o leitor a aceitar ser enganado. Funciona como uma sobreposição de camadas, onde a arborização de frases de efeito, os alívios cômicos e o nonsense escondem uma exposição voluntária de medos e defeitos coletivos. Esforçando-se em ser desprezível ao extremo, Caio leva o leitor a acreditar que está num nível superior, quando não está. Prova disso é o esforço de perspicácia indispensável para se enxergar além da superfície elementar.
O trato com o leitor estabelecido por Rosp, desse modo, recorre à dualidade instada por Cortázar em “Instruções para John Howell”, que integra o volume Todos os fogos o fogo, remontando cenas em que o cômico e o absurdo tomam de assalto um espectador, Rice, subitamente levado à condição de ator de uma peça para o qual não está preparado. Pegando emprestado a estrutura do roteiro teatral, Fingidores é dividido em nove cenas, intituladas de forma a sugerir a tônica dos diálogos de Caio com um ou mais personagens, cujas últimas frases são, em sua maioria, reservadas para descrever a reação de uma plateia ao fim de cada ato. Cria-se, portanto, um segundo olhar, que se acomoda sob a percepção daquele que lê, causando impressões que possivelmente não existiriam, caso ao leitor fosse destinada a condição de único espectador. Isso fica evidente na Cena Oito, em que Caio conversa com Marina, que acabou de conhecer, e, mesmo assim, faz as vezes de fiel conselheiro. Durante o ato, entra Orteman, amigo de Caio, que intervém inesperadamente, embora diga que estava ali desde que a conversa começou. A plateia fictícia pode validar a afirmação de Orteman; o leitor, não. Nada é infalível. Rosp dissimula intenções e traçamentos, e, com isso, constrói personagens bem delineados e tangíveis. Caio usa, a toda hora, a ironia para camuflar seus defeitos e inseguranças, quando não passam de verdades revestidas com colorações de gosto suspeito.
A questão é que o humor é um sintoma empático, que, replicado de maneira ostensiva, acaba por entregar seu ponto de origem. O ponto de origem de Rosp é o que poderíamos chamar de humor judaico, cujas referências (ou pistas) pululam no livro. Há um tremenda influência por um tipo específico de comédia escrita e encenada por nomes como Larry David, Mel Brooks e, sobretudo, Woody Allen. É praticamente impossível não acompanhar as tiradas sarcásticas e as observações egocêntricas de Caio sem imaginá-lo com as feições de Alvy Singer, personagem de Allen em Noivo neurótico, noiva nervosa. É Alvy que atua nas contagiantes Cena Quatro, em que discute com Lucinha, sua então esposa, a fragilidade da ideia de traição, e na Cena Cinco, onde compartilha com Dr. Rosenir, seu dentista, impressões sobre a funcionalidade do casamento. Rosp prepara bem os “escadas”, termo usado no teatro de comédia para designar personagens secundários que entregam a piada para o protagonista se consagrar. Quando Dr. Rosenir adverte: “Você está entrando num caminho que precisa de atenção, pois pode levá-lo para um buraco negro”, Caio emenda: “Isso é uma metáfora?”. Daí se tem a medida de que, emFingidores, não há o riso mole; o engraçado está no que facilmente não tem graça, na subversão do riso, no tão falado politicamente incorreto. Não é uma comédia por definição, pois depende de duplos sentidos e sentidos peculiares.
Caio nunca tergiversa, seus comentários e argumentos são incômodos e encontram brechas para a graça e o deboche em circunstâncias incomuns, ao exemplo dos preparativos para o funeral do pai, das suspeitas de um duplo homicídio e de seus desejos por mulheres bem jovens, na transição entre a maioridade e a adolescência. A literatura contemporânea e seus representantes também não escapam, ganhando contornos cítricos no encontro entre o protagonista e Mércio Carrão, um escritor que Caio ojeriza por fazer sucesso com livros rasos, para o qual aponta sua metralhadora de escárnio e acerta muitos alvos conhecidos por aí.
Para mim, a imagem do século 21 é um insuportável escritor de sucesso, cuja literatura beira a autoajuda, com um ego na proporção da sua conta bancária, fazendo uma palestra para um auditório lotado de idiotas, todos eles mergulhados em profunda admiração, pensando que as ideias do sujeito são inspiradoras, e mentalizando para si, cada um deles, algo do tipo “meu sucesso depende de mim mesmo”….
O curso das falas parece ser marcado por placas que alertam para o alto grau de causticidade, todas ignoradas, causando um riso interditado que muito aproxima certas passagens da literatura beckettiana, em especial de obras como Esperando Godot e Primeiro Amor, tanto no olhar distópico sobre a vida quanto na infiltração inesperada do absurdo no corriqueiro. Por sinal, são os elementos surreais que fazem com que a Cena Um e a Cena Nove, ao contrário das demais, tenham um encaixe perfeito, sobre o qual não cabe falar para não estragar a divertida surpresa, caindo na armadilha dos spoilers. Vale, sim, mencionar mais um belo projeto gráfico da Não Editora, estampando a capa e as páginas que marcam o início dos atos com fotos de uma plateia sincronizando variados gestos e expressões, desde o espanto ao sono profundo. Rosp, que também é editor do selo supracitado e da Dublinense, reuniu um grupo de escritores gaúchos de reconhecido talento que, fingindo-se de atores, fazem bem continuar apostando na literatura.

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