terça-feira, 23 de julho de 2013

Terapia genética usa vírus do HIV para curar doenças raras


Duas doenças genéticas foram curadas a partir de um tratamento que 

utiliza versões alteradas do HIV para corrigir o DNA dos pacientes

Guilherme Rosa
HIV
O HIV é capaz de alterar o DNA das células humanas para se reproduzir. Os pesquisadores utilizaram essa habilidade para curar doenças (Thinkstock)
O HIV é responsável pela morte de 1,7 milhão de pessoas por ano em todo o mundo. 
O vírus é especialmente perigoso pois se reproduz ao atacar células do sistema 
imunológico humano, alterando seu DNA e as obrigando a fabricar cópias de si mesmas —
 o que deixa o corpo vulnerável a uma série de doenças. Pesquisadores italianos 
anunciaram, na quinta-feira, o desenvolvimento de uma nova técnica, que utiliza
 essa habilidade do HIV para, na verdade, curar pacientes. Em duas pesquisas
 publicadas na revista Science, eles afirmam que utilizaram versões alteradas do
 vírus para corrigir o genoma de seis crianças e livrá-las de doenças que, até
 então, não teriam tratamento.
CONHEÇA AS PESQUISAS

Títulos originais: Lentiviral Hematopoietic Stem Cell Gene Therapy in Patients with Wiskott-Aldrich Syndrome Lentiviral Hematopoietic Stem Cell Gene Therapy Benefits Metachromatic Leukodystrophy 

Onde foram divulgadas: periódico Science

Quem fez: Alessandro Aiuti; entre outros e Alessandra Biffi, entre outros

Instituição: Instituto San Raffaele Telethon para Terapia Genética, na Itália, entre outras

Dados de amostragem: Dezesseis crianças, seis que sofriam da Síndrome de Wiskott-Aldrich e dez que sofriam de Leucodistrofia Metacromática, doenças genéticas consideradas raras.

Resultados: As crianças foram submetidas a terapia genética que usava um lentivirus como vetor para alterar seu DNA. As pesquisas relatam os resultados dos primeiros seis pacientes que passaram pelo procedimento. Três anos depois, ou eles estavam curados ou as doenças tinham parado de progredir.
As crianças carregavam duas 
doenças genéticas — herdadas 
dos pais e carregadas no DNA 
por toda a vida — conhecidas 
como Síndrome de Wiskott-Aldriche
 Leucodistrofia Metacromática. 
Enquanto na primeira o corpo é
 incapaz de produzir uma proteína 
necessária para o correto funcionamento
 do sistema imunológico, a segunda 
afeta o desenvolvimento do sistema 
nervoso — e ambas podem levar à morte.
 Como o defeito está nos genes, essas 
doenças eram consideradas, até pouco 
tempo, incuráveis.
Nas últimas décadas, no entanto, 
os pesquisadores têm desenvolvido um método capaz de corrigir diretamente genes
 defeituosos: a terapia genética. Para isso, retiram células-tronco da medula óssea
 dos pacientes. Em um laboratório, os cientistas utilizam um vírus para entrar na célula 
e alterar seu DNA, inserindo o gene desejado. Os pacientes, então, recebem de volta 
as células-tronco, e passam a produzir a proteína necessária. Como o vírus é alterado 
geneticamente, ele não é capaz de atacar o organismo.
As terapias genéticas costumam funcionar muito bem em testes com animais e em
 laboratório, mas apresentam problemas quando são transferidas para a clínica. 
Algumas vezes, o gene terapêutico é produzido em quantidades muito pequenas
 ou por um período muito curto, abreviando o tratamento. Outras vezes, a terapia 
acaba por levar ao desenvolvimento de câncer. Para tentar contornar esses
 problemas, os pesquisadores italianos estudaram a utilização de um tipo especial
 de vírus: os lentivirus, que agem lentamente e são capazes de deixar, de modo 
permanente, seu DNA na célula hospedeira. O HIV é, justamente, um dos lentivirus
 mais conhecidos e estudados.
Os cientistas começaram os tratamentos com o vírus do HIV alterado em 2010. Os
 resultados publicados nesta quinta-feira levam em conta apenas os primeiros seis pacientes — três de cada doença — que receberam a terapia. “Três anos depois do começo das pesquisas clínicas, os resultados obtidos nos primeiros pacientes são muito encorajadores: a terapia não é apenas segura, mas também efetiva e capaz de mudar a história clínica dessas doenças sérias”, diz Luigi Naldini, pesquisador do Instituto San Raffaele Telethon para Terapia Genética (TIGET, na sigla em inglês), na Itália, envolvido nos dois estudos.

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Sistema imunológico — As 
crianças com a Síndrome de 
Wiskott-Aldrich herdam uma 
mutação genética no gene que codifica a proteína WASP — essencial para o
 funcionamento correto do sistema imunológico. Assim, elas se tornam mais 
vulneráveis ao desenvolvimento de infecções, doenças autoimunes e câncer, 
além de ter um defeito nas plaquetas que causa sangramento frequente.
A terapia mais utilizada para tratar essa condição costuma ser o transplante de medula 
óssea de um doador compatível. Em alguns casos — quando as células doadas são
 muito compatíveis — a cura é atingida. No entanto, quem não conseguia encontrar 
um doador tinha de carregar a condição por toda a vida.
Na nova técnica, os pesquisadores retiraram as células-tronco da medula óssea dos próprios pacientes — o que elimina a possibilidade de rejeição. No laboratório, eles usam o vetor criado a partir do HIV para inserir o gene WASP normal em seu interior. Quando são reinseridas no corpo, as novas células são capazes de produzir a proteína correta, restaurando o sistema imunológico do paciente.
Segundo os cientistas, entre 20 e 30 meses após o início do tratamento, os sintomas da doença sumiram ou diminuíram consideravelmente. “Nesses pacientes, as células-tronco corrigidas substituíram as células doentes, criando um sistema imune funcional, com plaquetas normais. Graças à terapia genética, essas crianças não convivem mais com sangramentos severos e infecções. Agora elas podem correr, brincar e ir à escola”, diz Alessandro Aiuti, pesquisador do TIGET responsável pelo estudo.
Agindo no cérebro – Já a Leucodistrofia Metacromática é causada por mutações no gene ARSA, importante para o sistema nervoso. Os bebês com essa doença são aparentemente saudáveis no nascimento, mas em algum ponto de seu desenvolvimento eles começam a perder gradualmente as habilidades cognitivas e motoras, sem nenhum tratamento capaz de frear o processo neurodegenerativo — que acabará por matar a criança.
A partir de uma técnica parecida, os pesquisadores italianos inseriram genes ARSA funcionais nas células-tronco desses pacientes e as devolveram ao corpo. Ali, elas começaram a produzir as enzimas funcionais e a se reproduzir, atingindo o cérebro das crianças, o local mais afetado pela doença.
Dois anos após o início dos tratamentos, os pesquisadores afirmam que a terapia genética foi capaz de frear a progressão da doença. “Nesse caso, o mecanismo terapêutico foi mais sofisticado: as células-tronco corrigidas atingiram o cérebro por meio do sangue e liberaram a proteína correta, que é acumulada pelas células nervosas sobreviventes. Nós tivemos que criar células capazes de produzir uma quantidade de proteínas muito maior que o normal, para neutralizar o processo neurodegenerativo em andamento”, diz Alessandra Biffi, pesquisadora do TIGET.
 

Opinião do especialista

Armando Morais Ventura
Professor do Departamento de Microbiologia do Instituto de Ciências Biomédicas da USP

 “Grande parte das pesquisas sobre terapia genética utiliza adenovírus como vetores, pois eles são capazes de infectar com grande eficiência um conjunto maior de tecidos. O problema é que eles fazem a entrega do gene terapêutico de um modo que ele fica ativo apenas durante um curto período de tempo. Já os lentivirus tem a capacidade de fazer com que esses genes sejam inseridos de forma estável nas células. A importância dessa pesquisa é que os efeitos podem ser duradouros.
“Os pesquisadores têm estudado modos de aperfeiçoar os lentivirus usados, de modo que eles não carreguem os genes responsáveis por causar as doenças, como a AIDS. Eles utilizam o arcabouço genético do vírus para construir os vetores, inserem os genes que devem administrados, mas tiram as propriedades patogênicas.” 

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