domingo, 21 de julho de 2013

Fedspeak no discurso, heroína na veia



061413moneybeatfed_512x288.jpgTodos os ouvidos estão voltados aos discursos de membros do Federal Reserve.  Há algum tempo começou o jogo da linguagem cifrada, o chamado 'fedspeak', que sugere que em algum momento dos próximos trimestres pode haver uma diminuição das compras mensais de US$85 bilhões de títulos de posse dos bancos, o programa conhecido comoquantitative easing, que na prática significa criação de moeda adicional.
O primeiro (e velado, como de costume) anúncio do Fed ocorreu há algumas semanas (veja aqui), e provocou um colapso no preço do ouro.  O Nikkei, bolsa que mais subiu, já vem sofrendo uma correção substancial.  O que isso significa para os ativos financeiros e para o Brasil?
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Índice Nikkei (últimos 12 meses) – Fonte: Bloomberg
O preço mais importante do planeta é o da taxa de juros em dólares, especialmente a taxa de curto prazo, de três meses a um ano.  Este preço explica riquezas e quebras, bolhas e crises, consumo desenfreado ou austeridade forçada.  O nome mais conhecido desta taxa é LIBOR.  Os dólares transacionados a esta taxa são comumente chamados pelo nome de eurodollars, e são o componente principal da temida "liquidez internacional".
O que são eurodollars? São dólares depositados em bancos fora dos Estados Unidos[1].  Mas além de estarem domiciliados no Reino Unido e outros países europeus (daí a origem do nome), também estão em jurisdições tais como os denominados 'paraísos fiscais', e outros como Hong Kong, Panamá, Japão, Luxemburgo e Singapura.
Estes dólares um dia nasceram nos Estados Unidos, no Federal Reserve, mas saíram de lá e permaneceram fora de lá, servindo inúmeros propósitos como por exemplo para serem usados: a) na compra de bens ou serviços estrangeiros, b) por turistas americanos, c) como poupança segura para habitantes ou empresas de países política ou economicamente inseguros, d) por habitantes ou empresas de países que têm o dólar como moeda, etc.
Os juros pagos a estes depositantes são também acumulados fora dos EUA.  Os Estados Unidos começaram a ter déficits em conta-corrente no final dos anos 1960, (o que significa que passaram a enviar papéis pintados para o resto de mundo, em troca de produtos, em uma grande simbiose onde um dos lados, os EUA, parecem fazer umnegócio mais interessante do que a outra parte), em uma tendência crescente até os dias de hoje.
Como consequência, aquilo que um dia foram alguns poucos bilhões de dólares criados pelo Fed – e que foram expatriados como eurodollars –, hoje tornaram-se uma gigantesca montanha de moeda e crédito, possivelmente entre US$80 e 150 TRILHÕES de dólares, mais do que o PIB do mundo todo.  Junto com o chamado shadow banking, constitui o que chamo de 'matéria escura' do universo financeiro, representando bem mais que metade da massa monetária mundial.  O multiplicador bancário também teve seu papel neste aumento astronômico: afinal, um dólar que chega ao sistema bancário de Singapura, por exemplo, pode ser multiplicado por 10x ou mais.
Algo mudou radicalmente há cinco anos.  Desde 2008 vivemos a inédita e espantosa era dos juros zero em dólares.   Um amigo com quem trabalhei nos anos 1990 no Banco Garantia diz desde o início da década de 2000 que "a quantidade de dinheiro do mundo é capaz de comprar o mundo várias vezes" (ele também diz que "em algum momento um milhão de dólares voltarão a valer um milhão de dólares").
A cada dia que passa meu amigo parece ter mais razão.  A quantidade de moeda e crédito do mundo há tempos cresce muito além da produção de bens e serviços, e uma fundamental evidência é de que os juros em dólares estão em zero há cinco anos (a questão de não haver inflação tem relação com o ciclo de Kondratiev – veja aqui).
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Yield do T-Bill de 3 meses (2006 a 2013) – Fonte: Bloomberg
O que isto significa? O capitalismo está sendo desvirtuado pela política expansionista do Fed e dos outros bancos centrais de países-chave.  Em uma tentativa nobre de "evitar uma nova Grande Depressão" e de "salvar o sistema financeiro", os bancos centrais gerenciam o que denomino de heroína financeira, que constitui a mais destrutiva e sorrateira política monetária de todos os tempos.
Nas grandes guerras, soldados eram tratados com morfina e heroína.  Enquanto estavam sob o efeito do entorpecente, não sentiam dor.  Mas a realidade voltaria à tona, quando o tratamento era interrompido.
De maneira similar, o risco está sendo mal apreçado hoje.  O capital não está sendo direcionado para os fins mais úteis para a sociedade.  Um exemplo recente e claro é a onda de empresas que estão captando recursos a 1% ao ano para aumentar o pagamento de dividendos, uma artimanha que nada tem a ver com criação de valor.  Há também bolhas em andamento, por incrível que pareça, em ações e imóveis, o que surpreende, pois foram bolhas similares que catapultaram a crise.
Os manda-chuva do Fed não se incomodam com as altas de preços: bem ao contrário, acreditam que a alta de preços de ativos gera consumo e faz a economia girar.  Mas isto é similar a crer que a morfina pode fazer o soldado que perdeu uma perna voltar a andar e combater.
Alguns membros do Fed sabem que esta política expansionista não acabará bem, e à medida que a economia americana dá sinais de modesta melhora, sua visão ganha corpo junto aos demais membros.  A dança dofedspeakainda que nos seus primeiros e discretos passos, já tem causado estragos.
Os juros dos Treasuries americanos de 10 anos, que estavam a 1,60% ao ano, estão agora acima de 2,10%.  Quando na semana passada cruzaram os 2%, que equivale ao dividend yield do S&P,  causaram um estrago no mercado acionário mundial, com quedas generalizadas.
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Yield do Treasury  Bond de 10 anos (últimos 12 meses) – Fonte: Bloomberg
 O Fed não está em uma posição fácil, pois o mercado e a economia estão extra-sensíveis à retirada da heroína intravenosa, e entram em síndrome de abstinência ato contínuo.  Não há dúvida que o risco, que estava dormente com o efeito entorpecente, voltará com toda a fúria quando a dormência passar.  Aparentemente não estamos distantes da hora da verdade.
O que ocorrerá com o Brasil?  Infelizmente as políticas econômicas brasileiras já não estão mais consistentes como em 2007, e a China, que já foi uma âncora sólida e fundamental, já não será capaz de atenuar substancialmente as consequências dos erros do governo brasileiro. Caso haja uma crise grave no mercado internacional, desta vez o Brasil sofrerá bastante.
Quem quer vencer no mercado financeiro não deve só aprender inglês ou mandarim, mas também fedspeak.

Artigo originalmente publicado em O Ponto Base.

[1] O Japão foi o inventor da política de ZIRP (zero interest rate policy) e do quantitative easing muitos anos antes, mas o yen não tem o mesmo papel no sistema financeiro internacional que o dólar.
Helio Beltrão é o presidente do Instituto Mises Brasil.

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