sábado, 21 de setembro de 2013

Médico brasileiro comenta 'gritaria' da mídia sobre médicos cubanos


“Acho estranho o governo ter falado em atrair médicos cubanos, 

portugueses e espanhóis, e a gritaria ser somente em relação aos 

médicos cubanos. Será que somente os médicos cubanos precisam

 revalidar diploma?”

Carta do médico Pedro Saraiva, enviada para o jornalista Luis Nassif e
 inicialmente reproduzida em seublog esclarece diversos pontos sobre a 
vinda dos médicos cubanos ao Brasil.
Por Pedro Saraiva
Olá Nassif, sou médico e gostaria de opinar sobre a gritaria em relação à vinda 
dos médicos cubanos ao Brasil
Bom, como opinião inteligente se constrói com o contraditório, vou tentar 
levantar aqui algumasinformações sobre a vinda de médicos cubanos para 
regiões pobres do Brasil que ainda não vi serem abordadas.
médicos cubanos haiti brasil
Médicos cubanos no Haiti atendem mais de 15 milhões de miseráveis (Foto: Divulgação)
- O principal motivo de reclamação dos médicos, da imprensa e do CFM seria uma suposta validação automática dos diplomas destes médicos cubanos, coisa que em momento algum foi afirmado por qualquer membro do governo. Pelo contrário, o próprio ministro da saúde, Alexandre Padilha, já disse que concorda que acontratação de médicos estrangeiros deve seguir critérios de qualidade e responsabilidade profissional. Portanto, o governo não anunciou que trará médicos cubanos indiscriminadamente para o país. Isto é uma interpretação desonesta.
- Acho estranho o governo ter falado em atrair médicos cubanos, portugueses e espanhóis, e a gritaria ser somente em relação aos médicos 
cubanos. Será que somente os médicos cubanos precisam revalidar diploma?
 Sou médico e vivo em Portugal, posso garantir que nos últimos anos conheci 
médicos portugueses e espanhóis que tinham nível técnico de sofrível para terrível.
 E olha que segundo a OMS, Espanha e Portugal têm, respectivamente, o 6º e o
 11º melhoressistemas de saúde do mundo (não tarda a Troika dar um jeito nesse
 excesso de qualidade). Profissional ruim há em todos os lugares e profissões. Do 
jeito que o discurso está focado nos médicos de Cuba, parece que o problema
 real não é bem a revalidação do diploma, mas sim puro preconceito.
- Portugal já importa médicos cubanos desde 2009. Aqui também há dificuldade 
de convencer os médicos a ir trabalhar em regiões mais longínquos, afastadas 
dos grandes centros. Os cubanos vieram estimulados pelo governo, fizeram 
prova e foram aprovados em grande maioria (mais à frente vou dar maiores detalhes 
deste fato). A população aprovou a vinda dos cubanos, e em 2012, sob pressão 
popular, o governo português renovou a parceria, com amplo apoio dos pacientes. 
Portanto, um dos países com melhores resultados na área de saúde do mundo
 importa médicos cubanos e a população aprova o seu trabalho.
 Acho que é ponto pacífico para todos que médicos estrangeiro tenham que ser
 submetidos a provas aí no Brasil. Não faz sentido importar profissionais de baixa
 qualidade. Como já disse, o próprio ministro da saúde diz concordar com isso. Eu 
mesmo fui submetido a 5 provas aqui em Portugal para poder validar meu título de 
especialista. As minhas provas foram voltadas a testar meus conhecimentos na área 
em que iria atuar, que no caso é Nefrologia. Os cubanos que vieram trabalhar em 
Medicina de família também foram submetidos a provas, para que o governo tivesse 
o mínimo de controle sobre a sua qualidade.
Pois bem, na última leva, 60 médicos cubanos prestaram exame e 44 foram aprovados
 (73,3%). Fui procurar dados sobre o Revalida, exame brasileiro para médicos 
estrangeiros e descobri que no ano de 2012, de 182 médicos cubanos inscritos,
 apenas 20 foram aprovados (10,9%). Há algo de estranho em tamanha dissociação. 
Será que estamos avaliando corretamente os médicos estrangeiros?
Seria bem interessante que nossos médicos se submetessem a este exame ao 
final do curso de medicina. Não seria justo que os médicos brasileiros também só 
fossem autorizados a exercer medicina se passassem no Valida? Se a preocupação
 é com a qualidade do profissional que vai ser lançado no mercado de trabalho, o 
que importa se ele foi formado no Brasil, em Cuba ou China? O CFM se diz tão
 preocupado com a qualidade do médico cubano, mas não faz nada contra o grande
 negócio que se tornaram as faculdades caça-níqueis de Medicina. No Brasil existe
 um exército de médicos de qualidade pavorosa. Gente que não sabe a diferença
 entre esôfago e traqueia, como eu já pude bem atestar. Porque tanto temor em
 relação à qualidade dos estrangeiros e tanta complacência com os brasileiros?

REVALIDA

- Em relação este exame de validação do diploma para estrangeiros abro um 
parêntesis para contar uma situação que presenciei quando ainda era acadêmico 
de medicina, lá no Hospital do Fundão da UFRJ.
Um rapaz, se não me engano brasileiro, tinha feito seu curso de medicina na 
Bolívia e havia retornado ao país para exercer sua profissão. Como era de se
 esperar, o rapaz foi submetido a um exame, que eu acredito ser o Revalida 
(na época realmente não procurei me informar). O fato é que a prova prática 
foi na enfermaria que eu estava estagiando e por isso pude acompanhar parte
 da avaliação. Dois fatos me chamaram a atenção, o primeiro é a grande má
 vontade dos componentes da banca com o candidato. Não tenho dúvidas que 
ele já havia sido prejulgado antes da prova ter sido iniciada. Outro fato foi o tipo 
de perguntas que fizeram. Lembro bem que as perguntas feitas para o rapaz eram
 bem mais difíceis que aquelas que nos faziam nas nossas provam. Lembro deles
 terem pedidos informações sobre detalhes anatômicos do pescoço que só interessam 
a cirurgiões de cabeça e pescoço. O sujeito que vai ser médico de família, não tem 
que saber todos os nervos e vasos que passam ao lado da laringe e da tireoide. O 
cara tem que saber tratar diarreia, verminose, hipertensão, diabetes e colesterol alto. 
Soube dias depois que o rapaz tinha sido reprovado.
Não sei se todas as provas do Revalida são assim, pois só assisti a uma, e mesmo 
assim parcialmente. Mas é muito estranho os médicos cubanos terem alta taxa de 
aprovação em Portugal e pouquíssimos passarem no Brasil. Outro número que 
chama a atenção é o fato de mais de 10% dos médicos em atividade em Portugal
 serem estrangeiros. Na Inglaterra são 40%. No Brasil esse número é menor que
 1%. E vou logo avisando, meu salário aqui não é maior do que dos meus colegas 
que ficaram no Brasil.
- Até agora não vi nem o CFM nem a imprensa irem lá nas áreas mais carentes do
 Brasil perguntar o que a população sem acesso à saúde acha de virem 6000 
médicos cubanos para atendê-los. Será que é melhor ficar sem médico do que
 ter médicos cubanos? É o óbvio ululante que o ideal seria criar condições
 para que médicos brasileiros se sentissem estimulados a ir trabalhar no 
interior. Mas em um país das dimensões do Brasil e com a responsabilidade 
de tocar a medicina básica pulverizada nas mãos de centenas de prefeitos, isso 
não vai ocorrer de uma hora para outra. Na verdade, o governo até lançou nos 
últimos anos o Programa de Valorização do Profissional da Atenção Básica 
(Provab), que oferece salários mensais de R$ 8 mil e pontos na progressão de 
carreira para os médicos que vão para as periferias. O problema é que até hoje 
só 4 mil médicos aceitaram participar do programa. Não é só salário, faltam 
condições de trabalho. O que fazemos então? vamos pedir para os mais pobres
 aguentar mais alguns anos até alguém conseguir transformar o SUS naquilo que
 todos desejam? Vira lá para a criança com diarreia ou para a mãe grávida sem 
pré-natal e diz para ela segurar as pontas sem médico, porque os médicos do sul 
e sudeste do Brasil, que não querem ir para o interior, acham que essa história de
 trazer médico cubano vai desvalorizar a medicina do Brasil.
- É bom lembrar que Cuba exporta médicos para mais de 70 países. Os cubanos 
estão acostumados e aceitam trabalhar em condições muito inferiores. Aliás, é nisso
 que eles são bons. Eles fazem medicina preventiva em massa, que é muito mais
 barata, e com grandes resultados. Durante o terremoto do Haiti, quem evitou uma 
catástrofe ainda maior foram os médicos cubanos. Em poucas semanas os médicos 
dos países ricos deram no pé e deixaram centenas de milhares de pessoas sem auxílio
 médico. Se não fosse Cuba e seus médicos, haveria uma tragédia humanitária de 
proporções dantescas. Até o New England Journal of Medicine, a revista mais
 respeitada de medicina do mundo, fez há poucos meses um artigo sobre a medicina 
em Cuba. O destaque vai exatamente para a capacidade do país em fazer medicina 
de qualidade com recursos baixíssimos (http://www.nejm.org/doi/full/10.1056/NEJMp1215226).
- Com muito menos recursos, a medicina de Cuba dá um banho em resultados
 na medicina brasileira. É no mínimo uma grande arrogância achar que os médicos 
cubanos não estão preparados para praticar medicina básica aqui no Brasil. O CFM 
diz que a medicina de Cuba é de má qualidade, mas não explica por que a saúde dos
 cubanos, como muito menos recursos tecnológicos e com uma suposta inferioridade
 qualitativa, tem índices de saúde infinitamente melhores que a do Brasil e semelhantes
 à avançada medicina americana (dados da OMS).
- Agora, ninguém tem que ir cobrar do médico cubano que ele saiba fazer cirurgia de
 válvula cardíaca ou que seja mestre em dar laudos de ressonância magnética. Eles 
não vêm para cá para trabalhar em medicina nuclear ou para fazer hemodiálises nos 
pacientes. Medicina altamente tecnológica e ultra especializada não diminui 
mortalidade infantil, não diminui mortalidade materna, não previne verminose, não 
conscientiza a população em relação a cuidados de saúde, não trata diarreia de 
criança, não aumenta cobertura vacinal, nem atua na área de prevenção. É isso que
 parece não entrar na cabeça de médicos que são formados para serem 
superespecialistas, de forma a suprir a necessidade uma medicina privada e 
altamente tecnológica. Atenção! O governo que trazer médicos para tratar 
diarreia e desidratação! Não é preciso grande estrutura para fazer o mínimo.
 Essa população mais pobre não tem o mínimo!
Que venham os médicos cubanos, que eles façam o Revalida, mas que eles sejam avaliados em relação àquilo que se espera deles. Se os médicos ricos do sul maravilha não querem ir para o interior, que continuem lutando por melhores condições de trabalho, que cobrem dos governos em todas as esferas, não só da Federal, melhores condições de carreia, mas que ao menos se sensibilizem com aqueles que não podem esperar anos pela mudança do sistema, e aceitem de bom grado os colegas estrangeiros que se dispõe a vir aqui salvar vidas.
Infelizmente até a classe médica aderiu ao ativismo de Facebook. O cara lê a Veja ou O Globo, se revolta com o governo, vai no Facebook, repete meia dúzia de clichês ou frases feitas e sente que já exerceu sua cidadania. Enquanto isso, a população carente, que nem sabe o que é Facebook morre à mingua, sem atendimento médico brasileiro ou cubano.

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