quarta-feira, 20 de fevereiro de 2013


Reportagens
Oriente Médio

Deus, pra que serve a literatura?



Para muitas pessoas, a única maneira de conhecer outros países ou culturas é através dos livros. A literatura é uma ferramenta do conhecimento, que, no Ocidente, funciona como mercadoria. Veja como se relacionam a cultura oriental e a leitura ocidental


por Pedro Matias*


"Esse é o valor inegável da Literatura: tentarmos compreender o outro e crescer com a visão de mundo dele."
Trabalhar com Literatura é fazer um exercício de troca de perspectiva. Falar sobre Literatura é, em certa medida, dialogar com o ponto de vista do outro, tentando compreendêlo e fazer as analogias possíveis com o nosso. O trabalho com essa arte, como em qualquer outra, se torna inútil quando pretendemos “entrar e sair” da mesma forma, sem nenhuma transformação. Nós, ocidentais, temos o sentimento de centro do mundo: a globalização (causada pelo capitalismo) é uma ocidentalização. Vejo que a Literatura enseja uma discussão que é muito válida: o que podemos aprender com a cultura do outro? Abordando As Mil e uma Noites, discutirei sobre a herança cultural ocidental (provinda do avanço impetuoso do capitalismo) em contraponto com a oriental (provinda da cultura islâmica).
Ser protagonista
Nós, ocidentais, fomos ensinados que somos o “centro” do mundo. Fomos formados em uma época da história que nosso “lado do globo” era visto como o local da riqueza e liberdade, e o Oriente era visto como a “terra misteriosa” onde as pessoas viviam à mercê de uma religião “bárbara” que pregava a falta de liberdade para mulheres. Ainda vivemos reflexos desse tempo; no entanto, podemos tentar compreender o outro e crescer com a visão de mundo dele. Esse é o valor inegável da Literatura. Temos que ser protagonistas de nossa leitura e escapar ilesos de um livro, sem sofrer nenhuma transformação, só ocorre quando o livro já não tem mais nada a nos oferecer. Porém, com grandes livros, como os clássicos, devemos estar preparados para rever nossas perspectivas de mundo.
Temos tachado o oriental – lembrando que orientais não se restringem aos grupos que abordo aqui; no entanto, para fins de argumentação mais clara, quando estiver me referindo a orientais, neste artigo, refiro-me principalmente àqueles que vivem de acordo com o Islã – de bárbaro desde tempos imemoriáveis, ou melhor, a denominação de bárbaro já estava lá antes de Jesus, antes de Roma. O império latino chamou de bárbaros todos aqueles que não faziam parte da sua cultura. Chamar o outro de estranho tomou uma perspectiva interessante: não é (reitero que para nós, ocidentais) uma maneira de apontar um sujeito como uma fonte de onde posso tirar novos ensinamentos, mas a marca nefasta de que ele é diferente de mim e, portanto, não tem nada a oferecer. Isso se torna mais constrangedor, usando o sentido completo da palavra, pois torna o sujeito ocidental um ignorante em todas as acepções possíveis.
A dupla viagem
Já foi dito que a Literatura sempre fala sobre a guerra ou a viagem. No fundo, todo personagem viaja de alguma forma, seja interna ou externamente. Muitas vezes essas viagens são complementares (principalmente na narrativa dita pós-moderna), mas há outra viagem: a do leitor. Assim como o personagem, o leitor vive uma viagem espelhada; a primeira uma viagem, pelas páginas do livro, que, quando está no estado anímico para viver a narrativa, se espelha na viagem transformadora interna dele. Citando Joseph Campbell: “Um herói vindo do mundo cotidiano se aventura numa região de prodígios sobrenaturais, ali encontra fabulosas forças e obtém uma vitória decisiva; o herói retorna de sua misteriosa aventura com o poder de trazer benefícios aos seus semelhantes”.
Essa viagem pode ser alinhada com a do monomito campbelliano (como definida acima): o sujeito é tomado do convívio social para viver uma viagem. Ele morre e renasce para voltar para sua comunidade mutacionado, em um Ser capaz de oferecer algo para essa comunidade — em outras palavras, ele é melhor para a sociedade. Essa viagem é necessária dentro da Literatura e é precisamente ela que torna um livro uma força social poderosa.
A árvore e a onda
Tomando as palavras de Franco Moretti, temos uma boa metáfora para tratar do mundo oriental e do ocidental:
Ora, árvores e ondas são, ambas, metáforas — mas afora isso não têm absolutamente nada em comum. A árvore descreve a passagem da unidade à diversidade: uma árvore com muitos ramos, do indo-europeu a dúzias de línguas diversas. A onda é o oposto: observa uniformidade abarcando uma diversidade inicial; filmes de Hollywood conquistando um mercado após outro (ou o inglês tragando uma língua após outra). As árvores precisam de descontinuidade geográfica (para se ramificarem umas das outras, as línguas têm primeiro de estar separadas no espaço, a exemplo das espécies animais); as ondas não gostam de barreiras e prosperam na continuidade geográfica (do ponto de vista de uma onda, o mundo ideal é um lago). Árvores e ramos são aquilo a que se apegam os Estados-nação; ondas são o que os mercados fazem. E assim por diante. Nada em comum entre as duas metáforas. Mas ambas funcionam. A história cultural é feita de árvores e ondas — a onda do avanço agrícola sustentando a árvore das línguas indo-européias, que é varrida então por novas ondas de contato linguístico e cultural... E à medida que o mundo oscila entre os dois mecanismos, seus produtos são inevitavelmente heterogêneos.
Para deixarmos bem claro: árvore é a perspectiva que cria raízes se especificando em diversos “galhos”, tornando-se cada vez mais heterogênea; a onda é a perspectiva que tenta homogeneizar tudo, a onda vai arrastando aquilo que encontra em seu caminho, tornando tudo o mesmo mar, fazendo com que tudo afunde e torne-se parte do mesmo elemento. O Ocidente vive pela perspectiva da onda e o Oriente, pela perspectiva da árvore. Um exemplo sobre isso, vindo do As Mil e uma Noites, é a história do terceiro calândar (53ª noite):
Visitei primeiramente as províncias; em seguida, mandei que armassem e equipassem a minha frota, e percorri as ilhas a fim de granjear, com a minha presença, a amizade dos súditos e o cumprimento dos seus deveres. Pouco tempo depois, tornei a visita-las, e tais viagens, ao mesmo tempo em que me proporcionavam um verniz de navegação, de tal forma despertaram meu interesse que resolvi descobrir terras desconhecidas, para além das minhas ilhas.
“O protagonista é aquele personagem que não escapará ileso aos acontecimentos – seja pela perda da inocência de um Frodo Baggins ou pelos percalços da trajetória até reencontrar a mulher amada de um Dante ou um Ulisses.” 
Robertson Frizero, editor e tradutor

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