domingo, 2 de fevereiro de 2014

“Vamos abolir o dinheiro para sermos felizes!”

“Vamos abolir o dinheiro para sermos felizes!”

51ee99a7c3e1e.jpgÉ com enorme frequência que vejo pessoas declamando quão belo e puro o mundo seria caso não existisse o dinheiro, pois odinheiro macula todas as relações humanas e só traz problemas e discórdias, sendo que, na realidade, "ninguém precisa de dinheiro para viver".
Confesso haver momentos em que eu não sei se tais pessoas estão realmente falando a sério ou se elas estão apenas sendo retóricas.  Partindo do princípio de que tais declarações não são meramente retóricas, é necessário dar uma resposta.
No cerne de toda a análise econômica moderna — e tem sido assim desde a época de Adam Smith — está a importância da divisão do trabalho.  A divisão do trabalho permite que nós nos especializemos exatamente naquilo em que somos bons.  É por meio da divisão do trabalho que conseguimos descobrir que, quando nos especializamos naquelas áreas em que possuímos uma vantagem comparativa e competitiva, passa a haver uma maior demanda por nossos serviços e, consequentemente, uma maior riqueza ofertada em troca de nossos serviços.
Uma economia baseada no escambo é uma economia inerentemente primitiva.  Neste arranjo, as pessoas são incapazes de se especializar, pois não há mercados específicos prontos para adquirir os bens ou serviços produzidos por essa pessoa.  Por exemplo, um indivíduo que cria galinhas terá dificuldade em trocar suas galinhas por algum serviço específico (por exemplo, aulas de química), a menos que ele saiba exatamente qual pessoa em toda a sociedade está disposta a aceitar a galinha em troca do fornecimento do exato serviço demandado (aulas de química) por esse criador de galinhas.  Quanto mais complexa uma sociedade, menores as chances de você encontrar diretamente alguém que queira comprar exatamente aquilo que você tem para vender e que, em troca, ofereça exatamente aquilo que você comprar.
Murray Rothbard foi direto ao ponto:
No entanto, esse processo de troca direta de bens e serviços úteis dificilmente seria capaz de manter uma economia acima de seu nível mais primitivo.  Tal troca direta — ou escambo — dificilmente é melhor do que a pura e simples autossuficiência. Por quê?  Em primeiro lugar, está claro que tal arranjo permite somente uma quantidade muito pequena de produção.  Se João contrata alguns trabalhadores para construir uma casa, com o que ele lhes pagará?  Com partes da casa?  Com os materiais de construção que não forem utilizados? 
Os dois problemas básicos deste arranjo são a "indivisibilidade" e a ausência daquilo que chamamos de "coincidência de desejos".  Assim, se Silva tem um arado que ele gostaria de trocar por várias coisas diferentes — por exemplo, ovos, pães e uma muda de roupas —, como ela faria isso?  Como ele dividiria seu arado e daria uma parte para um agricultor e a outra parte para um alfaiate?  Mesmo para os casos em que os bens são divisíveis, é geralmente impossível que dois indivíduos dispostos a transacionar se encontrem no momento exato.  Se A possui um suprimento de ovos para vender e B possui um par de sapatos, como ambos podem transacionar se A quer um terno?  Imaginem, então, a penosa situação de um professor de economia: ele terá de encontrar um produtor de ovos que queira comprar algumas aulas de economia em troca de seus ovos. 
Obviamente, é impossível haver qualquer tipo de economia civilizada sob um arranjo formado exclusivamente por trocas diretas.
Há somente uma maneira de comprarmos exatamente aquilo que queremos em uma economia baseada na divisão do trabalho: por meio de um sistema monetário que estipule preços aos bens e serviços.  Preços transmitem informação, e esta informação é crucial para a sobrevivência da economia moderna.
A importância do dinheiro para a economia é enorme.  Sem a nossa atual economia monetária, praticamente toda a moderna vida industrial e urbana entraria em colapso em uma questão de poucos meses.  Por exemplo, se todo o sistema monetário eletrônico de um país rico e grande (como os EUA ou o Brasil) deixasse de funcionar em decorrência de um ataque utilizando um pulso eletromagnético, provavelmente mais da metade das pessoas deste país estaria morta em menos de três meses.  Sem o dinheiro, não haveria cálculo de preços e de custos.  Ninguém seria capaz de ofertar bens básicos às cidades.  Ninguém seria capaz de calcular o custo de nada.
Sem dinheiro, não haveria, por exemplo, transporte de cargas, de alimentos ou de combustível.  Caminhões que transportam produtos para as cidades são pagos em dinheiro eletrônico.  Nenhuma empresa de transporte mandaria um caminhão com uma valiosa carga de gasolina para uma cidade.  Em troca de quê?  Se ele fizesse isso, o motorista jamais retornaria.  Nem o caminhão.  A gasolina e o caminhão passariam a ser uma valiosa moeda de troca.  Os caminhões deixariam de rodar.
O mesmo raciocínio acima é válido para empresas de transporte que levam suprimentos de alimentos para os supermercados nas cidades.  As prateleiras dos supermercados ficariam vazias.  Quem sobreviveria em uma cidade que não recebe suprimento nenhum?  Como seria essa cidade após três semanas sem suprimentos?
Sem dinheiro, simplesmente não haveria como essa vasta quantidade de bens e serviços — algo que nem sequer podemos estimar — encontrar compradores.  A maioria da população perderia seus empregos em uma questão de semanas.  Não haveria demanda por nenhum dos serviços que somos capazes de ofertar.  Consequentemente, não seríamos capazes de comprar praticamente nada daquilo que nos mantém vivos.
Seria um colapso econômico muito além de qualquer coisa que já ocorreu na história moderna.  O retorno ao escambo resultaria em uma mortandade em massa.  Seria o colapso da economia baseada na divisão do trabalho.  As cidades se tornariam armadilhas mortíferas.
Em outras palavras, o sistema monetário está no âmago do mundo moderno.  Não poderia haver catástrofe maior para o mundo moderno do que o sistema monetário eletrônico deixar de funcionar.  Isso literalmente iria destruir a civilização.  Voltaríamos a ser uma sociedade primitiva em um breve período de tempo.  Quando digo "nós", refiro-me aos sobreviventes.
Até mesmo em épocas de hiperinflação é possível conseguir o que queremos, pois ainda existem preços.  Eles podem parecer estapafúrdios e ilógicos, mas ao menos ainda são preços.  Com os consumidores ávidos para se livrar rapidamente desta moeda hiperinflacionada, eles competem entre si pelos bens e serviços, e isso eleva os preços.  Mas esses preços ainda assim refletem o conceito de oferta e demanda dos consumidores.  Eles transmitem informação.  Eles realmente permitem que compradores e vendedores transacionem.  Se fosse um arranjo de puro escambo, a perda de produtividade seria devastadora para quase toda a população.
Se você compra um ativo, você o adquire porque ele irá gerar dinheiro para você.  Se um empreendedor faz algum investimento, ele o faz com o intuito de obter um fluxo de dinheiro no futuro.  Se, repentinamente, o dinheiro parar de fluir, a esmagadora maioria destes ativos e investimentos tornar-se-ão inúteis.  Mais ainda: sem o dinheiro e sem o sistema de preços monetários, o sistema judiciário (estatal ou privado) deixaria de funcionar.  Não haveria mais respeito aos contratos e aos direitos de propriedade, o que geraria ainda mais incerteza em uma economia já destroçada.  Haveria um completo colapso da economia.
Se o dinheiro não é importante e é possível viver bem sem ele, por que as pessoas trabalham para obtê-lo?  Se o dinheiro não é importante, por que as pessoas vão às compras com ele?  Quando você compra um ativo, você está na realidade comprando um fluxo esperado de dinheiro.  Somente na mais rara das circunstâncias você espera que este ativo gere um fluxo de algo que não seja dinheiro.  Se você compra uma mina para extrair ouro dela mina, você irá vender este ouro em troca de dinheiro (a menos que utilize esse ouro em um processo de escambo).  Logo, o dinheiro é o fluxo de renda que motiva você a comprar a mina de ouro.  O mesmo é válido para qualquer terreno agrícola.
Para resumir: se o dinheiro for abolido, morremos.
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A diferença entre a burocracia estatal e a economia de mercado

A diferença entre a burocracia estatal e a economia de mercado
por , quarta-feira, 11 de dezembro de 2013

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gov.com-size-598.jpgQual é a diferença mais notável entre o funcionamento do governo e o da economia de mercado?  Ludwig von Mises nos forneceu uma resposta surpreendente, uma resposta que ele explicou em detalhes em seu sensacional livro Liberalismo — Segundo a Tradição Clássica, publicado no longínquo ano de 1927.  Mises disse que a diferença toda estava na contabilidade, isto é, no cálculo de custos.
Dentro das burocracias não-comerciais do governo, tudo é um jogo de adivinhação.  Você não sabe exatamente o quanto deve gastar em quê; você não sabe se há algum objetivo racional naquilo que você está fazendo; você não sabe se este ou aquele plano será bem-sucedido ou se irá fracassar completamente; você não sabe onde cortar gastos caso tenha de fazê-lo; e você não sabe quais seções e quais pessoas estão fazendo um bom trabalho e quais não estão.  O setor público é um setor que, inevitavelmente, por pura lógica econômica, sempre funciona às escuras, sem ter a mínima ideia do que faz, e sempre tendo de fingir que está fazendo tudo certo.
Por quê?  Porque o governo não opera de acordo com os sinais de preços emitidos pelo mercado.  Ele não opera segundo a lógica do sistema de lucros e prejuízos.  Como ele não tem acesso aos sinais de preços, ele não é capaz de calcular lucros e prejuízos.  Por conseguinte, ele não tem uma bússola que possa guiá-lo em suas ações.  Ele não tem como avaliar e estimar a real valia econômica de qualquer coisa que faça.  Seus investimentos nunca poderão ser feitos da maneira correta, seus serviços nunca serão prestados de maneira satisfatória, sempre haverá desperdício de recursos e gritante ineficiência.  Esta é uma realidade inevitável.  Não se trata de ideologia; é pura ciência econômica. 
Por não ter esta racionalidade, as burocracias estatais sempre acabam seguindo os caprichos do governo do momento, preocupadas exclusivamente em satisfazer as demandas de políticos que visam apenas sua autopromoção e sua reeleição.  Consequentemente, as burocracias estatais sempre estarão sob os auspícios de uma gente cujo horizonte temporal é de no máximo quatro anos, e inevitavelmente se transformarão em fábricas de desperdício, ineficiência, confusão e ressentimento.
Já nas empresas privadas que operam em ambiente de livre concorrência a situação é diferente.  No mundo do comércio, os sinais de preços emitidos pelo mercado comandam as decisões.  O sistema de lucros e prejuízos mostra como os recursos escassos estão sendo empregados.  Se corretamente, os consumidores recompensam as empresas propiciando-lhes grandes lucros; se erroneamente, os consumidores punem as empresas impondo-lhes prejuízos.  Uma expansão ou um corte nos investimentos é algo que será guiado pelo balancete das empresas.  Os empregados são produtores que são valorados, e não explorados.  Não interessa se a empresa é grande ou micro: ela estará sempre em busca da lucratividade.  E a lucratividade sempre será, em última instância, determinada pela decisão voluntária dos consumidores.
Para ver como algo aparentemente simples possui ramificações muito mais complexas do que se poderia imaginar a princípio, peguemos o exemplo de um restaurante chique.  A estrutura de produção deste restaurante não se resume apenas à coordenação entre os garçons e a cozinha.  É necessário haver uma administração voltada exclusivamente para o controle dos estoques de todos os alimentos e de todas as bebidas.  Como não é possível saber com antecedência o que os clientes irão ordenar de seu variado menu, o estoque de alimentos e bebidas tem de ser vasto e plenamente adaptável às súbitas alterações de gosto e interesse de seus clientes.  Tal controle de estoque não seria possível de ser planejado sem preços de mercado, sem a contabilidade e sem o sistema de lucros e prejuízos.
Além da coordenação entre os chefs e os cozinheiros, e entre os cozinheiros e os garçons, a estrutura de produção deste restaurante se estende para muito além de suas paredes.  A comida tem de vir de todos os cantos do mundo.  Diversos meios de transporte têm de ser utilizados para fazer com que a comida chegue ao estabelecimento.  Mas não é possível servir comidas e bebidas se não houver agricultura, criação de gado e plantio de ervas e temperos em lugares remotos do mundo.  E a coordenação não pára por aí.  Ela ainda volta no tempo — décadas e às vezes até séculos — para as primeiras sementes plantadas nos vinhedos que produziram os vinhos, e os primeiros centeios que produziram os uísques e as demais bebidas servidas no restaurante.  E a tecnologia que possibilita tudo isso é relativamente nova, desde a refrigeração até a comunicação digital entre a cozinha e o maître.  Nada disso seria possível sem o sistema de preços, que permite a contabilidade de custos e determina se há ou não lucratividade em qualquer uma das etapas envolvidas neste processo.
Este mecanismo extraordinariamente complexo — muito mais complicado do que qualquer operação já tentada por qualquer burocracia estatal — tem de funcionar harmoniosamente para todos os clientes que aparecerem no restaurante em qualquer momento.  E se ninguém aparecer?  Se isso acontecer com muita frequência, todo o investimento entra em colapso.  Todo o planejamento, todos os gastos, todas as habilidades envolvidas se revelarão um grande desperdício.  O mercado enviou seu sinal: o empreendimento não estava empregando recursos escassos da maneira mais eficiente possível.  O que determina se este empreendimento será pujante e lucrativo ou se ele desaparecerá rapidamente é simplesmente a decisão do consumidor de comer lá ou não.  Não há ninguém apontando armas para ninguém, não há coerção, não há chantagem.  Há apenas um empreendimento implorando para poder servir seus clientes.
Se você propusesse a criação de algo assim para uma pessoa que jamais houvesse visto algo parecido em operação, ela nunca iria acreditar que tal coisa pudesse funcionar.  Muito menos existir.
É por tudo isso, escreveu Mises, que o cálculo monetário e a contabilidade de custos constituem as mais importantes ferramentas intelectuais do empreendedor capitalista.  Mises celebrou a famosa declaração de Goethe, que havia dito que o método contábil das partidas dobradas foi "uma das mais admiráveis invenções da mente humana."
Uma vez vislumbrado todo este processo, fica fácil entender por que vivenciamos recorrentemente o fenômeno dos ciclos econômicos.  Fica mais fácil entender por que empresas privadas muitas vezes parecem fazer coisas tão insensatas e imprudentes quanto o governo; por que elas também tomam decisões irracionais; por que elas também produzem burocracias; por que elas também seguem o capricho de políticos; por que elas também passam por ciclos de expansão e contração.
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Mises explicou isso, neste mesmo livro.  A causa de tudo é aquilo que ele chamou de intervencionismo.  Quanto mais o governo regula, intromete, tributa, erige barreiras, produz inflação, confisca, proíbe e todo o resto, mais a iniciativa privada se torna sujeita à mesma irracionalidade que permanentemente assola o governo.  As intervenções do governo no mercado, por menores que aparentemente sejam, provocam distúrbios no sistema de preços, afetando toda a contabilidade de custos das empresas.  As intervenções estatais podem tanto fazer com que empreendimentos insustentáveis repentinamente aparentem ser lucrativos (sem que realmente o sejam), como também pode fazer com que empreendimentos genuinamente lucrativos se tornem rapidamente insolventes.  O governo expande até a iniciativa privada os mesmos males que o acometem.
A descrição feita por Mises em 1927 é interpretada hoje como se ele estivesse de posse de alguma bola de cristal.  Tudo se torna mais claro assim que você passa a ver o mundo da mesma maneira que ele.  Basta analisar a realidade atual.
Oito anos atrás, estimulados pela expansão artificial do crédito feita por seus respectivos bancos centrais, os mercados imobiliários da Europa dos EUA estavam a pleno vapor, com preços e lucros em contínua ascensão, o que gerava vários milionários por minuto.  Parecia que o mundo havia entrado em uma nova era de prosperidade e de riqueza infinita para todos.  E então, da noite para o dia, tudo ruiu.  Depois de cinco anos, ainda há cadáveres por todos os lados.  Várias empresas quebradas, bancos zumbis com seus balancetes contaminados e as economias totalmente letárgicas.
Os governos e os bancos centrais ao redor do mundo estão hoje completamente perdidos.  Praticamente todas as semanas, um figurão do alto escalão de algum governo ou banco central vem a público anunciar uma nova medida intervencionista, e sempre termina seu anúncio dizendo que "agora vai!".  E tudo só piora.  E quase ninguém entende por quê.
O desconhecimento das obras de Mises é algo que continuará afetando nossa prosperidade e nosso bem-estar muito mais do que você pode imaginar.



Jeffrey Tucker é o presidente da  Laissez-Faire Books e consultor editorial do mises.org.  É também autor dos livros It's a Jetsons World: Private Miracles and Public Crimes e Bourbon for Breakfast: Living Outside the Statist Quo

Quatro mil anos de controle de preços

Quatro mil anos de controle de preços
por , quinta-feira, 12 de dezembro de 2013

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2005-049174-_19860314.jpgComentário do IMB:
A economia brasileira opera como se estivesse separada em dois compartimentos.  Há aqueles setores em que o governo interfere muito e há aqueles setores em que ele interfere bastante. 
Interferência estatal existe em cada canto da economia, pois o governo está sempre tributando e regulando — isto é, confiscando dinheiro e impondo normas incompreensíveis e impossíveis de serem obedecidas integralmente.  No entanto, naqueles setores em que o governo interfere menos, ou seja, nos quais ele se limita a tributar e impor ordens, raramente se ouviu falar em problemas de escassez.  Quando foi que você ouviu falar de crise na indústria de lápis?  Ou na indústria de papelão?  Ou na indústria de sorvetes?  Na indústria de parafusos?  E na indústria de eletrônicos, então?  Quando foi que você ouvir falar de escassez no setor alimentício?  Quando foi que um restaurante a quilo deixou de abrir porque não havia comida? 
Nestes setores, oferta e demanda, por mais oprimidas que sejam pelos impostos e regulamentações do governo, conseguem se mover sincronizadamente, e o consumidor jamais temeu qualquer tipo de escassez nestas áreas.
É justamente naqueles setores em que o governo faz sua interferência mais violenta — isto é, por meio decontrole de preços —, que a escassez e o desabastecimento são a regra, e não a exceção.  
Antes de tudo, é necessário entender que a escassez não é necessariamente a completa ausência de um produto.  Há várias formas de escassez.  A escassez explícita é aquela vista atualmente no setor da saúde pública, em que faltam medicamentos e atendimentos, e as consultas têm de ser agendadas com até um ano de antecedência. 
Mas há também outros graus de escassez.  Por exemplo, um engarrafamento é uma escassez.  Um bem (rua) está sendo ofertado a preço zero para uma demanda (carros) que tende ao infinito.   Um aeroporto congestionado, em que aviões chegam a ficar uma hora esperando autorização para decolar, é outro exemplo de escassez: a administração do aeroporto é estatal e não sabe praticar discriminação de preços, cobrando tarifas mais altas para as companhias aéreas operarem em horários de pico, e mais baixas para horários de menos demanda. E o setor privado é proibido de construir aeroportos para suprir essa demanda.
Operadoras de celulares que não entregam o prometido ou cujas ligações vivem caindo são outro exemplo de escassez.  O governo, por meio de sua agência reguladora, fechou o mercado para apenas algumas poucas empresas, impedindo que grandes empresas estrangeiras (Vodafone, Verizon, AT&T Mobility, T-Mobile, Orange, entre outras) venham operar aqui.  É a agência reguladora que decide quem pode e quem não pode operar no Brasil, um arranjo que vai totalmente contra a ideia de livre mercado e livre concorrência.
Nos últimos anos, é o setor energético quem está na mídia.  Riscos de apagão e de desabastecimento de gasolina são fenômenos que assombram o brasileiro a cada dois anos em média.  E isso não deveria ser surpresa alguma: são dois setores sob completo controle do governo; dois setores cujos preços dos serviços são diretamente decretados pelo governo, e cuja oferta, embora não seja monopolista em teoria, o é na prática. 
Por exemplo, se uma empresa quiser prospectar petróleo aqui no Brasil e nos vender, ela não pode.  Os preços cairiam muito, e preços baixos afetariam as receitas da Petrobras, que é uma empresa utilizada para fins políticos.  Ademais, após mais de 40 anos de monopólio (quebrado apenas em 1997), a Petrobras já se apossou das melhores jazidas do país.  Nem tem como alguém concorrer.  É como você chegar atrasado ao cinema: os melhores assentos já foram tomados, e você terá de se contentar com os piores.
Após ter pomposamente declarado autossuficiência em 2006, a Petrobras não pára de aumentar suas importações de petróleo, o que mostra que a estatal é incapaz até mesmo de controlar sua oferta.
No setor elétrico, o controle estatal faz com que o país mais bem dotado de recursos hídricos no mundo (recurso este que gera energia barata) tenha uma das contas de energia mais caras do mundo.  Óbvio.  Dado que se trata de um setor extremamente regulado e sem livre concorrência, o resultado não poderia ser outro.  Não apenas a conta é alta, como há constantes riscos de apagão por escassez de oferta.  É necessária uma incompetência alarmante para se chegar a um arranjo em que falta oferta mesmo quando se cobra um dos preços mais altos do mundo. 
Há coisas que apenas um monopólio estatal pode fazer por você.
A seguir, um sucinto relato do histórico dos controles de preços ao longo da história humana, uma praga que aparentemente nunca terá fim.  Como perfeitamente sintetizou Roberto Campos, "Como as damas balzaquianas, de vida airada, o tabelamento de preços rejuvenesce à medida que se esquecem as experiências passadas.  É a teoria dos que não têm teoria."
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O argumento contra os controles de preços não é meramente um exercício acadêmico, algo restrito aos manuais de economia.  Há um histórico de quatro mil anos de catástrofes econômicas causadas pelos controles de preços.  Este histórico está parcialmente documentado em um excelente livro intitulado Forty Centuries of Wage and Price Controls (Quarenta Séculos de Controles de Preços e Salários), de Robert Schuettinger e Eamon Butler, publicado originalmente em 1979.
Os autores começam citando Jean-Philippe Levy, autor de The Economic Life of the Ancient World, que observou que no Egito, durante o século III a.C., "havia uma verdadeira onipresença do estado" na regulação da produção e da distribuição de grãos.  "Todos os preços foram congelados por decreto em todos os níveis".  Este "controle assumiu proporções assustadoras.  Havia um exército de burocratas que inspecionavam diariamente o cumprimento do decreto".
Os agricultores egípcios ficaram tão enfurecidos com esse controle de preços, que vários deles simplesmente abandonaram suas fazendas.  Ao final do século, "a economia egípcia havia entrado em colapso, junto com sua estabilidade política".
Na Babilônia, 4.000 anos atrás, o Código de Hamurabi continha uma barafunda de regulamentações e controle de preços.  "Se um homem contratar um camponês, deverá dar a ele oito gurs (unidade de medida hamurábica) de cereais por ano";  "Se um homem contratar um boiadeiro, deverá dar a ele seis gurs de cereais por ano"; "Se um homem alugar um barco de seis toneladas, deverá pagar um sexto de um shekel de prata por dia por esse aluguel".  E os decretos não paravam mais.
Tais imposições "sufocaram o progresso econômico no império por vários séculos", como mostram os registros históricos.  Assim que estas leis foram implementadas, "houve um acentuado revés na prosperidade das pessoas".
A Grécia antiga também impôs controle de preços sobre cereais e estabeleceu "um exército de fiscalizadores nomeados para a função de estabelecer o preço do cereal em um nível que o governo ateniense julgasse justo".  Esse controle de preços grego inevitavelmente levou à escassez de cereais.  Por sorte, vários empreendedores corajosamente conseguiram se esquivar destas leis ignaras e, com isso, salvaram milhares da inanição.  Não obstante a imposição de pena de morte para aqueles que desobedecessem às leis de controle de preços, tais leis "eram praticamente impossíveis de serem impingidas".  A escassez criada pelo controle de preços criou grandes oportunidades de lucro no mercado negro, para a grande sorte do povo grego.
Em 293 d.C., o imperador romano Diocleciano gerou uma grande inflação de preços ao aumentar enormemente a quantidade de dinheiro em circulação.  Em seguida, ele "estipulou um teto de preços para carnes, cereais, ovos, roupas e outros bens, e instituiu a pena de morte para qualquer um que vendesse seus artigos a um preço maior do que o estabelecido".  Os resultados, como Schuettinger e Butler explicam em seu livro citando um historiador antigo, foram que "as pessoas simplesmente pararam de colocar seus bens à venda no mercado, dado que elas não mais poderiam obter um preço sensato por eles.  Isso aumentou tão acentuadamente a escassez, que, após a morte de várias pessoas, a lei foi finalmente revogada."
Já em épocas mais modernas, foi por muito pouco que o exército revolucionário de George Washington não morreu de fome no campo de batalha graças ao controle de preços sobre alimentos que havia sido instituído pelo governo da Pensilvânia e por outros governos coloniais.  A Pensilvânia impôs controle de preços especificamente sobre "aquelas mercadorias imprescindíveis para o exército", criando uma desastrosa escassez de tudo que o exército mais necessitava.  O Congresso Continental sabiamente adotou uma resolução anti-controle de preços no dia 4 de junho de 1778, a qual dizia: "Considerando que já foi descoberto pela experiência que limitações impostas aos preços das mercadorias não apenas são ineficazes para o objetivo proposto, como também são igualmente geradoras de consequências extremamente maléficas, fica resolvida a recomendação aos vários estados para que revoguem ou suspendam todas as leis limitando, regulando ou restringindo o preço de qualquer artigo". 
Ato contínuo, escreveram Schuettinger and Butler, "Já no outono de 1778, o exército já estava suficientemente bem provido como resultado direto dessa mudança de política".
Os políticos franceses repetiram os mesmos erros após sua revolução, instituindo a "Lei de Maximum" em 1793, a qual impôs controle de preços sobre cereais e, depois, sobre uma longa lista de vários outros itens.  Previsivelmente, "em algumas cidades francesas, as pessoas estavam tão mal alimentadas, que estavam literalmente caindo pelas ruas por desnutrição".  Uma delegação representando várias províncias escreveu para o governo em Paris que, antes da lei do controle de preços, "nossos mercados estavam bem providos; porém, tão logo congelamos os preços do trigo e do centeio, estes cereais nunca mais foram vistos.  Os outros tipos que não estão submetidos ao controle de preços são os únicos que podem ser encontrados à venda".
O governo francês se viu então obrigado a abolir sua maléfica lei de controle de preços após ela ter literalmente dizimado milhares de pessoas.  Quando Maximiliem Robespierre estava sendo carregado pelas ruas de Paris a caminho de sua execução, a plebe gritava "Lá vai o maldito Maximum!"  Se ao menos essa lição fosse aprendida por políticos contemporâneos...
Ao final da Segunda Guerra Mundial, os planejadores centrais americanos haviam se tornado ainda mais totalitários em termos de política econômica do que os nazistas derrotados.  Durante a ocupação americana da Alemanha, no pós-guerra, os "planejadores" americanos se mostraram muito entusiasmados com os controles econômicos impostos pelos nazistas, inclusive o controle de preços.  Desnecessário dizer que eram estes controles econômicos que estavam impedindo a recuperação econômica alemã.  O notório nazista Hermann Goering chegou até mesmo a passar um sermão no correspondente de guerra americano Henry Taylor sobre o assunto.  Como relatado por Schuettinger e Butler, Goering disse:
Todas as coisas que a sua América está fazendo no campo econômico estão nos causando vários problemas.  Vocês estão tentando controlar os preços e os salários das pessoas — ou seja, o trabalho das pessoas.  Se você faz isso, você inevitavelmente tem de controlar a vida das pessoas.  E nenhum país pode fazer isso pela metade.  Eu tentei e não deu certo.  Tampouco pode um país fazer isso integralmente, indo até as últimas consequências.  Eu tentei isso também e, de novo, não deu certo.  Vocês não são melhores planejadores do que nós.  Eu imaginava que seus economistas haviam lido e estudado o que ocorreu aqui.
Os controles de preços foram finalmente abolidos na Alemanha, em 1948, pelo Ministro da Economia Ludwig Erhard.  A abolição ocorreu de uma só vez, em um domingo, quando as autoridades de ocupação americanas estavam ausentes de seus escritórios, incapazes de impedi-lo.  Tal revogação produziu o "milagre econômico alemão".  [Veja todos os detalhes do milagre alemão neste artigo].
Nos EUA, controles de preços foram a causa da "crise energética" da década de 1970 e dos apagões na Califórnia na década de 1990 (apenas os preços do setor de geração de energia foram desregulamentados na Califórnia; os controles foram mantidos no setor de transmissão e distribuição).  
[No Brasil, as destruições e os sofrimentos causados pelos controles de preços estão bem documentados aqui].
Atualmente, Argentina Venezuela nos fornecem os mais atualizados, didáticos e escabrosos exemplos. Na Venezuela, por exemplo, falta até papel higiênico.
Ao longo de mais de quatro mil anos, ditadores, déspotas e políticos de todos os naipes viram nos controles de preços uma forma suprema de prometer ao público "alguma coisa em troca de nada".  Com o gesto de uma mão, uma piscada de olhos e o movimento de uma caneta, eles prometem que irão deixar tudo milagrosamente mais barato.  E o povo sempre acredita. 
Por mais de quatro mil anos, os resultados têm sido exatamente os mesmos: escassez e desabastecimento, várias vezes com consequências catastróficas; deterioração da qualidade do produto; proliferação dos mercados negros, nos quais os preços são maiores do que seriam em um mercado livre e os subornos são desenfreados; destruição da capacidade produtiva daquelas indústrias cujos preços são controlados; distorções grosseiras dos mercados [no Brasil do Plano Cruzado, carro usado era mais caro do que carro novo]; criação de burocracias tirânicas e opressivas para fiscalizar o controle de preços; e uma perigosa concentração de poder político nas mãos destes burocratas controladores de preços.
E é isso que os economicamente ignorantes querem criar sempre que pedem ao governo que intervenha nos preços de um determinado setor da economia. 
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Pelo capitalismo, para os pobres

Pelo capitalismo, para os pobres
por Diogo Costa



punhocapitalista1.pngUma coisa é dizer aos ricos que eles devem cuidar dos pobres", escreveu John Stuart Mill, "outra coisa é dizer aos pobres que os ricos devem cuidar deles". O senso de responsabilidade dos ricos para com os pobres não pode substituir o senso de responsabilidade que os pobres devem ter para com eles próprios.
Não se deve confundir responsabilidade com culpa. Montesquieu dizia que um povo "empobrecido pela dureza do governo" se tornava "incapaz de grandes atos porque sua pobreza fazia parte da sua escravidão". O pobre não pode responder pela sua própria vida e a de sua família sem antes ter a propriedade sobre a caneta e a folha de respostas.
A legislação brasileira não dá ao pobre a propriedade sobre sua própria casa, a burocracia o impossibilita de se tornar seu próprio patrão, a legislação trabalhista joga sua força de trabalho para o escanteio da informalidade e o sistema tributário faz com que ele tenha que pagar preços escandinavos em produtos de qualidade subsaariana.
"Entre as coisas a serem feitas", também dizia Mill, "a mais óbvia é remover todas as restrições e todos os obstáculos artificiais que os sistemas legal e fiscal lançam sobre as tentativas das classes trabalhadoras de melhorar sua própria condição".
Essas coisas começavam a ser feitas quando Mill escrevia na Inglaterra do século XIX. Duzentos anos depois do início do século de Mill, escreve Deirdre McCloskey em A Dignidade da Burguesia,
O mundo sustenta uma população mais de seis vezes e meia maior. E contra a expectativa maltusiana pessimista de que o crescimento populacional seria um problema, o cidadão médio hoje ganha e consome quase dez vezes mais bens e serviços do que o fazia em 1800. O salário real por pessoa no mundo está dobrando a cada geração, e essa tendência está acelerando. A fome mundial nunca esteve com taxas tão baixas, e continua caindo. A alfabetização e a expectativa de vida nunca estiveram tão altas, e continuam subindo. A liberdade está avançando. A escravidão está recuando e, em particular, a escravidão das mulheres. Nos países mais ricos, como a Noruega, o cidadão médio ganha 45 vezes mais do que ganhava em 1800, estupendos U$137 ao dia. O meio ambiente — uma preocupação de uma burguesia bem de vida — está melhorando nesses países ricos.
Meus amigos socialistas olham para os ricos europeus e dizem que o capitalismo está colocando o mundo na miséria. Não sei nem por onde começar: se explicando que as políticas do welfare-state que causam crises não podem ser uma manifestação do capitalismo ao mesmo tempo em que são uma alternativa ao capitalismo, ou se mostrando que uma Europa em crise continua oferecendo um padrão de vida bastante superior a um Brasil em ritmo de Copa.
Em vez disso, convido meus amigos a se preocuparem menos com os países ricos e prestarem mais atenção no que está acontecendo com os países pobres. Nos últimos vinte anos, a pobreza mundial caiu pela metade. Esse é um acontecimento inédito na história humana. Eu olho para a Ásia e a África e vejo um capitalismo tirando o mundo da miséria.
Não é só o ambiente institucional que precisa mudar para enriquecer os pobres. Também temos que mudar o que Tocqueville chamava de "hábitos da mente" e que McCloskey chama de "conversa ética", ou "hábito dos lábios". Antes de haver a revolução industrial, houve a revolução retórica. As pessoas pararam de menosprezar o comércioe o empreendedorismo e passaram a admirar e exercitar as virtudes burguesas.
A conversa ética do nosso país precisa mudar. Se jogarmos os pobres contra o capitalismo, como vamos esperar que eles tenham um padrão de consumo capitalista? Afinal, o que querem aqueles que dizem aos pobres que o dinheiro é a raiz de todo o mal? Que os pobres fiquem longe do dinheiro, ou seja, permaneçam pobres? Ou estão ensinando que só se deixa de ser pobre pela prática do mal?
Professores de universidades públicas gostam de ensinar aos filhos dos ricos o pensamento proletário. Melhor fazem os professores de cursos técnicos quando ensinam aos filhos dos pobres as práticas burguesas, com lições em empreendedorismo e produtividade.

Diogo Costa é presidente do Instituto Ordem Livre e professor do curso de Relações Internacionais do Ibmec-MG. Trabalhou com pesquisa em políticas públicas para o Cato Institute e para a Atlas Economic Research Foundation em Washington DC. Seus artigos já apareceram em publicações diversas, como O Globo, Folha de S. Paulo e Estado de S. Paulo. Diogo é Bacharel em Direito pela Universidade Católica de Petrópolis e Mestre em Ciência Política pela Columbia University de Nova York.  Seu blog: http://www.capitalismoparaospobres.com

O que realmente é a "sociedade"

O que realmente é a "sociedade"

456-sociedade.jpgO ser humano nasce em um ambiente socialmente organizado. Somente nesse sentido é que podemos aceitar quando se diz que a sociedade — lógica e historicamente — antecede o indivíduo. Com qualquer outro significado, este dito torna-se sem sentido ou absurdo. O indivíduo vive e age em sociedade. Mas a sociedade não é mais do que essa combinação de esforços individuais.
A sociedade em si não existe, a não ser por meio das ações dos indivíduos. É uma ilusão imaginá-la fora do âmbito das ações individuais. Falar de uma existência autônoma e independente da sociedade, de sua vida, sua alma e suas ações, é uma metáfora que pode facilmente conduzir a erros grosseiros.
É inútil perguntar se é a sociedade ou o indivíduo o que deve ser considerado como fim supremo, e se os interesses da sociedade devem ser subordinados aos do indivíduo ou vice-versa.  Ação é sempre ação de indivíduos. O elemento social ou relativo à sociedade é a orientação específica das ações individuais. A categoriafim só tem sentido quando referida à ação.
A teologia e a metafísica da história podem discutir os fins da sociedade e os desígnios que Deus pretende realizar no que concerne à sociedade, da mesma maneira que discutem a razão de ser de todas as outras partes do universo. Para a ciência, que é inseparável da razão — instrumento evidentemente inadequado para tratar de problemas desse tipo —, seria inútil envolver-se em especulações desta natureza.
Sociedade é ação concertada, cooperação.
A sociedade é a consequência do comportamento propositado e consciente. Isso não significa que os indivíduos tenham firmado contratos por meio dos quais teria sido formada a sociedade.  As ações que deram origem à cooperação social, e que diariamente se renovam, visavam apenas à cooperação e à ajuda mútua, a fim de atingir objetivos específicos e individuais.  Esse complexo de relações mútuas criadas por tais ações concertadas é o que se denomina sociedade.  Sociedade é divisão de trabalho e combinação de esforços.  Por meio da colaboração e da divisão do trabalho, o homem substitui uma existência isolada — ainda que apenas imaginável — pela existência conjunta. Por ser um animal que age, o homem torna-se um animal social.
No quadro da cooperação social podem emergir, entre os membros da sociedade, sentimentos de simpatia e amizade e uma sensação de comunidade. Esses sentimentos são a fonte, para o homem, das mais agradáveis e sublimes experiências. Elevam a espécie animal homem às alturas de uma existência realmente humana; são o mais precioso adorno da vida.  Entretanto, esses sentimentos são fruto da cooperação social e só vicejam no seu quadro; não precederam o estabelecimento de relações sociais e não são as sementes de onde estas germinam.
Os fatos fundamentais que fizeram existir a cooperação, a sociedade e a civilização, e que transformaram o animal homem em um ser humano, é o fato de que o trabalho efetuado valendo-se da divisão do trabalho é mais produtivo que o trabalho solitário, e o fato de que a razão humana é capaz de perceber esta verdade.  Não fosse por isso, os homens permaneceriam sempre inimigos mortais uns dos outros, rivais irreconciliáveis nos seus esforços para assegurar uma parte dos escassos recursos que a natureza fornece como meio de subsistência. Cada homem seria forçado a ver todos os outros como seus inimigos; seu intenso desejo de satisfazer seus próprios apetites o conduziria a um conflito implacável com seus vizinhos.  Nenhum sentimento de simpatia poderia florescer em tais condições.
Alguns sociólogos têm afirmado que o fato subjetivo original e elementar na sociedade é uma "consciência da espécie".  Outros sustentam que não haveria sistemas sociais se não houvesse um "senso de comunidade ou de propriedade comum". Podemos concordar, desde que estes termos um pouco vagos e ambíguos sejam corretamente interpretados. Podemos chamar de consciência da espécie, senso de comunidade ou senso de propriedade comum, o reconhecimento do fato de que todos os outros seres humanos são virtuais colaboradores na luta pela sobrevivência, pois são capazes de reconhecer os benefícios mútuos da cooperação, ao passo que os animais não têm essa faculdade.
Entretanto, não devemos esquecer que são os dois fatos essenciais acima mencionados que fazem existir tal consciência ou tal senso de existência.  Em um mundo hipotético, no qual a divisão do trabalho não aumentasse a produtividade, não haveria sociedade. Não haveria qualquer sentimento de benevolência e de boa vontade.
O princípio da divisão do trabalho é um dos grandes princípios básicos da transformação cósmica e da mudança evolucionária. Os biologistas tinham razão em tomar emprestado da filosofia social o conceito de divisão do trabalho e em adaptá-lo a seu campo de investigação.
Existe divisão do trabalho entre as várias partes de qualquer organismo vivo. Mais ainda: existem, no reino animal, colônias integradas por seres que colaboram entre si; tais entidades, formadas, por exemplo, por formigas ou abelhas, costumam ser chamadas, metaforicamente, de "sociedades animais". Mas não devemos jamais nos esquecer de que o traço característico da sociedade humana é a cooperação propositada; a sociedade é fruto da ação humana, isto é, apresenta um esforço consciente para a realização de fins.
Nenhum elemento desse gênero está presente, ao que se saiba, nos processos que resultaram no surgimento dos sistemas estruturais e funcionais de plantas e de corpos animais ou no funcionamento das sociedades de formigas, abelhas e vespas. A sociedade humana é um fenômeno intelectual e espiritual.  É a consequência da utilização deliberada de uma lei universal que rege a evolução cósmica: a maior produtividade gerada pela divisão do trabalho.
Como em todos os casos de ação, o reconhecimento das leis da natureza é colocado a serviço dos esforços do homem desejoso de melhorar suas condições de vida.
A cooperação humana
A cooperação humana é diferente das atividades que ocorreram sob as condições pré-humanas no reino animal e daquelas que ocorriam entre pessoas ou grupos isolados durante as eras primitivas.  A faculdade humana específica que distingue o homem do animal é a cooperação.  Os homens cooperam.  Isso significa que, em suas atividades, eles preveem que as atividades incorridas por outras pessoas irão produzir certas coisas que possibilitarão os resultados que eles objetivam com seu próprio trabalho.
O mercado é uma situação, ou um conjunto de situações, em que eu dou algo para você a fim de receber em troca algo de você.  Um ditado em latim, há mais de 2.000 anos, já apresentava a melhor descrição do mercado: do ut des — dou algo para que assim você também dê.  Eu contribuo com algo de modo que você contribua com algo mais.  Com base nisso desenvolveu-se a sociedade humana, o mercado, a cooperação pacífica entre os indivíduos.  E cooperação social significa divisão do trabalho.
Os vários membros, os vários indivíduos de uma sociedade não vivem suas próprias vidas sem qualquer ligação ou conexão com outros indivíduos.  Graças à divisão do trabalho, estamos constantemente associados a terceiros: trabalhando para eles e recebendo e consumindo o que eles produziram para nós.  Como resultado, temos uma economia baseada nas trocas e que consiste totalmente na cooperação entre vários indivíduos.  Todo mundo produz, não apenas para si próprio, mas para outras pessoas também, na expectativa de que essas outras pessoas irão produzir para ele.  Esse sistema requer atos de troca.
A cooperação pacífica, as conquistas pacíficas dos homens, são todas efetuadas e realizadas no mercado. Cooperação necessariamente significa que as pessoas estão trocando serviços e bens, sendo estes últimos os produtos dos serviços.  São essas trocas que criam o mercado.  O mercado representa precisamente a liberdade de as pessoas produzirem, consumirem e determinarem o que deve ser produzido, em qual quantidade, com qual qualidade e para quem esses produtos devem ir.  Um sistema livre sem um mercado é impossível.  O mercado é a representação prática desse sistema livre.
Tem-se aquela ideia de que as instituições criadas pelo homem são (1) o mercado, que é a livre troca entre indivíduos, e (2) o governo, uma instituição que, na mente de muitas pessoas, é algo superior ao mercado e poderia existir na ausência do mercado.  A verdade é que o governo — que representa necessariamente o recurso à violência, pois não passa de um poder policial com seu correspondente aparato de compulsão e coerção — não pode produzir nada.  Tudo que é produzido de bom é produzido somente pelas atividades desempenhadas por indivíduos, e é disponibilizado no mercado com o intuito de se receber algo benéfico em troca.
É importante lembrar que tudo o que é feito, tudo que o homem já fez, tudo que a sociedade já fez, é o resultado da cooperação e dos acordos voluntários.  A cooperação social entre os homens — e isso significa o mercado — é o que cria a civilização.  E foi essa cooperação que permitiu todas as melhorias ocorridas nas condições humanas, melhorias essas que podemos usufruir hoje.

Ludwig von Mises  foi o reconhecido líder da Escola Austríaca de pensamento econômico, um prodigioso originador na teoria econômica e um autor prolífico.  Os escritos e palestras de Mises abarcavam teoria econômica, história, epistemologia, governo e filosofia política.  Suas contribuições à teoria econômica incluem elucidações importantes sobre a teoria quantitativa de moeda, a teoria dos ciclos econômicos, a integração da teoria monetária à teoria econômica geral, e uma demonstração de que o socialismo necessariamente é insustentável, pois é incapaz de resolver o problema do cálculo econômico.  Mises foi o primeiro estudioso a reconhecer que a economia faz parte de uma ciência maior dentro da ação humana, uma ciência que Mises chamou de "praxeologia".

O Brasil na armadilha da renda média

O Brasil na armadilha da renda média

size_590_morumbi.jpgIntrodução
A armadilha da renda média ocorre quando um país emergente entra em um período de estagnação após ele ter completado a sua "decolagem" e ter superado a armadilha da pobreza e a armadilha malthusiana.  Tendo chegado ao nível da renda média, a trajetória do crescimento econômico efetuada durante a decolagem deixa de ser sustentável.  
Durante a fase da decolagem, a mão-de-obra barata alimenta uma rápida expansão econômica em decorrência da migração que ocorre das áreas rurais para as cidades industriais. Nesta fase, a economia cresce pela migração, pela aglomeração e pela acumulação de capital.  As taxas de crescimento econômico são altas porque a mão-de-obra é abundante e barata, e a acumulação de capital ainda gera altos retornos.
As taxas de crescimento começam cair quando a mão-de-obra se torna menos abundante e o retorno marginal do capital se torna marginalmente menor.
O Brasil representa um caso em que a entrada na armadilha da renda média resultou em políticas erradas que pioraram a situação.
O conceito da armadilha da renda média
Como dito, o termo "armadilha da renda média" denota a situação de uma economia emergente quando ela entra em um nível de renda média e não mais sai dele.  Atualmente, o Banco Mundial define a faixa entre US$1.036 e US$4.085 per capita como "baixa renda média" e entre US$4.086 e US$12.615 como "alta renda média".
De acordo com o tipo do cálculo do Banco Mundial, o Brasil chega bem perto do limite da categoria dos países de alta renda, mas ainda está na faixa da renda média alta.
Classificação
Renda nacional per capita em US$
Países representativos selecionados
Alta renda
> 12.616
Suíça    (82.730)
Renda média alta
4.086-12.615
Brasil   (11.630)
Renda média baixa
1.036-4.085
Paraguai (3.290)
Renda baixa
< 1.035
Congo       (200)
Tabela 1: Faixas da renda segundo classificação do Banco Mundial — Fonte: Banco Mundial
Estar preso na faixa da renda média significa que o país é incapaz de prosseguir o seu caminho de crescimento, aquele que ele vinha mantendo durante a fase da decolagem. Em vez de manter um crescimento moderado, o país cai em uma fase de crescimento fraco, como mostra a figura abaixo.
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Figura 1 - A linha verde mostra a trajetória de um crescimento sustentado; a linha vermelha sólida mostra a entrada na armadilha da renda média; e a linha vermelhada tracejada mostra uma trajetória de crescimento insustentável.
A armadilha da renda média significa que o país não consegue alterar sua estratégia de crescimento, saindo de um modelo acumulativo e imitativo e indo para um modelo de economia competitiva, empresarial e inovadora.
Imitar as economias pioneiras gera altos retornos somente quando a distância entre a economia emergente e os países avançados é grande.  Quando a distância diminui, a imitação torna-se mais difícil e mais arriscada. O futuro é desconhecido e exige experimentação para se descobrir qual tecnologia irá funcionar.  Esta trajetória envolve um constante processo de tentativa e erro, o qual requer habilidades muito mais sofisticadas do que a mera imitação de tecnologias maduras.
Quanto mais a economia emergente avança e se aproxima do grupo das economias pioneiras, mais este país em desenvolvimento deve se engajar em uma busca ativa pela próxima tecnologia.  No entanto, dado que os governos dos países emergentes sempre tendem a manter suas intervenções sobre a economia, a transição para uma economia competitiva e moderna encontra uma inflexível resistência da parte do poderoso aparelho de funcionários das empresas estatais e da classe política.  Muitas vezes, a decolagem de um país em desenvolvimento vem junto com uma ampliação da atividade estatal.  O típico efeito colateral deste crescimento é um agigantamento do setor público, o qual acaba funcionando como uma barreira quando o país alcança a faixa da renda média, impedindo-o de entrar na faixa da alta renda.
Preso na armadilha
Os países emergentes caem na armadilha de renda média porque, em vez de abraçar o capitalismo inovador, acabam ficando presos a um sistema econômico estatista e arcaico.  Não é raro que a velha elite passe a explorar o medo da população em relação à "tempestade perene da destruição criativa" (Schumpeter) do capitalismo dinâmico.
Porém, ao renunciar à destruição criativa, esta economia em desenvolvimento também acaba por rechaçar a prosperidade, e passa alimentar a ilusão de que é possível enriquecer dentro de um sistema estático.  Na realidade, os países em desenvolvimento que permanecem com um capitalismo de estado não apenas não ganham prosperidade, como também perdem a estabilidade quando inevitavelmente descambam no círculo vicioso do declínio econômico, o que faz com que o sistema político comece a oscilar entre o autoritarismo e o populismo.  Vide Argentina e Venezuela, por exemplo.
O desenvolvimento econômico é uma corrida de maratona com obstáculos.  O primeiro obstáculo consiste em saber superar a barreira que surge quando a baixa renda passa a limitar a poupança e os investimentos, e consequentemente a acumulação de capital.  O segundo grande obstáculo é a armadilha malthusiana, que ocorre quando a população aumenta, mas a renda per capita não sobe.  Foi a Revolução Industrial quem quebrou este padrão da estagnação.  Parte do mundo saiu da armadilha da pobreza.  Com o avanço da Revolução Industrial a taxa de reprodução diminuiu ao passo que a produtividade econômica aumentou.  A armadilha malthusiana desapareceu com a transição demográfica e pavimentou o caminho para um grande aumento dos níveis de renda.
Um pequeno grupo de países pioneiros liderou este permanente processo de inovação.  Sucessivas revoluções industriais durante os últimos dois séculos levaram a ganhos cada vez maiores de produtividade.
No entanto, enquanto um grupo de economias prosperou, muitas outras ficaram para trás.  Mesmo hoje, ainda há uma multidão de países presos na armadilha da pobreza e na armadilha malthusiana.  Um outro grupo de países que conseguiu obter a decolagem e superar a armadilha malthusiana — como o Brasil — se encontra preso na armadilha de renda média.  Apenas alguns países conseguiram realizar a façanha de alcançar os pioneiros e se tornar membros do clube dos países de alta renda.
O caso do Brasil
Quando o crescimento econômico baseado na acumulação de capital e na imitação tecnológica terminou, o Brasil ainda não havia adquirido a capacidade de competir com os países de alta renda em termos de tecnologia, produtividade e habilidades.  Nesta fase, o Brasil não mudou a sua estratégia de crescimento.  Em vez de promover uma economia empreendedorial de inovação, o Brasil implantou uma política de forte protecionismo. Como consequência, o país experimentou fases de crescimento artificial que se degeneraram em recessões e altas taxas de inflação.  Na maioria das vezes, o Brasil pagou o preço de seu crescimento artificial com longos períodos de estagflação.
Após um crescimento moderado na década de 1990 — consequência inevitável de seus fortes e necessários ajustes econômicos —, e um crescimento mais robusto na década de 2000, o Brasil pós-2010 adentrou uma nova fase de debilidade econômica.  Em vez de pular para frente, a economia brasileira recuou.  Desde o começo dos anos 1990, a média da taxa de crescimento econômico do Brasil é de apenas 3%, o que significa que o país já se encontra novamente, e há um bom tempo, em uma armadilha da renda média.  
Para conseguir alcançar as economias avançadas, o Brasil precisaria apresentar uma taxa média de crescimento do PIB per capita de 4,2% durante os próximos 50 anos.  Só assim será possível alcançar o nível médio dos países de alta renda da OCDE.  Igualmente, seria necessária uma taxa de crescimento econômico per capita de 4,7% para se chegar no nível da renda dos Estados Unidos.
Entre as economias emergentes, apenas a China consegue apresentar uma taxa de crescimento per capita suficiente para alcançar os níveis dos países ricos.  O Brasil, com uma taxa de 1% durante o período de 1980 até 2011, está bem fora desta expectativa.  A China, no entanto, ainda está na fase de decolagem, e dificilmente conseguirá manter suas atuais altas taxas de crescimento econômico.  Não se deve excluir a possibilidade de que a China também caia na armadilha da renda média, como já ocorreu com outros países emergentes na Ásia.  Desta forma, no futuro, ao ter sua taxa de crescimento econômico reduzida, a China inevitavelmente irá reduzir sua contribuição para o crescimento econômico do Brasil.
Para sair da armadilha da renda média, o Brasil teria de fazer uma grande transformação em sua economia, deixando de ser uma economia acumulativa e imitadora e se tornando uma economia inovadora.  Para sair da armadilha da renda média, o Brasil teria de fazer uma mudança fundamental em sua estratégia econômica.  Em vez de uma transformação de cima para baixo, a economia precisa florescer de baixo para cima.  Esta mudança requer a liberalização dos entraves regulatórios e burocráticos que hoje incidem sobre o setor empreendedor.  Redução da carga tributária e eliminação do pesadelo burocrático são imprescindíveis.  O setor estatal deve abandonar seu intervencionismo ad hoc, o qual cria incertezas, em prol de uma política que se limite a oferecer segurança jurídica e institucional, e que facilite o empreendedorismo.
Porém, não apenas hoje, mas já por décadas, o Brasil pratica uma política macroeconômica errada para lidar com a armadilha da renda média.  Em vez de liberar a economia, o estado cria cada vez mais controles e regulamentações.  Em vez de promover uma economia empreendedorial, o Brasil se dedica a fortalecer ainda mais seu sistema de capitalismo de estado.  Em vez de abandonar as políticas macroeconômicas de cunho dirigista, o país intensifica seu intervencionismo já extremado.
Adotar políticas fiscais e monetárias expansionistas na tentativa de sair da armadilha da renda média apenas agrava a situação.  Falando em termos de teoria do crescimento econômico, ambas estas políticas levam a economia a um desequilíbrio entre poupança, investimentos, gastos e taxa de câmbio.  Uma atividade econômica que exceda este ponto de "crescimento equilibrado" é insustentável.  Sem o progresso tecnológico para compensar este hiato, a economia recua.  Ainda pior será a situação se o governo apresentar déficits orçamentais, os quais geram uma redução da taxa nacional de poupança.  Neste caso, em consequência de um crescimento artificial gerado pelos estímulos monetários e fiscais, a economia cairá abaixo de seu nível anterior de renda.
O grande erro desta política econômica está em confundir as consequências do crescimento econômico com suas causas.  A política macroeconômica que o Brasil adotou para lidar com a armadilha da renda média sofre do mesmo erro que Mises já havia denunciado ao recorrer à alegoria do mestre de obras que tenta construir uma casa em um tamanho que excede a real quantidade de insumos ao seu dispor.  Este erro de cálculo não apenas faz com que a construção da casa não seja concluída, como também faz com que a casa nem sequer possa ficar de um tamanho menor do que aquele originalmente projetado.  
Conclusão
Países de renda média, após superarem a armadilha da pobreza e a armadilha malthusiana, enfrentam o esgotamento da mão-de-obra barata.  Um país emergente cai na armadilha da renda média quando, simultaneamente, perde sua capacidade de competir com os países de baixa renda em termos de preços e, ao mesmo tempo, ainda não possui a capacidade de competir com os países de alta renda em termos de tecnologia. A continuidade da ingerência do estado na economia faz com que estes países caiam no regresso.
Tentar sair da armadilha recorrendo a políticas de estímulo monetário e fiscal não apenas não funciona, como na realidade pavimenta o caminho para o endividamento público, e gera ainda mais debilidade econômica no longo prazo.  O caso do Brasil e seus famosos "vôos de galinha" mostra como o país sofre de recorrentes ciclos de expansão econômica artificial seguida de contração.
Para continuar a crescer, o país tem de ter progresso tecnológico.  No entanto, se o país recorre a déficits orçamentários e a inflações monetárias, a tragédia econômica está programada.  Para obter maiores níveis de produtividade, o Brasil teria de abandonar o atual sistema de capitalismo de estado, o qual foi escolhido como o caminho para a decolagem.  Para sair da armadilha da renda média, o Brasil tem de abrir sua economia para o capitalismo empreendedorial da destruição criativa. 

Antony Mueller é doutor pela Universidade de Erlangen-Nuremberg, Alemanha (FAU) e, desde 2008, professor de economia na Universidade Federal de Sergipe (UFS), onde ele atua também no Centro de Economia Aplicada. Antony Mueller é fundador do The Continental Economics Institute (CEI) e mantém em português os blogs Economia Nova e Sociologia econômica

O uso do conhecimento no desenvolvimento urbano

O uso do conhecimento no desenvolvimento urbano

urbano1.jpgHayek e outros economistas austríacos demonstraram que, se os meios de produção se tornarem propriedade do governo, o caminho para a pobreza será inevitável.  Não obstante essa constatação, o planejamento centralizado ainda hoje permanece sendo a norma em uma área crucial: as cidades.
Tudo começou nos EUA, ainda na década de 1920, quando a Suprema Corte, no caso Euclid vs Ambler, estabeleceu o precedente de que as cidades poderiam designar porções de seus territórios para tipos específicos de projetos de desenvolvimento urbano.  Desde então, em todas as grandes cidades do mundo, as regulamentações sobre o uso do território passaram a ser constantemente expandidas até chegaram ao atual ponto em que especificam de tudo, desde limites de altura até número de vagas de garagem, passando por diretrizes de design.  
Atualmente, urbanistas e políticos determinam as regras de uso do terreno e os tipos de exploração permitidos dentro de suas jurisdições.  Em última instância, eles possuem o poder de veto sobre todos os grandes projetos nessas cidades. Se Hayek estivesse vivo, ele certamente concentraria seu trabalho na questão do uso do conhecimento no planejamento urbano.
Nos Estados Unidos, no início do século XX, planejadores urbanos progressistas começaram a defender restrições na altura e na densidade das construções com o objetivo de promover luz e ar.  Naquela época, esses objetivos eram considerados importantes à saúde pública.  Rapidamente, os proprietários de imóveis e as autoridades perceberam que essas leis de zoneamento poderiam ser utilizadas para proteger o valor dos imóveis, uma vez que elas impediam a construção de habitações de alta densidade e de baixo custo.
Hoje, esta política é mundial.  Proprietários e incorporadoras apóiam uma ampla gama de políticas destinadas a limitar a oferta habitacional e, com isso, aumentar o valor de seus ativos.  Essas políticas incluem tamanho mínimo de lotes, limites de densidade e vagas de garagem.  Embora haja uma vasta literatura econômica que descreva perfeitamente os efeitos negativos das regulamentações de zoneamento, o fato é que tais políticas permanecem quase onipresentes no mundo ocidental.  Essa sua onipresença é perfeitamente explicada pela Teoria da Escolha Pública: os poderosos incentivos que levam os legisladores a favorecer doadores de campanha e eleitores específicos, e a prejudicar todas as outras pessoas que não têm conexões políticas e que, por causa destas regulamentações que restringem o uso dos terrenos, não têm como se mudar para bairros ou municípios que lhes sejam mais cômodos ou atraentes.
Embora o panorama institucional favoreça a continuidade destas restritivas leis de zoneamento, a imposição de regulamentações sobre o uso do espaço não é a maneira adequada de moldar o desenho das cidades.  Desenvolvimento urbano é um processo de coleta de informações, e essas informações dependem de um fluxo ininterrupto e crescente de conhecimentos e de dados que estão em posse de todos os empreendedores da cidade.  É exatamente igual ao que ocorre em todos os outros processos de mercado.
Como descreveu Hayek em seu artigo "O uso do conhecimento na sociedade", mesmo que os planejadores urbanos fossem imbuídos da melhor das intenções, eles ainda assim seriam incapazes de obter todas as informações que os orientariam a direcionar recursos e a utilizar a terra da melhor maneira possível, assim como o sistema de preços faz em um livre mercado.
Diferentemente de incorporadores do setor privado, urbanistas não têm de se preocupar com o sistema de lucros e prejuízos.  Isso faz com que eles não se guiem pela única ferramenta capaz de direcionar, da melhor maneira possível, a alocação de recursos em uma cidade ao longo do tempo.  Israel Kirzner explicou claramente a importância do lucro e do prejuízo no processo de mercado:
A única diferença entre um dia de negócios e o dia seguinte é que os planos feitos para os negócios do segundo dia são baseados nas estimativas de preços aprendidas por meio das experiências de mercado obtidas no dia anterior.  
Sendo assim, tendo em mente que a experiência de mercado continuamente espalha cada vez mais informações e repetidamente indica novas oportunidades para empreendimentos lucrativos, quaisquer agitações que porventura venham a ocorrer no mercado serão causadas por bruscas mudanças de planos feitos pelos seus vários participantes.  
Quando, a este já complicado quadro, adiciona-se um determinado padrão de imprevistas alterações nas preferências individuais e na alocação de mercadorias, tudo se torna muito mais complexo.
Tendo acesso a essa poderosa ferramenta que é o sistema de lucros e prejuízos, proprietários, incorporadores e consumidores são capazes de melhorar a alocação dos terrenos de uma cidade ao longo do tempo.  A cada dia haverá novas oportunidades de compra, venda e reconstrução.  Esse processo gera uma cidade que irá incessantemente atender à demanda de seus consumidores, pois é justamente no atendimento da demanda que empreendedores veem oportunidades de lucro.
Pelo fato de esta ferramenta estar disponível somente àqueles que de fato atuam no mercado e que se guiam pelo sistema de preços, planejadores urbanos nunca serão capazes de implementar um desenvolvimento urbano tão bem sucedido quanto o de um livre mercado.  A ausência de uma resposta fornecida pelo sistema de lucros e prejuízos e a natureza dispersa do conhecimento — que é o que gera oportunidades de lucro — são as razões pelas quais uma alocação eficiente de recursos é impossível sob um planejamento centralizado.
A teórica urbanista Jane Jacobs identificou, para a questão do planejamento urbano, o mesmo problema que Hayek havia identificado para a questão do planejamento econômico.  Em seu clássico de 1961, The Death and Life of Great American Cities, Jacobs utilizou uma linguagem similar à de Hayek, explicando "o conhecimento de situações particulares de tempo e espaço" (Hayek) como sendo um "conhecimento local" (Jacobs).  Por exemplo, os moradores de um determinado bairro podem ter ótimas ideias sobre como utilizar melhor e mais eficientemente todo o espaço disponível ao seu redor, mas os urbanistas não conseguem ter acesso a essas informações dispersas porque até mesmo os urbanistas mais bem intencionados não são oniscientes.
As ideias de Jacobs influenciaram profundamente os planejadores urbanos, particularmente aqueles dos movimentos "Smart Growth" (que querem concentrar tudo no menor espaço possível para evitar dispersões) e "Novo Urbanismo".  Eles absorveram as críticas de Jacobs às formas tradicionais de regulamentação do zoneamento, que limitam a densidade urbana e impedem vizinhanças mistas (comercial e residencial).  Esse zoneamento tradicional resultou em cidades em que caminhadas são impossível e levou ao colapso do emergente "balé da calçada" observado por ela em Greenwich Village, em Nova York.
Contudo, naqueles ramos do planejamento urbano que absorveram as observações de Jacobs sobre os benefícios de bairros densos e de uso misto, os urbanistas normalmente são incapazes de perceber que o sucesso de uma ordem natural nas cidades acontece quando proprietários de imóveis, donos de comércio e residentes agem livremente de acordo com seu próprio interesse.  Em vez disso, os urbanistas progressistas dos dias de hoje se esforçam para impor um tipo peculiar de desenvolvimento urbano recorrendo ao uso de ferramentas legislativas como fronteiras ao crescimento urbano, limites máximos de vagas de garagem e gastos em transporte público.
Os urbanistas adeptos do "Smart Growth" e do "Novo Urbanismo" tentam corrigir as falhas dos governos passados recorrendo a novas regulamentações e a novos programas governamentais.  Eles não entendem que o segredo para o surgimento de ordens naturais nas cidades é a desregulamentação das leis de zoneamento, permitindo que os proprietários dos terrenos construam o que for necessário para atender às demandas dos consumidores. Em "Direito, Legislação e Liberdade", Hayek demonstra a importância de se permitir que os indivíduos possam recorrer ao seu próprio conhecimento para tomar decisões:
Uma condição de liberdade em que todos possam usar seu conhecimento com vistas a seus propósitos, limitados apenas por regras universais de conduta, tenderá a propiciar-lhes as melhores condições para a consecução de seus objetivos; e um sistema assim é possível de ser alcançado e mantido somente se toda autoridade — nela compreendida a da maioria do povo — for limitada, no exercício de seu poder de coerção, por princípios gerais com os quais a própria comunidade tenha se comprometido.
Ao tentar apenas projetar cidades que se encaixam em suas visões, urbanistas de todas as ideologias violam esse princípio de liberdade e, ao fazê-lo, impedem que os indivíduos se aproveitem de oportunidades mutuamente benéficas de interação para melhorarem o desenho da cidade.
Se Hayek fosse vivo hoje, ele traçaria um paralelo entre mercados e cidades como sendo processos dinâmicos, demonstrando os erros que os planejadores urbanos cometem sempre que tentam implantar a visão urbanística de Jacobs por meio de regulamentações e decretos.  Mises, Hayek e Kirzner mostram de forma convincente que economias não são arranjos estáticos ou mecânicos, e que o crescimento econômico não pode ser conduzido centralizadamente de cima para baixo.  
Pelo mesmo raciocínio, cidades não são máquinas; elas são mercados dinâmicos que fornecem o componente espacial para a atividade empreendedora. Tentar comandar de cima para baixo o crescimento urbano é algo que restringe a capacidade de uma cidade de facilitar o comércio e o empreendedorismo, e impede que seus habitantes aprendam corretamente o funcionamento do processo de mercado.
Hoje, questões como política monetária, orçamento do governo e desenvolvimento da economia nacional recebem mais atenção daqueles que estudam o livre mercado do que as regulamentações sobre o uso da terra. Contudo, é difícil exagerar o impacto que as regulamentações sobre uso da terra têm na vida dos indivíduos e no crescimento da produtividade.  Pesquisadores do Santa Fe Institute demonstraram que o espaço urbano está relacionado tanto com o crescimento econômico quanto com o uso eficiente da infra-estrutura pública e privada. Similarmente, a extensa gama de pesquisa do economista Edward Glaeser, de Harvard, mostra que a densidade urbana é vital para o desenvolvimento econômico e que, sem liberdade para se construir, o custo dos imóveis aumenta e acaba afetando negativamente as oportunidades para o crescimento da produtividade.
Em um arranjo de livre mercado, as cidades se moveriam continuamente em direção a um ponto de equilíbrio no qual elas se tornam mais capacitadas para satisfazer as necessidades de seus residentes.  No entanto, no mundo real, as regulamentações sobre o uso da terra interrompem esse processo.  Dado que são as cidades que proporcionam o componente espacial da aprendizagem empreendedora, impedir que elas se aperfeiçoem ao longo do tempo é algo que gera um alto custo para o crescimento econômico.  Assim como os mercados, cidades de sucesso se crescem e prosperam, mas não podem ser fabricadas.  Hoje, Hayek estaria escrevendo sobre a importância do processo de desenvolvimento urbano que fornece o espaço onde o empreendedorismo ocorre.

Emily Washington é pesquisadora do Mercatus Center, da George Mason University. Seus artigos já foram publicados por jornais e websites USA Today, The Christian Science Monitor, Economic Affairs, The Daily Caller. Ela contribui para os blogsNeighborhood Effects e Market Urbanism.