quarta-feira, 4 de dezembro de 2013

PIB no trimestre perde para países em crise; em um ano, bate EUA e México

PIB no trimestre perde para países em crise; em um ano, bate EUA e México 

Sílvio Guedes Crespo

Marcha lenta: PIB brasileiro teve variação pior do que o de Itália, Portugal e Espanha
Marcha lenta: PIB brasileiro caiu mais que o da Itália e o da França no 3º trimestre
Depois de registrar um crescimento surpreendente no segundo trimestre, a economia brasileira teve, de julho a setembro, um desempenho pior do que o de diversos países que estão mergulhados em crise desde 2009, como Portugal, Espanha, Itália e França.
PIB (Produto Interno Bruto) do Brasil no terceiro trimestre foi 0,5% menor do que no segundo, de acordo com dados do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística).
Na comparação com o terceiro trimestre do ano passado, a economia brasileira aumentou 2,2%, superando o desempenho de importantes países ricos e emergentes, como os Estados Unidos e o México, mas mantendo-se abaixo das nações asiáticas de crescimento rápido, como a China e a Coreia do Sul.
pib brasil paises terceiro trimestre ante segundo achados economicos 1
pib paises terceiro trimestre 2013 2012 achados economicos uol
Os dados citados se referem à variação percentual do PIB. Se considerássemos a variação em dinheiro, seja na moeda local ou em dólares, o ranking seria bem diferente. Para os EUA, que têm uma economia de US$ 15 trilhões anuais, uma pequena variação no PIB já significaria muitos bilhões de dólares, o que o tornaria incomparável com a maioria dos países.
Opinião
Os números mostram que a economia brasileira não conseguiu manter o mesmo ritmo de produção verificado no segundo trimestre, mas a piora não foi tanta a ponto de voltarmos ao fraco ritmo verificado no ao passado.
A queda de 0,5% do PIB em relação ao segundo trimestre confirma que a forte produção no período de abril a junho foi um caso pontual, motivado por uma safra recorde.
No terceiro trimestre, a leve recuperação da indústria e dos serviços (0,1% de crescimento em cada) não compensou a forte queda da agropecuária (-3,5%).
Não há sinais, entre os números mais recentes, de que no último trimestre do ano recuperaremos o ritmo de alta do segundo trimestre. Aquele período foi, muito provavelmente, o melhor de 2013. (Curiosamente, foi logo naquela época que as manifestações se espalharam pelas ruas do país.)
A retomada econômica, do Brasil, portanto, perdeu ritmo. O encolhimento do PIB do segundo para o terceiro trimestre nos coloca no mesmo patamar de países que já têm uma renda per capita alta e uma rede de proteção social muito melhor do que a nossa, como a França e a Itália. Que esses países, já ricos e atolados em dívidas, não cresçam, é de se esperar. No caso do Brasil, uma nação ainda chamada de “emergente”, deveria estar avançado a um ritmo maior, a exemplo dos latino-americanos Peru e Chile, ou dos asiáticos Coreia do Sul e Indonésia.
Não podemos nos esquecer de que ainda estamos crescendo mais do que o México, a segunda maior economia da América Latina e um concorrente direto do Brasil na busca por capital estrangeiro. Mesmo assim, há sinais de que temos espaço para melhorar. O diagnóstico econômico está dado: o país precisa recuperar a confiança do mercado internacional, respeitando, sem subterfúgios, as metas de inflação e de superávit primário (dinheiro que o país reserva para pagar juros da dívida). O problema é criar as condições políticas para que isso ocorra, considerando que teremos eleições em menos de 12 meses.
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Em quanto tempo o PIB per capita do Brasil se igualaria ao de países ricos11 fotos

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Austrália: 124 anos. O PIB per capita do Brasil foi de US$ 11.875 em 2012 e tem crescido a uma taxa média de 4,5% ao ano. O da Austrália é de US$ 42.640 e se expande a uma taxa alta de 3,4% ao ano ? um ritmo muito forte em comparação com outras nações ricas Blake Sell/Reuters

Indústria de máquinas cresce 10% em 12 meses, maior alta desde 2011

Indústria de máquinas cresce 10% em 12 meses, maior alta desde 2011 

Sílvio Guedes Crespo
A economia brasileira parece viver um momento de contradições. A mais conhecida talvez seja a combinação entre desemprego baixo e PIB (produto interno bruto) a passos de tartaruga.
Há, no entanto, outro dado intrigante. Enquanto a indústria brasileira sofre para crescer mísero 1% ao longo de um ano – e isso depois de já ter encolhido mais de 2% em 2012 – o setor de bens de capital (ou seja, de máquinas usadas na produção, assim como caminhões) está em forte aceleração. Nos últimos 12 meses, avançou 9,9%, melhor resultado desde maio de 2011.
O gráfico abaixo deixa isso claro.
bens de capital industria
A produção de bens de capital acumulava uma queda de mais de 10% no final do ano passado. Em janeiro, começou a reduzir essa perda. Agora em outubro, está em alta de quase 10%.
Ao mesmo tempo, a indústria em geral permanece praticamente estagnada, diferentemente do que ocorreu em períodos anteriores. No final de 2009, por exemplo, a produção de bens de capital acumulava queda de mais de 20%. Essa perda foi diminuindo e, ao contrário do que está acontecendo hoje, a indústria em geral foi se recuperando.
Se a indústria não está acompanhando a recuperação do setor de bens de capital, é possível que os empresários estejam aguardando o momento certo de retomar a produção dos bens de consumo. A hesitação dos investidores, aliás, é um dos aspectos que marcaram a economia brasileira em 2013, como reação a um cenário interno e externo incerto.

O governo não pode gerenciar empresas eficientemente

O governo não pode gerenciar empresas eficientemente
petrobras.jpgAs bem conhecidas ineficiências das operações governamentais não são meros acidentes empíricos, resultados talvez de uma falta de tradição na área.  Elas são inerentes a todas as iniciativas estatais.  E a demanda excessiva que é gerada pelos serviços 'gratuitos' ou subprecificados ofertados pelo governo é apenas uma das várias razões dessa condição.
A oferta gratuita de um bem ou serviço não apenas subsidia os seus usuários à custa dos contribuintes que não o utilizam, como também faz com que os recursos sejam alocados erroneamente, fazendo com que os bens e serviços não sejam ofertados naquelas áreas que mais necessitam deles.  O mesmo é válido, em um grau menor, sempre que o preço de um bem ou serviço está abaixo do preço de livre mercado.  No livre mercado, os consumidores podem ditar a precificação e, com isso, garantir a melhor alocação dos recursos produtivos de modo a suprirem seus desejos.  Em um empreendimento governamental, isso não pode ser feito. 
Peguemos novamente o caso de um serviço gratuito.  Como não há um sistema de preços para racionalizar as decisões — e, portanto, não há a exclusão de utilizações improdutivas —, não há como o governo, mesmo que ele queira, alocar seus serviços de modo a satisfazer as mais prementes necessidades e os mais ávidos consumidores.  Todos os compradores e todas as necessidades são artificialmente mantidos no mesmo plano.  Como resultado, as mais urgentes necessidades serão desprezadas, e o governo ver-se-á diante de insuperáveis problemas de alocação, os quais ele não pode resolver mesmo para benefício próprio
Assim, o governo será confrontado com o seguinte problema: devemos construir uma estrada no local A ou no local B?  Sem estar guiado pelo sistema de preços e pelo mecanismo de lucros e prejuízos, o governo simplesmente é incapaz de tomar uma decisão de maneira racional.  Suas decisões serão tomadas somente de acordo com os caprichos do funcionário do governo que está no comando — isto é, somente se o funcionário do governo, e não o público, for quem estiver "consumindo".  Se o governo de fato deseja fazer apenas o que é melhor para o público, ele está irremediavelmente lidando com uma tarefa impossível.
Diz-se com muita frequência que uma única empresa estatal, operando dentro da esfera de mercado privado, comprando bens e serviços deste, pode precificar seus serviços e alocar seus recursos eficientemente.  Isso, entretanto, é incorreto.  Existe uma falha incontornável que permeia todo o tipo concebível de empresa estatal e que inescapavelmente a impede de praticar uma precificação correta e de alocar eficientemente seus recursos.  Por causa desta falha, uma empresa estatal jamais pode operar "em condições de mercado", não importam quais sejam as intenções do governo.  
E qual é essa falha incontornável? 
É o fato de que o governo pode obter recursos virtualmente ilimitados por meio de seu coercivo poder de tributação.  Empresas privadas precisam obter seus fundos por meio de investidores que estão atrás de lucro e de consumidores que voluntariamente optam por consumir seus bens e serviços.  É essa alocação de fundos feita por consumidores e investidores guiados por sua presciência e preferência temporal que vai direcionar os recursos para as mais lucrativas — e, portanto, mais úteis — aplicações.  Empresas privadas podem adquirir seus fundos somente por meio de consumidores e investidores; em outras palavras, elas podem arrecadar fundos somente daquelas pessoas que valorizam e compram seus serviços, e daqueles investidores que estão dispostos a arriscar seu capital poupado investindo-o em algo que acreditam poder gerar algum lucro futuro.  Ou seja: no mercado, pagamento e serviços são coisas indissoluvelmente complementares. 
O livre mercado fornece um "mecanismo" para a alocação de fundos para consumo presente e futuro, para o direcionamento de recursos para as aplicações mais produtivas e valiosas para todas as pessoas.  O mercado, por meio de seu funcionamento natural, fornece meios para os empreendedores alocarem recursos e precificarem serviços de modo a garantir seu uso otimizado.  O governo, por outro lado, pode conseguir o tanto de dinheiro que ele quiser.  O governo não possui rédeas sobre si mesmo; ele não está sob a exigência de satisfazer o teste de lucros e prejuízos que mede a qualidade do serviço ofertado a seus consumidores, algo que, no mercado, é o que permite a uma empresa obter fundos.  
Empresas privadas — aquelas que operam em um ambiente de genuína livre concorrência, sem receber subsídios, benefícios e proteções do governo — podem adquirir seus fundos apenas de consumidores satisfeitos e de investidores guiados pelo mecanismo de lucro e prejuízo.  Já o governo pode adquirir seus fundos literalmente de acordo com seus próprios caprichos.
Uma vez que não há rédeas, deixa de haver também qualquer chance de o governo alocar recursos racionalmente.  Como pode o governo saber se deve construir a estrada A ou a estrada B, ou se deve "investir" em uma estrada ou em uma escola, ou se deve produzir mais eletricidade, ou se deve prospectar mais petróleo, ou se deve alterar seu serviço de entrega de cartas? Com efeito, como pode ele saber o quanto deve gastar em todas as suas atividades em que está envolvido?  Não há maneira racional de o governo alocar fundos ou mesmo decidir o quanto ele deve ter. 
Quando há uma escassez de professores, ou de salas de aula, ou de polícia ou de ruas, o governo e seus partidários têm apenas uma resposta: exigir mais dinheiro dos pagadores de impostos.  Se a qualidade dos serviços ofertados pelo governo cai, isso significa que as pessoas devem renunciar a seu próprio dinheiro e entregá-lo de bom grado ao governo. 
Por que essa mesma medida nunca é aventada no livre mercado?  O motivo é que, para empresas que operam sob um arranjo de livre concorrência, esse dinheiro só pode ser obtido voluntariamente e em troca de bens ou serviços de maior qualidade.  Ou seja, o dinheiro tem de ser retirado de seu presente uso em algum investimento ou consumo e essa retirada tem de ser voluntariamente concedida pelos próprios consumidores e investidores. 
Empresas que operam sob um arranjo de livre concorrência têm de se guiar pelo sistema de lucro e prejuízo, o qual indica que os mais urgentes desejos dos consumidores estão sendo atendidos.  Se uma empresa ou produto estão gerando altos lucros para seus proprietários, e esses lucros tendem a continuar, então mais dinheiro estará disponível no futuro; caso esteja ocorrendo o oposto, e a empresa esteja incorrendo em prejuízos, o dinheiro estará fluindo para fora daquele empreendimento.  O sistema de lucros e prejuízos serve como guia crítico para direcionar o fluxo de recursos produtivos.  Tal guia não existe para o governo, que não possui uma maneira racional de decidir o quanto de dinheiro ele deve gastar, seja no total ou em algum setor em específico.  Quanto mais dinheiro ele gastar, mais serviços ele pode ofertar — mas onde parar?
Defensores de empresas estatais podem contra-argumentar dizendo que o governo poderia simplesmente dizer a seus burocratas para agirem como se estivessem em uma empresa em busca de lucros e que operassem da mesma maneira que uma empresa privada.  Há dois defeitos nessa teoria.  Primeiro, é impossível brincar de empresa.  Empreender significa arriscar o próprio dinheiro em um investimento.  Burocratas e políticos não têm incentivo real em desenvolver habilidades empreendedoriais, em se ajustar de fato às demandas do consumidor.  Eles não arriscam a perda do próprio dinheiro no empreendimento. 
Segundo, fora a questão dos incentivos, mesmo os mais ávidos administradores estatais não poderiam operar como se fossem empreendedores privados.  Independente do tratamento concedido ao empreendimento após ela já ter se estabelecido, a criação da empresa é feita com dinheiro de impostos — portanto, por meio da taxação coerciva.  Essa empresa estatal já nasceu com um grave defeito "enraizado" em seus órgãos vitais.  Ademais, quaisquer gastos futuros poderão ser feitos utilizando-se de receitas tributárias, o que faz com que as decisões dos administradores estejam sujeitas aos mesmos vícios.  A facilidade de se obter dinheiro irá inevitavelmente distorcer as operações da empresa estatal.
Além disso, o estabelecimento de uma empresa estatal cria uma inevitável vantagem competitiva sobre as outras empresas privadas, pois ao menos parte de seu capital foi obtido por meio da coerção, e não dos serviços prestados.  Torna-se claro que o governo, com seu ilimitado poder de subsídio próprio, pode expulsar empresas privadas de sua área de atuação.  O investimento privado no mesmo setor em que opera uma estatal será enormemente restringido, uma vez que futuros investidores sabem que terão prejuízos por causa de seus privilegiados concorrentes governamentais. 
Ademais, considerando-se que todos os serviços concorrem entre si pelo dinheiro do consumidor, todas as empresas privadas e todos os investimentos privados serão de alguma forma afetados e obstruídos.  E quando a empresa estatal começar a operar, irá gerar temor nas outras empresas da área — ou elas perderão seus investimentos, ou elas serão confiscadas ou serão forçadas a competir com empresas subsidiadas pelo governo.  O temor tende a reprimir ainda mais os investimentos produtivos, o que gera um decréscimo no padrão de vida.
O argumento que decide a questão, e que é utilizado corretamente pelos oponentes das empresas estatais, é: se operações empresariais são tão desejáveis, por que seguir uma rota tão tortuosa?  Por que não abolir o gerenciamento estatal e entregar à iniciativa privada todas as operações?  Por que escolher o caminho mais difícil de tentar imitar o ideal (o gerenciamento privado) quando o ideal pode ser obtido diretamente?  A alegação de o governo estar buscando princípios de mercado, portanto, não faz sentido, mesmo que a empreitada porventura desse certo.
Nos casos em que o governo não pode nem sequer competir com outras empresas sob essas condições, ele pode arrogar a si próprio um monopólio compulsório, expulsando os concorrentes à força.  Isso ocorre, por exemplo, no caso dos Correios.  Quando o governo garante a si próprio um monopólio, ele pode ir para o lado oposto dos serviços gratuitos: ele pode passar a cobrar um preço de monopólio.  Cobrar um preço de monopólio — o oposto a um preço de livre mercado — distorce os recursos e cria uma escassez artificial do bem em questão.  Também gera uma qualidade de serviços extremamente baixa.  Um monopólio estatal não precisa se preocupar com a possibilidade de seus clientes recorrerem à concorrência ou com o fato de que a ineficiência possa significar o fim de suas operações.  Da mesma maneira, somente o governo pode fazer anúncios vaidosos de que vai cortar serviços para economizar.  Na iniciativa privada, só é possível economizar exitosamente melhorando a eficiência dos serviços prestados.
Uma razão adicional para a ineficiência governamental já foi mencionada: os funcionários não têm incentivos para ser eficientes.  De fato, as habilidades que eles vão desenvolver não serão habilidades econômicas voltadas para a produção, mas habilidades políticas — tais como conchavos políticos, esquemas de propina em licitações, loteamentos de cargos para apadrinhados políticos, bajulação de pessoas em altos cargos públicos e tentativas de seduzir demagogicamente o eleitorado.  Essas habilidades são muito diferentes das habilidades produtivas, e consequentemente as pessoas que ascendem ao topo na política são diferentes daquelas que obtêm êxito no mercado.
É particularmente absurdo clamar por "princípios de mercado" quando se tem uma empresa estatal funcionando como monopólio.  Periodicamente, há demandas para que os Correios sejam geridos "como uma empresa privada" e assim acabem com seus déficits, que são pagos pelo contribuinte.  Mas acabar com o déficit em uma operação governamental que é necessariamente e inerentemente ineficiente não significa que se está adotando princípios da iniciativa privada.  Para se fazer isso (acabar com déficit), os preços dos serviços teriam de ser elevados a níveis de preços monopolísticos, de modo que seja possível cobrir os custos das ineficiências do governo.  Porém, um preço de monopólio irá gerar um fardo excessivo sobre os usuários dos serviços postais, principalmente quando se sabe que o monopólio é compulsório. 
Por outro lado, já vimos que mesmo os monopolistas precisam agir de acordo com a curva de demanda dos consumidores.  Se essa demanda for suficientemente elástica, é bem possível que um preço de monopólio reduza as receitas a tal ponto que um preço maior fará com que os déficits aumentem ao invés de diminuir.  Um exemplo famoso foi o do metrô de Nova York nas décadas de 1960 e 1970: no intuito de zerar seu déficit, a administração do metrô começou a aumentar as tarifas. Resultado: o volume de passageiros caiu tão drasticamente que o déficit aumentou ainda mais. 
Empreendimentos governamentais não apenas irão obstruir e reprimir o investimento privado e o empreendedorismo no mesmo setor em que o estado atua ou em outros setores da economia, mas também irão desorganizar todo o mercado de trabalho.  Pois (a) o governo irá diminuir a produção e o padrão de vida da sociedade ao desviar para a burocracia a mão-de-obra potencialmente produtiva; (b) ao utilizar fundos confiscados, o governo será capaz de pagar aos seus burocratas um salário maior que o de mercado, o que fará com que os parasitas que buscam empregos no setor público clamem por uma expansão da improdutiva máquina burocrática; e (c) por meio dos altos salários, todos financiados via impostos, o governo pode iludir trabalhadores e sindicatos a crer que esses representam de fato os salários do setor privado, o que levará os sindicatos a exigir salários mais altos, causando desemprego desnecessário.
Ademais, as empresas estatais, que se baseiam na coerção do consumidor, dificilmente substituirão seus valores por aqueles de seus consumidores.  Logo, serviços de baixa qualidade e artificialmente padronizados — modelados de acordo com o gosto e a conveniência do governo — seguirão impávidos, em contraste com aqueles ofertados no livre mercado, onde serviços diversificados e de alta qualidade são ofertados de modo a satisfazer os gostos variados de uma multiplicidade de indivíduos.
Um cartel ou uma empresa não podem ser proprietários de todos os meios de produção de uma economia.  Pois se fossem, não poderiam calcular preços e alocar os fatores de maneira racional.  Essa é a razão por que o socialismo não foi capaz de planejar e tampouco alocar racionalmente.  Com efeito, mesmo dois ou mais estágios de produção não poderiam ser completamente integrados verticalmente no mercado, pois a total integração iria eliminar todo um segmento do mercado e estabelecer uma ilha de caos calculacional e alocacional, ilha essa que iria impossibilitar o planejamento ótimo dos lucros e a satisfação máxima dos consumidores.
No caso da simples gerência estatal, surge uma outra extensão dessa tese.  Pois cada empresa governamental introduz sua própria ilha de caos na economia; não é preciso esperar pelo socialismo para que o caos comece a reinar.  Uma empresa governamental jamais poderá determinar preços ou custos ou alocar fatores ou fundos de maneira racional e maximizadora do bem-estar.  Nenhuma empresa estatal pode ser estabelecida "em caráter de mercado" mesmo que tal desejo estivesse presente.  Logo, qualquer operação estatal cria um ponto de caos dentro da economia.  E dado que todos os mercados são interconectados na economia, cada atividade governamental desorganiza e distorce os preços, a alocação dos fatores, a razão entre consumo e investimento etc. 
Todo e qualquer empreendimento governamental não apenas diminui as utilidades sociais do consumidores — ao forçar a alocação de fundos para fins outros que não aqueles desejados pelo público —, como também diminui a utilidade de todos os indivíduos (incluindo, talvez, as utilidades do funcionários do governo), pois distorce o mercado e difunde o caos calculacional.  Quanto maior a extensão da participação do estado, mais pronunciado será esse impacto.
Além das consequências puramente econômicas, a gerência estatal cria outro tipo de impacto na sociedade: ela necessariamente substitui a harmonia do livre mercado pelos conflitos.  Dado que serviços governamentais significam serviços decididos por uma equipe de tomadores de decisão, a consequência real é que os serviços passam a ser uniformes.  Os desejos de todos aqueles que foram forçados, direta ou indiretamente, a pagar pelos serviços estatais não poderão ser satisfeitos.  Apenas alguns formatos desses serviços poderão ser ou serão ofertados pela agência governamental.  Como resultado, empreendimentos estatais criam enormes conflitos de casta entre os cidadãos, cada qual tendo uma ideia diferente sobre a melhor forma de serviço.
Um notável exemplo disso são as escolas públicas.  Alguns pais ainda preferem escolas segregadas por gênero; outros preferem educação integrada.  Alguns pais querem que seus filhos aprendam socialismo; outros querem ensino anti-socialista nas escolas.  Não há maneira de o governo solucionar esses conflitos.  Ele pode apenas impor a vontade da maioria (ou uma "interpretação" burocrática dela) por meio da coerção e com isso deixar uma minoria — quase sempre significativa — insatisfeita e rancorosa.  Qualquer que seja o tipo de escola pública escolhida, alguns grupos de pais irão sofrer.  Por outro lado, não há conflitos desse tipo no livre mercado, que fornece qualquer tipo de serviço demandado.  No mercado, aqueles que querem escolas separadas por gênero ou integradas, socialistas ou individualistas, podem ter seus desejos satisfeitos.  Torna-se óbvio, portanto, que a oferta governamental de serviços — em oposição à oferta privada — reduz a qualidade de vida de grande parte da população.
Portanto, ao ponderar a questão do gerenciamento privado versus gerenciamento estatal de qualquer empreendimento, é preciso ter em mente as seguintes conclusões da nossa análise:
1. Todo e qualquer serviço pode ser ofertado privadamente no mercado;
2. A iniciativa privada e o livre mercado são mais eficientes em ofertar serviços de melhor qualidade a custos mais baixos;
3. A alocação de recursos em um empreendimento privado irá melhor satisfazer as demandas dos consumidores, ao passo que um empreendimento estatal irá distorcer alocações e criar ilhas de caos calculacional;
4. Empreendimentos estatais irão reprimir a atividade privada tanto nas empresas que concorrem diretamente com o estado como nas que estão em outras áreas.
5. Empreendimentos privados no livre mercado asseguram uma harmoniosa e cooperativa satisfação de desejos, ao passo que empreendimentos estatais criam conflitos de casta.

Murray N. Rothbard (1926-1995) foi um decano da Escola Austríaca e o fundador do moderno libertarianismo. Também foi o vice-presidente acadêmico do Ludwig von Mises Institute e do Center for Libertarian Studies. 

terça-feira, 3 de dezembro de 2013

Liberdade e guerra - uma breve história

Liberdade e guerra - uma breve história
saul-attacking-david.jpg
Saul atacando David (1646)
Guercino (1591—1666)
Em seu livro A Anatomia do Estado, Murray Rothbard escreveu:
Assim como as duas interrelações humanas básicas e mutuamente exclusivas são a cooperação pacífica ou a exploração coerciva — produção ou depredação —, a história da humanidade, em particular a sua história econômica, também pode ser considerada uma disputa entre estes dois princípios. 
Essa disputa tem sido unilateral.  No mundo antigo, impérios dominavam a vida política. Sistemas impiedosos baseados na escravidão, no roubo e na guerra eram a regra ao redor do mundo.  Uma exceção, em um território rodeado por impérios desse tipo, eram as tribos de Israel.  Mesmo alertados pelo próprio Deus sobre a miséria que enfrentariam caso renunciassem voluntariamente à liberdade que gozavam sob o regime descentralizado dos juízes em favor de um rei terreno que os governasse, eles clamaram pela própria escravização.  É instrutivo que a recompensa que os israelitas julgavam justa não obstante seu alto preço fosse a de ter um rei que os liderasse em batalha.  Tendo Saul como rei, Israel não mais desfrutou de períodos de paz como quando sob a liderança dos juízes; esteve constantemente em guerra.  Como Samuel havia alertado, Saul tomou seus filhos como soldados, suas filhas e seus empregados como escravos, suas melhores terras, suas colheitas e seus rebanhos, assim reduzindo os israelitas à servidão.[1]
Os israelitas não seriam o último povo a sucumbir ao canto de sereia da guerra.  A respeito da importância da guerra como um instrumento para o engrandecimento do poder do estado em sua disputa contra a liberdade, Rothbard escreveu:
Em uma guerra, o poder do estado é levado ao extremo, e sob os slogans da "defesa" e da "emergência", ele pode impor uma tirania ao público que, em tempos de paz, enfrentaria franca e aberta resistência.  Desta forma, a guerra provê muitos benefícios a um estado e, de fato, todas as guerras modernas trouxeram aos povos envolvidos um permanente legado de maiores encargos estatais sobre a sociedade. 
A guerra não apenas amplia enormemente as transferências de riqueza da sociedade para o estado para que este fortaleça seu regime, como também promove a ideologia pró-estado.  Como o estado vive parasiticamente da produção de seus hospedeiros, aqueles que se beneficiam destas transferências de riqueza devem ser sempre uma minoria da população.  As vítimas do estado têm de ser a maioria e, portanto, sua aceitação da depredação promovida pelo estado deve ser cuidadosamente engendrada, caso contrário será o fim desse mesmo estado.
A legitimidade do estado deve ser fabricada e mantida por meio da ideologia.  Do despotismo oriental à hegemonia americana, o estado nunca falhou em atrair, com seu poder e riqueza, aqueles que se esforçassem para criar sua apologia.  Mas mesmo toda a litania de alegações — que nossos governantes são sábios e seus governos são beneficentes, que nossos governantes nos protegem de perigos terríveis, que nossos governantes mantêm a coesão social, que nossos governantes preservam a tradição gloriosa de nossos ancestrais, que nossos governantes incorporam os interesses da sociedade, que nossos governantes são designados por Deus, que nossos governantes trazem ciência e razão à sociedade, que nossos governantes são capazes de controlar a economia e assim por diante — nunca conseguiu explicar como é possível transformar hegemonia em associação voluntária, tributação em oferenda espontânea, coerção em liberdade de escolha, homicídio em massa em defesa, regulação econômica em prosperidade e enriquecimento de todos.  Se o estado é a fonte de onde jorram todas as benesses sociais, então por que seus apologistas estão sempre tentando fortalecer seu poder instigando um sentimento de culpa nos bem sucedidos e de inveja nos mal sucedidos?
Nós libertários conseguimos ver através das mentiras e dos sofismas da ideologia pró-estado porque soubemos aceitar a verdade promovida por aqueles que sempre defenderam a liberdade.  Extrapolando da nossa experiência, podemos ver que a ideologia antiestado é condição necessária para se estabelecer e manter a liberdade.  As vantagens que ela tem sobre a ideologia pró-estado são que, primeiro, ela apela aos interesses da maioria, e segundo, ela se apóia na verdade a respeito da natureza da ação humana.  Ao passo que a liberdade é consistente com a ação humana, o estado está fundamentado em uma flagrante contradição, a saber: a ideia de que a única maneira de haver uma instituição que proteja nossos direitos é criando uma instituição que se baseie totalmente na própria violação dos nossos direitos.
Os antigos israelitas seguiam uma ideologia que possuía muitas das qualidades necessárias para manter o poder estatal restringido, como, por exemplo, uma lei superior à qual todo homem estava sujeito, e um sistema de governo descentralizado. Por algumas gerações, os reis de Israel foram um tanto quanto contidos pela lei superior. Mas a perversidade dos reis posteriores foi aumentando, a lei superior acabou sendo finalmente abandonada, e as liberdades dos israelitas foram extintas.[2]
Levaria muitos séculos para que o mundo testemunhasse outra faísca de liberdade.  Ela foi acesa sob Sólon, em Atenas, e sua brasa brilhou mais vivamente durante o reinado de Péricles.  Mas a liberdade durou somente enquanto Péricles e sua geração estiveram vivos.  De acordo com Lord Acton, o sistema ateniense não foi capaz de proteger as minorias e de colocar o estado sob o domínio da lei.  A democracia de Atenas, no final, levou ao conflito de classes, o que destruiu o sistema.  A Guerra do Peloponeso extinguiu tanto Péricles quanto a chama da liberdade ateniense.[3]
Em Roma, os estóicos redescobriram o conceito de lei superior à qual todos os homens estão sujeitos.  Em sua maior formulação, nas mãos de Cícero, Sêneca e Fílon, os estóicos afirmaram que há uma comunidade universal dos filhos de Deus e que Sua voz deveria ser obedecida.  A liberdade seria alcançada por meio da obediência das leis naturais de Deus. Com uma ideologia melhor que a dos gregos, a nova batalha pela liberdade durou bem mais em Roma do que em Atenas. Mas ela nunca atingiu na prática as elevadas expressões alcançadas na teoria.[4]Como Acton escreveu,
Indivíduos e famílias, associações e dependências eram material mais do que suficiente para o poder soberano consumir para seus próprios objetivos.  O que o escravo era nas mãos de seu mestre, o cidadão era nas mãos da comunidade.  As mais sagradas obrigações desapareceram ante as vantagens públicas. Os passageiros existiam para sustentar o navio.[5]
No auge de seu poder, antes que as guerras do império abortassem sua liberdade e prosperidade embrionárias, Roma encontrou uma esperança de liberdade nos homens livres das comunidades teutônicas.  Quando seus líderes foram convertidos ao cristianismo, eles converteram seu povo.  Após a queda de Roma, seus governos descentralizados persistiram uma vez que a Igreja resistia à centralização do poder estatal, permitindo um longo período de incubação para o nascimento da liberdade.[6]
A vez da liberdade chegou durante o século X, quando os escandinavos interromperam suas invasões agressivas à Europa e passaram a praticar o livre comércio de forma pacífica.  No século seguinte, o Mediterrâneo estava seguro para a navegação europeia. Veneza e as cidades do norte da Itália prosperaram expandindo suas rotas comerciais e levando a divisão do trabalho às cidades do interior.  As cidades hanseáticas fizeram o mesmo no norte da Europa. Como escreveu Henri Pirenne, a Europa tornou-se uma região de cidades construídas pelo capital.[7]
O florescimento do comércio na Europa foi fortalecido pelo desenvolvimento de uma ideologia pró-liberdade, elevada a um apogeu inédito pela doutrina cristã do indivíduo. O próprio Deus havia encarnado e vivido como um homem.  Jesus Cristo sofreu e morreu para assegurar a salvação de cada indivíduo.  No Céu, Deus glorificará cada pessoa com um corpo espiritual para viver em comunhão com Ele e com o próximo. Nações prosperam e entram em decadência, mas o indivíduo viverá pela eternidade.
Como mostrou Harold Berman, no século XI a Igreja reformulou o direito canônico em linhas mais favoráveis à propriedade privada e ao contrato. A lei canônica funcionou como um fermento para os diferentes sistemas legais, tanto o civil quanto o comercial.[8]  Berman escreveu:
Talvez a característica mais distintiva da tradição legal ocidental seja a coexistência e a competição dentro da mesma comunidade de jurisdições diferentes e de sistemas legais diferentes. É essa pluralidade de jurisdições e sistemas legais que torna a supremacia da lei necessária e possível.
O pluralismo legal originou-se na diferenciação entre o governo eclesiástico e os governos seculares.  A Igreja declarou sua independência do controle secular, sua jurisdição exclusiva em determinados assuntos, e sua jurisdição concorrente em outros assuntos ... A lei secular, por sua vez, estava dividida em vários tipos concorrentes, incluindo a lei real, a lei feudal, a lei senhorial, a lei urbana, e a lei comercial.[9]
Na medida em que a proteção legal da propriedade privada ia sendo lenta mas decisivamente ampliada da Igreja e dos mercadores para qualquer indivíduo, o progresso econômico foi levado às massas.  A pequena revolução industrial, engendrada pela proteção da propriedade privada e dos contratos, atraiu a atenção de estudiosos que queriam explicar o funcionamento da economia florescente.  Jean Buridan e Nicholas Oresme escreveram trabalhos no século XIV explicando a atividade econômica tendo como moldura a sociedade como uma ordem natural surgida do funcionamento das leis que Deus imprimiu à natureza das coisas.  A lei natural também formou a base para leis feitas pelo homem na alta Idade Média.  Como Berman escreveu,
Na era formativa da tradição jurídica ocidental, a teoria da lei natural predominou.  Era consenso geral que o direito humano, em última análise, derivava, e deveria ser aprovado, pela razão e pela consciência.  De acordo não apenas com a filosofia do direito da época, mas também com o próprio direito positivo, qualquer lei positiva, fosse ela editada ou baseada em costumes, deveria estar em conformidade com a lei natural, caso contrário ela careceria de validade como lei e poderia ser ignorada.  Esta teoria era baseada tanto na teologia cristã quanto na filosofia aristotélica.  Mas ela também estava baseada na história da luta entre autoridades eclesiásticas e seculares, e na política do pluralismo.[10]
Quando irrompiam guerras no contexto desta ideologia cristã pró-liberdade, elas meramente desaceleravam, em vez de interromperem por completo, o ímpeto da liberdade.  A Guerra dos Cem Anos veio para consolidar o poder estatal e fomentar a ideologia pró-estado.  As forças reacionárias eram fortes o bastante para inaugurar a era do absolutismo monárquico.  A ascensão do estado-nação começou a ameaçar a liberdade no Ocidente como até então nada havia ameaçado antes, desde o poder estatal de Roma.  Assim como autores mercantilistas vocalizavam a ideologia pró-estado nos séculos XVI e XVII, os escolásticos tardios revidavam com suas visões pró-liberdade.
A Escola de Salamanca desenvolveu uma visão sobre política e economia fundada na lei natural.  O fundador da escola, Francisco de Vitória, argumentou que todos os indivíduos merecem a mesma proteção legal para suas pessoas e para suas propriedades. Como Tom Woods escreveu,
Vitória afirmou que o homem não podia ser privado da sua capacidade civil por estar em pecado mortal, e que o direito de possuir coisas para uso próprio (isto é, o direito à propriedade privada) pertencia a todos os homens, mesmo que fossem pagãos ou tivessem costumes considerados bárbaros.  Os índios do Novo Mundo eram, portanto, iguais aos espanhóis em matéria de direitos naturais.  Possuíam as suas terras de acordo com os mesmos princípios pelos quais os espanhóis possuíam as deles.[11]
A visão da lei natural dos escolásticos foi elevada por Hugo Grócio em sua obra sobre o direito internacional no século XVII, e a ideologia pró-liberdade foi posteriormente refinada nas obras sobre direitos naturais de Locke e Jefferson nos séculos XVII e XVIII.
A América provou ser terreno fértil para a ressurreição da liberdade.  O poder estatal não foi capaz de reprimir as tendências de pessoas possuidoras de uma ideologia pró-liberdade de viverem respeitando a propriedade privada e os contratos, no território aberto e nos governos descentralizados da América do Norte colonial.  Estados-nações tiveram de se contentar com limitações ao seu poder diante das possibilidades que suas vítimas tinham de escapar de suas depredações.  Durante o seu apogeu no século XIX, o liberalismo clássico espalhou os frutos da liberdade, da paz, da prosperidade e da prosperidade humana.  Mas a ideologia pró-liberdade refinada pelos liberais clássicos não estava livre de impurezas.  Seu defeito fatal estava patente na centralização do poder estatal através da constituição americana, que impunha um formato de estado-nação sobre o sistema de governos descentralizados dos 13 estados. Como Hans-Hermann Hoppe escreveu,
A filosofia política liberal clássica — como personificada por Locke e mais proeminentemente demonstrada na Declaração de Independência de Jefferson — era antes e acima de tudo uma doutrina moral.  Inspirada na filosofia dos estóicos e dos escolásticos tardios, ela estava centrada ao redor das noções de soberania do indivíduo, apropriação original de recursos naturais (sem dono), na propriedade e no contrato como sendo um direito humano universal implícito na natureza do homem enquanto animal racional.  No ambiente de governantes monárquicos (reis e príncipes), esta ênfase na universalidade dos direitos humanos colocou a filosofia liberal em radical oposição a todo e qualquer governo estabelecido.  Para um liberal, todo homem, rei ou aldeão, estava sujeito aos mesmos princípios universais e eternos de justiça.  E um governo, ou ele conseguia justificar sua existência como sendo um contrato entre proprietários privados, ou ele não poderia ser justificado de forma alguma.[12]
Tragicamente, da genuína proposição de que uma ordem social liberal requer que seus membros utilizem violência defensiva para suprimir a agressão contra a pessoa e a propriedade, liberais clássicos incorretamente concluíram que deveria haver um provedor monopolístico dessa violência defensiva.  De acordo com a visão de que o estado é essencial para uma ordem social liberal, os liberais clássicos permitiram que o poder estatal mantivesse um ponto de apoio que ele mais uma vez utilizaria para atacar a liberdade.
Esse momento veio em 1914.  Como Rothbard escreveu,
Mais do que qualquer outro período, a Primeira Guerra Mundial foi o crítico divisor de águas para o sistema empresarial americano.  A economia transformou-se em um "coletivismo de guerra", uma economia totalmente planejada e conduzida amplamente pelos interesses dos grandes negócios e por meio da intervenção do governo central, o qual serviu como o modelo, o precedente e a inspiração para o capitalismo corporativo de estado pelo restante do século XX.[13]
Como um prelúdio para a sua destruição na Grande Guerra, a ideologia pró-estado havia desferido um ataque frontal à liberdade no século XIX.  Hunt Tooley registrou a função das ideologias no ímpeto à guerra em seu livroThe Western Front.[14] Como Ralph Raico observou[15] em sua crítica ao livro de Tooley,
Tooley lida habilmente com as correntes intelectuais e culturais da Europa pré-guerra. Contribuindo para a propensão à violência havia o anarco-sindicalismo de Georges Sorel e uma forma degenerada de nietzscheanismo; porém, acima de tudo, havia o darwinismo social — na realidade, somente Darwinismo —, que ensinava o conflito eterno entre raças e tribos de humanos e de outras espécies.
Mesmo na América, a ideologia pró-estado havia conseguido degenerar o pensamento cristão durante a Era Progressista, despindo-o de sua forma pró-liberdade.  Richard Gamble documenta esta degeneração em seu livroThe War for Righteousness.[16]  Como Raico escreveu em sua crítica ao livro de Gamble,
Ao final do século XIX, protestantes progressistas, frequentemente influenciados pela Teoria da Evolução, estavam pregando pela transformação sucessiva da igreja, depois da sociedade americana, e finalmente do mundo todo. Ao rejeitar o calvinismo tradicional, eles rejeitaram também a distinção agostiniana entre a Cidade de Deus e a Cidade do Homem.  A Cidade do Homem deveria ser transformada na Cidade de Deus, aqui na Terra, por meio de uma alteração do cristianismo, o qual deveria ser redefinido como uma doutrina socialmente ativista.[17]
A Grande Guerra liberou as forças coletivistas do socialismo e do fascismo ao longo de todo o mundo ocidental. Como Raico escreveu,
A Primeira Guerra Mundial foi o ponto de inflexão do século XX.  Se ela não houvesse ocorrido, os Hohenzollern da Prússia muito provavelmente permaneceriam como chefes da Alemanha, com seu arsenal de reis e nobres subordinados encarregados dos estados germânicos menores.  Com qualquer vitória que Hitler pudesse ter obtido nas eleições do Reichstag, poderia ele ter erigido sua ditadura totalitária e homicida em meio a esta poderosa superestrutura aristocrática?  Altamente improvável.  Na Rússia, os poucos milhares de comunistas de Lênin confrontaram o imenso exército imperial russo, o maior do mundo.  Para que Lênin tivesse qualquer chance de sucesso, aquele exército deveria ser antes pulverizado, que foi exatamente o que os alemães fizeram.  Portanto, um século XX sem nazistas ou comunistas.  Imagine isso.  Foi o ponto de inflexão na história da nação americana, que sob a liderança de Woodrow Wilson transformou-se em algo radicalmente diferente do que havia sido antes.[18]
Em nenhum outro lugar a transformação radical foi mais evidente do que no direito.  A tapeçaria legal do Ocidente, tecida por mais de um milênio, foi esgarçada e fendida na Primeira Grande Guerra.  Harold Berman escreveu,
Quando os diferentes regimes legais de todas essas comunidades — locais, regionais, nacionais, étnicas, profissionais, políticas, intelectuais, espirituais, e outras — são engolidos pela legislação do estado-nação ... [isso] é, de fato, o maior perigo representado pelo nacionalismo contemporâneo.  As nações da Europa, que se originaram de sua interação umas com as outras no contexto da cristandade ocidental, tornaram-se cada vez mais separadas entre si no século XIX.  Com a Primeira Guerra Mundial, elas se separaram violentamente e destruíram os laços comuns que as haviam mantido previamente ligadas, ainda que frouxamente.  E, no final do século XX, ainda sofremos com a historiografia nacionalista originada no século XIX, que apoiou a desintegração do patrimônio legal comum ao Ocidente.[19]
Mesmo na terra onde a liberdade ardia com maior brilho, a guerra provou ser uma força potente para o retrocesso. Como Rothbard escreveu,
Historiadores têm geralmente tratado o planejamento econômico da Primeira Guerra Mundial como um episódio isolado, ditado pelas necessidades da época, e tendo pequena significância posterior.  Mas, ao contrário, o coletivismo de guerra serviu como uma inspiração e um modelo para um temível conjunto de forças destinadas a moldar a história da América no século XX.[20]
A Primeira Guerra Mundial destruiu a economia mundial que havia sido construída durante o século XIX sob o liberalismo clássico.  Como Maurice Obstfeld e Alan Taylor demonstraram em seu livro Global Capital Markets: Integration, Crisis, and Growth, o nível de integração da economia mundial subiu de moderadamente baixo em 1860 para moderadamente alto em 1914.  A Grande Guerra desintegrou a economia mundial, retornando-a a um nível substantivamente abaixo daquele vigente em 1860.  E ao final da Segunda Guerra Mundial (que foi uma continuação da Primeira Guerra Mundial), o nível de integração era metade do nível de 1860.  O nível de integração da economia mundial só foi superar aquele de 1914 no século XXI.[21]  Os governos levaram 70 anos para realizar aquilo que a liberdade fez em questão de dias.
A Grande Guerra destruiu o padrão-ouro clássico e introduziu uma era de moedas fiduciárias de papel. Hiperinflações e depressões foram o resultado.  Como Steve Hanke e Nicholas Krus documentaram, dos 56 episódios de hiperinflação da história apenas um ocorreu antes de 1920.[22]  E como George Selgin, William Lapstras e Lawrence White demonstraram, os cem anos de política monetária do Federal Reserve resultaram em mais instabilidade econômica e financeira do que o menos insolvente sistema bancário americano existente antes de o Fed ser criado.[23]
A Grande Guerra aniquilou o mundo liberal clássico e iniciou um século de ascensão do estado coletivista.  A civilização ocidental, tendo dado à luz a liberdade e a alimentado, sacrificou sua cria antes que ela tivesse tido a oportunidade de atingir a maturidade ao redor do mundo.  Em vez de liberdade, a hegemonia americana espalhou o corporativismo pelos quatro cantos da Terra.
Como nós, nossos predecessores trabalharam para divulgar a ideologia pró-liberdade durante dias negros, quando a liberdade havia sido eclipsada pelo poder estatal.  Sua estratégia envolvia a criação de instituições independentes.  Christopher Dawson, em seu livro The Crisis of Western Education, demonstrou que os movimentos intelectuais da Renascença e do Iluminismo se desenvolveram ao largo do estado.  Dawson escreveu,
Na Inglaterra e nos Estados Unidos, a tradicional relação entre a igreja, a escola e o sistema medieval de independência corporativa conseguiu sobreviver, não obstante os ataques de reformadores políticos e educacionais.  Os abusos do antigo sistema e a negligência da educação primária certamente não eram menos flagrantes na Inglaterra do que no continente europeu.  Mas a força do princípio do livre-arbítrio e a ausência de um estado autoritário fizeram com que o movimento reformista na Inglaterra seguisse um caminho independente e criasse suas próprias organizações e instituições.[24]
Para restaurar a liberdade em nossa era, devemos erigir empreendimentos genuinamente privados e instituições educacionais independentes.  Por meio de organizações como o Mises Institute, podemos fazer a nossa parte no século XXI para reverter essa maré do estatismo coletivista que se ergueu no século XX, exatamente como nossos predecessores fizeram ao reverter o absolutismo no século XVIII.  Não devemos repetir seus erros.  Desta vez, nossa ideologia pró-liberdade deve abraçar suas implicações lógicas e rejeitar completamente a ideia de estado. Somente assim pode todo o potencial da vida, da liberdade e da propriedade ser concretizado na prosperidade de toda a raça humana.


[1] I Samuel 8.
[2] I Reis e II Reis.
[3] Lord Acton, Essays in the History of Liberty, Vol. 1, (Indianapolis: Liberty Classics, 1985), pp. 12-13.
[4] Acton, Essays in the History of Liberty, pp. 24-25.
[5] Acton, Essays in the History of Liberty, p. 18.
[6] Acton, Essays in the History of Liberty, pp. 30-33.
[7] Henri Pirenne, Medieval Cities (Princeton, N.J.: Princeton University Press, 1925); idem, Economic and Social History of Medieval Europe (London: Routledge, 1936); and Acton, Essays in the History of Liberty, pp. 35-36.
[8] Harold Berman, Law and Revolution (Cambridge, Mass.: Harvard University Press, 1983).
[9] Berman, Law and Revolution, p. 10.
[10] Berman, Law and Revolution, p. 12.
[11] Tom Woods, Como a Igreja Católica Construiu a Civilização Ocidental (São Paulo: Quadrante, 2010),
[12] Hans Hoppe, Democracy, the God that Failed (New Brunswick, N.J.: Transaction Publishers, 2001), p. 225.
[13] Murray Rothbar, War Collectivism: Power, Business, and the Intellectual Class in World War I (Auburn, Ala.: Mises Institute, 2012), p. 7.
[14] Hunt Tooley, The Western Front: Battle Ground and Home Front in the First World War (New York: Palgrave McMillan, 2003).
[15] Ralph Raico, Great Wars and Great Leaders: A Libertarian Rebuttal (Auburn, Ala.: Mises Institute, 2010), p. 230.
[16] Richard Gamble, The War for Righteousness: Progressive Christianity, the Great War, and the Rise of the Messianic Nation (Wilmington, Del.: ISI Press, 2003).
[17] Raico, Great Wars and Great Leaders, p. 193. Itálicos no original.
[18] Raico, Great Wars and Great Leaders, pp. 1-2.
[19] Berman, Law and Revolution, p. 17.
[20] Rothbard, War Collectivism, pp. 34.
[21] Maurice Obstfeld and Alan Taylor, Global Capital Markets: Integration, Crisis, and Growth (Cambridge: Cambridge University Press, 2004).
[22] Steve Hanke and Nicholas Krus, "World Hyperinflations," Cato Working Paper (Washington: Cato Institute, 2012). A exceção foi na França, durante a Revolução, em 1795.
[23] George Selgin, William Lastrapes, and Lawrence White, "Has the Fed Been a Failure?" Cato Working Papers(Washington: Cato Institute, 2010).
[24] Christopher Dawson, The Crisis of Western Education (Steubenville, Oh.: Franciscan Press, 1989), p. 67.

Jeffrey Herbener é professor de economia no Grove City College.

Por que a economia não é um jogo de soma zero

Por que a economia não é um jogo de soma zero
 

competir.jpgApesar de toda a ampla literatura disponível, ainda há pessoas que genuinamente acreditam que a economia é um jogo de soma zero, isto é, que para algumas pessoas ganharem outras têm necessariamente de perder.  Tais pessoas acreditam que a economia seria uma espécie de bolo, cujo tamanho é fixo e representa toda a riqueza disponível.  Sendo assim, cada indivíduo que se apossa de uma fatia está na realidade retirando esta fatia da boca de outro indivíduo.  A verdade, no entanto, é que este bolo de riqueza não tem um tamanho fixo; ao contrário, ele cresce de maneira tal que há cada vez mais quantidade disponível para todos.
O fundador da Escola Austríaca de economia, Carl Menger, deixou claro que, para que uma coisa possa ser considerada um bem econômico, quatro circunstâncias devem ser observadas: 1) deve existir uma necessidade humana; 2) a coisa em questão deve ser capaz de satisfazer essa necessidade humana; 3) o indivíduo deve conhecer a adequabilidade da coisa em satisfazer sua necessidade; e 4) o indivíduo deve usufruir poder de disposição sobre esta coisa.
Tendo em mente estas quatro circunstâncias às quais o austríaco condicionou a existência de bens econômicos, podemos deduzir por que a economia não é um jogo de soma zero na qual toda a riqueza possível já se encontra dada de antemão.
Em primeiro lugar, a imensa maioria das coisas, na forma como se encontram em seu estado natural, não nos permite satisfazer nossas necessidades.  Por mais que toda a matéria já exista e esteja disponível na natureza, ela não nos foi dada de uma forma que nos permita satisfazermos nossas necessidades.  A matéria tem de ser trabalhada e transformada por meio do trabalho e de investimentos.  A madeira das árvores deve ser cortada e processada para a fabricação de abrigos dentro dos quais iremos morar; as terras têm de ser aradas e cultivadas para que possamos colher alimentos que irão saciar nossa fome; o ferro e o alumínio têm de ser extraídos das minas para que seja possível a fabricação de aviões que irão nos transportar de um ponto do globo a outro.  Só é possível criar riquezas quando transformamos coisas (que não satisfazem diretamente nossos desejos) em bens (que satisfazem).  É por isso que recursos minerais que estão no subsolo não configuram riqueza por si só.  Eles têm antes de ser transformados.  E isso só irá ocorrer com investimentos maciços, mão-de-obra capacitada e tecnologia avançada.
Em segundo lugar, a incapacidade dos objetos em seu estado natural em satisfazer diretamente nossas necessidades advém do fato de que nem sequer conhecemos todas as suas combinações e usos possíveis.  A tecnologia, que é a arte de combinar e ordenar a matéria para que ela gere o resultado desejado, também não nos vem dada; antes, ela deve ser descoberta por meio da investigação e da experimentação, duas atividades que, por sua vez, requerem o uso de outros bens econômicos.  Em outras palavras, dado que não somos oniscientes, não apenas temos de criar bens econômicos a partir das coisas que nos circundam, como também temos de descobrir informações acerca de como transformar essas coisas em bens econômicos — informações que, por si só, constituem uma nova fonte de riqueza.
Terceiro e último, por mais adequado que seja um bem em satisfazer nossas necessidades, ele será totalmente inútil se não o tivermos ao nosso alcance.  A natureza pode ter sido generosa em nos agraciar com rios caudalosos por todo o planeta; no entanto, estes rios não proporcionarão nenhum serviço àquele indivíduo que se encontra no meio do deserto.  Em outras palavras, não apenas temos de produzir os bens, como também temos de saber distribuí-los aos seus usuários finais. 
Em nossos sistemas econômicos, produção e distribuição andam de mãos dadas: com o intuito de maximizar nossa eficiência na fabricação de bens econômicos, cada um de nós se especializa em produzir um ou dois bens econômicos no máximo, mesmo que necessitemos de uma grande variedade deles para satisfazer nossas mais diversas necessidades — ou seja, somos produtores especializados e, ao mesmo tempo, consumidores generalizados.
Demandamos os mais amplos e variados bens econômicos e, em troca, podemos apenas ofertar nossa extremamente limitada e específica especialização.  E, ainda assim, as trocas ocorrem.  Portanto, a maneira de termos acesso aos mais diversos bens econômicos é oferecendo em troca nossa extremamente limitada oferta de bens.  E isso ocorre por meio das trocas comerciais.
O problema é que, desde Aristóteles, a humanidade acredita que as trocas comerciais ocorrem somente entre bens com igualdade de valor.  Se o bem A é trocado pelo bem B, então necessariamente o valor de A deveria ser igual ao valor de B.  Consequentemente, nenhuma troca comercial poderia gerar valor, e sim apenas redistribuí-lo.  A interpretação alternativa (a de que o valor de A seria superior ao de B, ou vice-versa) seria ainda mais desalentadora, pois implicaria que, em toda e qualquer transação, um lado ganharia à custa do outro (ele entregaria algo com um valor objetivo maior em troca de algo com um valor objetivo menor).
No entanto, graças a Carl Menger, que popularizou a descoberta de que o valor dos bens não é objetivo mas simsubjetivo, a realidade se comprova totalmente distinta: em toda e qualquer transação comercial, cada lado atribui àquele bem que está recebendo um valor subjetivo maior do que àquele bem que está dando em troca.  Afinal, se não fosse assim — se você não valorizasse mais aquilo que está recebendo do que aquilo que está dando em troca —, a transação simplesmente não ocorreria.  Em decorrência deste fato, conclui-se que os indivíduos geram riqueza ao simplesmente trocarem bens econômicos.  Ao fazerem isso, eles estão recorrendo a um meio (trocas comerciais) para chegar àqueles fins que lhes são mais valiosos.
Em definitivo, a economia não é um jogo de soma zero, uma vez que durante todo o processo de produção de bens e serviços estamos gerando riqueza: seja quando investigamos como converter coisas em bens, quando de fato convertemos as coisas em bens, e quando distribuímos os bens por meio das trocas comerciais.
Ao contrário do que supõem os socialistas — que toda a riqueza já está criada e dada, e que é necessário apenas redistribuí-la —, o livre mercado é o único arranjo no qual os indivíduos podem se organizar de modo a incrementar ao máximo possível a oferta de bens e serviços, os quais iremos utilizar para satisfazer de maneira contínua nossos mais variados fins.
A economia, portanto, não é um jogo de soma zero, mas sim um jogo de saldo positivo e expansivo — a menos que o estado entre em cena e se aposse destes ganhos. 
O bolo não está dado e não possui tamanho fixo.  Ao contrário, ele cresce e permite fatias cada vez maiores para todos — exceto se o estado entrar em cena e gulosamente abocanhar uma grande fatia.

Juan Ramón Rallo é diretor do Instituto Juan de Mariana e professor associado de economia aplicada na Universidad Rey Juan Carlos, em Madri.