segunda-feira, 2 de setembro de 2013

Falando francamente, por Fernando Henrique Cardoso

POLÍTICA


Não é preciso muita imaginação, nem entrar em pormenores, para nos darmos conta de que atravessamos uma fase difícil no Brasil. Mas comecemos pelo plano internacional.
Os acontecimentos abrem cada vez maiores espaços para a afirmação de influências regionais significativas.
O próprio “imbróglio” no Oriente Médio, do qual os Estados Unidos saem com cada vez menos influência na região, aumenta a capacidade de atuação das monarquias do Golfo, que têm dinheiro e querem preservar seu autoritarismo, assim como a do Irã, que lhes faz contraponto. A luta entre wahabitas, xiitas e sunitas está por trás de quase tudo. E a Turquia, por sua vez, encontra brechas para disputar hegemonias.
Enquanto isso, nós só fazemos perder espaços de influência na América do Sul. Nossa diplomacia, paralisada pela inegável simpatia do lulopetismo pelo “bolivarianismo”, ziguezagueia e tropeça.
Ora cedemos a pressões ilegítimas (como a recente da Bolívia, que não dava salvo-conduto a um asilado em nossa embaixada), ora nós próprios fazemos pressões indevidas, como no caso da retirada do Paraguai do Mercosul e da entrada da Venezuela.
Ao mesmo tempo fingimos não ver que o “Arco do Pacífico” é um contrapeso à inércia brasileira. Diplomacia e governo sem vontade clara de poder regional, funcionários atordoados e papelões por todo lado ─ é o balanço.
Na questão energética, que dizer? A expansão das usinas está atrasada e sem apoio real do setor privado, salvo para construir as obras. Os caixas das empresas elétricas quebradas, graças a regulamentações que, mesmo quando necessárias, se fazem atropeladamente e sem olhar para os interesses de longo prazo dos investidores e dos consumidores.


A Petrobrás, agora entregue a mãos mais competentes, mergulhada numa incrível escassez de créditos para investir e com o caixa abalado pela contenção do preço da gasolina. O que fora estrepitosamente proclamado pelo presidente Lula, a autossuficiência em petróleo, se esfumou no aumento do déficit das importações de gasolina. Agora, com a revolução americana do gás de xisto, quem sabe onde irá parar o preço de equilíbrio do petróleo para ser extraído do pré-sal?
Na questão da infraestrutura, depois de uma década de atraso nos editais de concessão de estradas e aeroportos, além das tentativas mal feitas, o governo inovou: fazem-se privatizações, disfarçadas sob o nome de concessões, com oferta de crédito barato pelo governo às empresas privadas interessadas.
Dinheiro, diga-se, do BNDES (com juros subsidiados pelo contribuinte) e, ainda por cima, o governo se propõe a levar para a empreitada os bancos privados. Sabe-se lá que vantagens terão de lhes ser oferecidas para que entrem no ritmo do PAC, isto é, devagar e mal feito.

O tempo fora de tempo, por Carlos Brickmann

POLÍTICA


Carlos Brickmann
Diz o Eclesiastes, um dos livros da Bíblia, que há um tempo para tudo, um tempo para tudo o que ocorre. Há, pois, que ter o tempo como aliado; e saber quando a hora não chegou. E, quando não for o tempo, adiar o que se deseja.
É justo ou não o pedido do ministro Joaquim Barbosa de aumento de salários no STF? Pode ser; mas não é hora de elevar agora o salário do STF para mais de R$ 30 mil, quando o salário mínimo talvez vá para R$ 722, e só no ano que vem.
É correto manter o mandato do deputado federal Natan Donadon, do PMDB, preso por corrupção? Este colunista acha que não, a Câmara acha que sim; mas não é hora de criar a figura jurídica do deputado sem direitos políticos, que não pode votar nem ser votado, nem comparecer às sessões, mas continua deputado.


Não é o tempo certo para que a cúpula do país faça reivindicações, por justas que lhe pareçam. Multidões foram às ruas pedir seriedade na administração pública.
Não é o tempo certo para que o governador do Ceará, do PSB, compre quatro helicópteros sem licitação e contrate bufês suntuosos para servi-lo; nem para que o senador Cássio Cunha Lima, do PSDB, arranje emprego público para a namorada, a sogra e o cunhado; nem para que o governador gaúcho, do PT, gaste R$ 400 mil do Tesouro para avaliar se o jornal Zero Hora o trata com imparcialidade; nem para que o governador do Piauí, do PSB, queira pagar seu hidratante, xampu reparador e gel esfoliante com dinheiro público. Puro deboche.
Parafraseando o Eclesiastes, que proveito tirou o povo de suas manifestações?

A saúde como caos, por Ricardo Guedes


saúde hoje no Brasil chegou a um verdadeiro caos.
O SUS se dilacerou, os Planos de Saúde viraram SUS, e a consulta particular virou Plano de Saúde quanto ao tempo de espera da consulta.
Hoje não há quem se diga satisfeito com o atendimento médico no país, em todas as classes sociais, seja na classe baixa, média ou alta. Todos mal atendidos.
Há falta de médicos, devido à falta de planejamento e de investimento naformação profissional, o que não ocorreu nos últimos anos.
Ao invés de se implementar uma política de desenvolvimento para as universidades, a prioridade se deu para a criação de cotas no ensino superior, e agora na importação de médicos.
A vinda de médicos estrangeiros é meritória como medida emergencial, com restrições ao seu formato em relação aos cubanos.
Os cubanos chegam ao Brasil sem atender às normas da CLT, e sem a necessidade de validar o seu diploma para a atuação, mesmo que em área específica.
Com relação à CLT, é digno se notar a discreta manifestação do Ministério Público em relação ao assunto, já que boa parte do crescimento do emprego formal nos últimos 10 anos deveu-se à mais intensa fiscalização do Ministério do Trabalho sobre as pequenas e médias empresas, convertendo forçadamente empregos nitidamente temporários em contratos CLT, muitas vezes em desajuste com os interesses de empregadores e empregados, com sucessivas comemorações do aumento do emprego formal.


A falta de exigência da validação dos diplomas é outra afronta aos Conselhos de Medicina do país, órgãos reguladores do exercício da profissão, resguardando-se o governo na forma jurídica de contratação de consultoria do exterior. É legal, mas não é ético.
Quanto às cotas nas universidades, em pesquisa realizada com professores, técnicos e estudantes da UFRJ em 2005, 86% concordam que o melhor seria o governo investir em áreas pobres para o desenvolvimento social do que criar cotas nas universidades, contra 6% que apoiam a medida do governo; 55% acham que não é justa a criação de cotas nas universidades, contra 24% que acham que sim; e 58% acreditam que o sistema de cotas irá aumentar a descriminação social e racial no país, contra 32% que não.
Hoje, boa parte dos estudantes que entraram no ensino universitário de ponta através de cotas não conclui o ensino superior, tendo desempenhado um papel político atribuído e impedido a formação de mais um profissional qualificado para o mercado.
Quão longe estão as cotas dos ideais de excelência da Faculdade de Medicina da USP e de Zeferino Vaz na Escola de Medicina de Ribeirão Preto, na geração da capacidade hoje existente no Sírio Libanês, Albert Einstein, Beneficência Portuguesa, Hospital do Coração, Hospital das Clínicas de São Paulo, e tantos outros, para onde correm a classe política e a elite brasileira no caso de necessidade e emergência.
Urge uma política educacional de formação de qualidade para o país.

Ricardo Guedes, Ph.D. em Ciências Políticas pela Universidade de Chicago, é Diretor-Presidente do Instituto de Pesquisa Sensus.

O pensamento de Jean-Baptiste Say sobre as principais questões da economia



Este artigo é a parte final deste artigo

SayEntrepreneur.jpg4. Empreendedorismo, capital e juros
Adam Smith excluiu do pensamento econômico a importante figura do empreendedor, mas Say , por estar sempre preocupado com o mundo real e não com situações de equilíbrio de longo prazo, trouxe-a de volta ao palco. Não tão fortemente quanto Cantillon e Turgot, mas o suficiente para que continuasse, embora de modo irregular, no pensamento econômico continental, porém ainda ausente do mainstream dominante do classicismo britânico.
O que esses empresários fazem, na visão de Say? A resposta é que usam  sua "indústria", ou, em linguagem moderna, "trabalho", para organizar e dirigir os fatores de produção, de modo a alcançar a satisfação de necessidades dos consumidores.  Mas não são meros gerentes, são previsores, avaliadores de projetos e que se arriscam voluntariamente.  Say usa a palavra  "capital" um tanto confusamente, com duplo sentido, para significar, segundo o contexto exige : (a) de bens de capital, que são parte integrante da produção de novos bens finais, tal como na abordagem austríaca, ou (b) o capital financeiro, visto como o funding da empresaOs primeiros são o resultado de algum processo de produção mais indireto e, quando combinados com a indústria do empreendedor, geram lucros ou prejuízos, ou seja, na linguagem austríaca, a "estrutura de capital"  da economia. O segundo é o resultado de poupar uma parte da renda da atividade produtiva ganha no passado e gerar recebimentos de juros.
Say era favorável ao empreendedorismo como força motriz das alocações e ajustamentos da economia de mercado. Ele resumiu suas ideias sobre o mercado afirmando que os desejos dos consumidores determinam o que será produzido: 
O produto mais procurado é de maior demanda, e o que tem maior demanda gera o maior lucro para a indústria, capital e terra, que portanto, são empregados na obtenção deste produto em particular, de preferência, e vice-versa, quando um produto experimenta queda em sua demanda, há uma queda no lucro para a indústria, capital e terra e isso pode levar o produto a deixar de ser fabricado.
A partir de sua análise do capital, empreendedorismo e mercado, Say concluiu ser o laissez faire o melhor sistema econômico:
Os próprios produtores são os únicos juízes competentes da transformação, exportação e importação desses vários produtos e matérias-primas e cada governo que interfere, cada sistema calculado para influenciar a produção, só pode fazer o mal.
A análise de Say das taxas de juros é, em muitos aspectos, notoriamente austríaca. Primeiro, porque ele percebe que a taxa de juros não é o preço do dinheiro, mas o preço do crédito, ou "capital emprestado", o que torna  falso afirmar que a abundância ou escassez de dinheiro regulam a taxa de juros.  Naturalmente, ele pensava na taxa de juros real e não na taxa nominal ou de mercado. Ele também viu claramente que as taxas de juros devem incluir algum prêmio de risco, como uma espécie de seguro para proteger de perdas devidas adefaults. Esse prêmio de risco será muito grande quando, por exemplo, são impostas leis para que os credores não tenham nenhum recurso legal contra devedore caloteiros. Além disso, Say identifica o fato de que há diferenças de risco político entre as nações, que levam a uma ordem internacional de taxas juros nominais. Em termos de política pública, Say adota a mesma postura no que diz respeito aos mercados de crédito,  ou seja : o Estado não deve se intrometer. A taxa de juros não deveria ser controlada pelo Estado, ou determinada por lei, tais como os preços do vinho, do linho, ou de qualquer outro produto.
5. Valor e utilidade
Para Say, o valor é fundamentado na utilidade, que é a propriedade que um bem ou serviço possui para satisfazer algum desejo humano. Esses desejos e as preferências, expectativas e costumes que estão por trás deles devem ser tomados como dados  pelo analista. A tarefa do economista é raciocinar sobre tais dados. Say é mais enfático em negar as alegações de Adam Smith, David Ricardo, Malthus e outros de que a base de valor é o trabalho.Outro componente austríaco de sua obra!
As duas categorias de valor para Say são "valor de troca" e "valor de uso".  O valor de troca encontra-se no domínio da economia, porque é uma medida do que é preciso dar-se a fim de adquirir um bem no mercado. Em termos econômicos, o único critério justo do valor de um objeto é a quantidade de outras commodities em geral, que podem ser facilmente obtidas por ele em troca. Tais bens que possuem "valor de troca" hoje seriam chamados de "bens econômicos", mas Say os denomina de "riqueza social". Em contraste, algumas coisas, como o ar, a água e a luz do sol possuem apenas "valor de uso", pois eles estão presentes em abundância, de maneira  que não podem possuir um preço. Estes bens são modernamente conhecidos como "bens livres", mas Say os denominava de "riqueza natural".
Infelizmente, aderindo a essa taxonomia de valores, Say incorre em um erro, ao concluir que, como a medida do valor econômico de um bem é, literalmente e precisamente, o seu preço de mercado, então todas as transações de mercado devem envolver a troca de valores iguais e isso, é claro, implicar que nem compradores nem vendedores ganhem. Ou, em outras palavras, todas as transações de mercado são um "jogo de soma zero".  "Quando o vinho espanhol é comprado em Paris, igual valor é realmente dado para igual valor: a prata paga, e o vinho recebido, são dignos um do outro. Os austríacos são inflexíveis em sustentar que os intercâmbios, enquanto são voluntários, devem ser mutuamente benéficos em termos de utilidades esperadas por cada um, o comprador e o vendedor. Se não for esse o caso, então por que o comprador e o vendedor concordariam em negociar?
6. Tributação
Em nenhum outro ponto o radicalismo de Say é mais evidente do que em sua crítica da intervenção do governo na economia. Sucintamente, ele declara que o auto-interesse e a busca de lucros é que empurram os empresários em relação à satisfação da demanda do consumidor. "A natureza dos produtos é sempre regulada pelas necessidades da sociedade", portanto, "a interferência legislativa é completamente supérflua". Que economistaaustríaco pode discordar dessas afirmações?
Seus comentários sobre uma série especial de atos legislativos são muito instrutivos. O primeiro dos atos de navegação britânicos foi aprovado em 1581 e foram reforçados em 1651 e 1660 e o último não foi revogado até 1849. Seu propósito era reservar o comércio internacional exclusivamente para os proprietários de navios da marinha mercante britânica. Say argumenta então que tal monopolização do transporte comercial diminui a riqueza nacional (da própria Grã-Bretanha), porque muitas vezes reduz os lucros dos mercadores que transportam seus produtos ao mercado.
Hoje, há muitos escritores que insistem em que as altas taxas de impostos e os altos níveis concomitantes de gastos do governo, de alguma forma fazem com que uma sociedade seja mais próspera. Naturalmente, Say sabia que isso é falso, apesar do fato de que, do ponto de vista estatístico, a prosperidade e a tributação podem ser correlacionados positivamente, já que os governos arrecadam mais quando os negócios privados vão bem. Ele, porém, com lógica irretocável, explica que tais afirmações cometem o erro de inverter causa e efeito. Ou seja,  o homem não é rico porque ele paga muitos tributos, mas sim ele é capaz de pagá-los, em grande parte, porque ele é rico.
Say não hesita em identificar os gastos do governo como consumo improdutivo e a excessiva tributação como uma espécie de suicídio. Outro elemento austríaco.
É verdade que Say ou negligenciou ou interpretou mal determinados pontos da teoria dos economistas austríacos: ele não acredita que as trocas de mercado representam ganhos de utilidade para o comprador e o vendedor, ele não vê a relação entre taxas de juros e preferência temporal, ele não oferece nenhuma teoria dos ciclos de negócios. Mas, por outro lado, ele está ciente das limitações de investigações estatísticas, é muito favorável à moeda-commodity e ao free banking, sabe que os empresários e a acumulação de capital são essenciais para o avanço econômico, identifica corretamente tanto regulamentação governamental e tributação como ameaças à prosperidade e, na verdade, até mesmo como uma ameaça à própria sociedade civil.
Rothbard [pág. 40] observa que, ao contrário de quase todos os outros economistas, Say tinha uma visão espantosamente perspicaz sobre a verdadeira natureza do Estado e de sua tributação. Em sua obra não há busca mística para algum estado verdadeiramente voluntário, nem qualquer ponto de vista de que o Estado pode ser como uma organização semiempresarial e prestadora benigna de serviços a um público grato por seus inúmeros "benefícios". Pelo contrário, Say viu claramente que os serviços governamentais são usados indubitavelmente para si mesmo e para os seus favoritos e que todos os gastos do governo são, portanto, gastos de consumo pelos políticos e pela burocracia. Ele também viu que os recursos fiscais para os gastos públicos são extraídos por meio da coerção, em detrimento do público pagador de impostos. Nisto, além de antecipar o insight austríaco, ele também antecipou as análises de James Buchanan e dos demais teóricos da Public Choice!
Say tem muito a oferecer a qualquer leitor, seja austríaco ou não, seja economista ou não. Ele viu muitos imporem verdades importantes com clareza e escreveu a respeito deles com paixão e lucidez. Certa vez referiu-se à economia como "esta bela e, acima de tudo, útil ciência".  E sem dúvida deixou a economia mais bela e mais útil do que aquela que tinha encontrado.
7. Direitos de propriedade
Sobre este tema, Say foi extremamente austríaco :
Não há segurança de propriedade onde uma autoridade despótica pode apropriar-se da propriedade do objeto contra o seu consentimento. Também não há tal segurança onde o consentimento é meramente nominal e ilusório.
 E mais :
A propriedade que um homem tem sobre sua própria indústria (trabalho) é violada sempre que é proibido o livre exercício de suas faculdades ou talentos, exceto até um ponto em que eles iriam interferir nos direitos de terceiros.
Para Say, resumindo, a propriedade privada e as liberdades individuais são fatos reconhecidos, irrefutáveis e dados, que a ciência da economia política deve supor e sem a qual a economia do mundo real não pode funcionar. Essa posição do economista francês é que deve ter irritado profundamente Marx, a ponto deste, para contestá-la, substituir a lógica dos argumentos pela ilógica dos xingamentos, no intuito de desmoralizá-la. Tal como muitos de seus adoradores nossos contemporâneos, o que Marx fez, ao invés de procurar refutar a Lei de Say cientificamente, foi apelar para recursos em tudo similares às palavras de ordem que se tornaram tão comuns em manifestações públicas e até em universidades.
8. As controvérsias: Sismondi, Ricardo, Malthus e o contexto histórico da época
Em interessante artigo, intitulado Say, Sismondi e o debate continental sobre os mercados, o Professor Rogério Arthmar, da Universidade Federal do Espírito Santo, relata  o debate travado entre Say e Jean Charles Léonard de Sismondi (1773-1842), um economista suíço e crítico severo da revolução industrial e do capitalismo (embora não chegasse a ser um socialista rígido), a respeito da possibilidade de saturação geral dos mercados, no contexto histórico da Europa continental no início do século XIX, destacando  as particularidades da experiência francesa de industrialização.
O debate entre Say e Sismondi , segundo Athmar,
pode ser interpretado como um desdobramento, no âmbito da teoria econômica liberal, do legado político da Revolução Francesa. Mais precisamente, do princípio expresso desde cedo pelo Abade Sieyès de constituir-se o terceiro Estado na própria nação. Fiéis a esse preceito maior, tanto Say quanto Sismondi viriam a apregoar o livre comércio e a abominar o consumo improdutivo de todas as ordens, fosse ele do governo ou da nobreza. Distanciavam-se eles, assim, de qualquer ligação com as doutrinas econômicas pré-revolucionárias, a saber, o mercantilismo e a fisiocracia, desqualificadas como produtos do antigo regime monárquico. Essa confluência política entre ambos, todavia, encerrava profundas divergências teóricas na interpretação do melhor caminho a seguir pela sociedade francesa. No juízo de Say, a industrialização representava a possibilidade de um futuro promissor para todos, o acesso à civilização moderna proporcionado pela proliferação em larga escala dos produtos e, por conseguinte, das necessidades. Sismondi, ao contrário, embora sem jamais fazer concessões às teses socialistas ou aos economistas heréticos de seu tempo, enxergava no capitalismo uma etapa histórica única na qual o aumento dos poderes produtivos do capital havia sido alçado à condição de prioridade absoluta em detrimento das condições de vida e da capacidade de consumo dos verdadeiros artífices da riqueza social. [trecho da conclusão]
Contudo, o debate mais famoso de Say foi com Thomas Malthus (1766-1834). A argumentação contundente de Say, em cinco cartas, provê respostas às visões malthusianas negativas sobre o impacto do aumento da população sobre o bem-estar dos trabalhadores e fornece uma popularização de suas ideias econômicas. Em curto, porém bastante elucidativo artigo, William L. Anderson analisa a Lei de Say, desde os tempos em que o Traité foi publicado até os dias atuais (boa parte da discussão econômica entre Ronald Reagan e Jimmy Carter, na campanha para as eleições de 1980, nos Estados Unidos, segundo Anderson, foi centrada na Lei de Say).
Thomas Malthus contestou a Lei de Say em 1820, com uma peça que foi rapidamente respondida por David Ricardo. No entanto, Thomas  Sowell, em 1985, escreveu que o ataque mais virulento veio de Karl Marx, que declarou a Lei de Say um "absurdo", um "balbuciar infantil", uma "conversa oca lamentável", "uma evasão insignificante" e chamou Say de "chato", "fútil", "miserável", "imprudente" e  "uma "farsa". Apesar de todos esses "elogios" de Marx, no entanto, a maioria dos economistas do século XIX foram convencidos pela lógica de Say e geralmente aceitaram a doutrina do francês. Já naquele tempo, os xingamentos eram os "argumentos" de quem não tem argumentos.
Sowell, em 1994, escreveu que no sistema clássico a Lei de Say envolveu seis proposições principais: 
1. Os pagamentos totais recebidos pelos fatores utilizados para a produção de um determinado volume (ou valor) de produto são necessariamente suficientes para comprar esse volume (ou valor) de produto; 
2. Não há nenhuma perda de poder de compra em qualquer lugar na economia (em outras palavras, nenhum"leakage" keynesiano), pois as pessoas poupam apenas na medida do seu desejo de investir e não de guardar dinheiro além do necessário para suas transações no período atual; 
3. O investimento é apenas uma transferência interna, e não uma redução líquida da demanda agregada; 
4. Em termos reais, a oferta é igual à demanda ex ante, uma vez que cada indivíduo produz apenas por causa de sua demanda por outros bens; 
5. A maior taxa de poupança vai causar uma maior taxa de crescimento subsequente do produto agregado; 
6. Desequilíbrios na economia podem existir apenas porque as proporções internas do produto diferem do mix de preferência do consumidor – e não porque a produção é excessiva no agregado.
Como Sowell aponta, até mesmo os críticos concordam com as três primeiras proposições. Foram as três últimas que criaram a controvérsia (aqui deve também ser notado que a última proposição ajuda a formar a base para a Teoria Austríaca dos Ciclos Econômicos, conforme descrita por Mises, Hayek e Rothbard).
Portanto, o famoso capítulo XV do Traité — em que Say explica a lei dos mercados — sempre foi motivo de aceitação e também de refutação, como até hoje acontece. Mas o que dizer da controvérsia entre Say e Malthus, cuja teoria pessimista previa que a população cresceria a taxas geométricas, enquanto os meios de subsistência cresceriam a uma taxa aritmética, sendo, portanto, o futuro infestado pela escassez?
Malthus escreveu a David Ricardo em uma carta: 
A demanda efetiva consiste em dois elementos: o poder de compra e a vontade de comprar. . .  A nação deve, certamente, ter o poder de comprar tudo o que ela produz, mas posso facilmente imaginar que não tenha a vontade.
Malthus era um clérigo inglês que ganhou fama por seu Ensaio sobre a População (1798), no qual ele previu que a taxa de crescimento da população iria eventualmente ultrapassar o aumento do fornecimento de alimentos, levando à fome em massa, como escrevemos linhas atrás. Ao contrário de Smith, que era preocupado com a produção, Malthus escolheu a questão da distribuição para enfatizar.
A noção de pessoas que não têm vontade de consumir era certamente estranha para os postulados da economia clássica. Smith havia argumentado que as pessoas desejam ficar materialmente melhores do que estão em seu estado atual. No entanto, em decorrência dos efeitos da revolução industrial, que provocou deslocamentos maciços de camponeses para as cidades, houve especulações sobre o futuro dos trabalhadores, o que levou à "Lei de ferro dos salários" de Ricardo (nome, aliás, que Ricardo não deu à sua teoria) e ao ensaio de Malthus sobre a população.
É muito importante atentarmos para o contexto histórico daqueles tempos, que se seguiram a dois dos mais importantes acontecimentos da história da civilização: a revolução industrial e a revolução francesa de 1789. Esses dois eventos mudaram o mundo político e o mundo econômico. E a teoria econômica não poderia ser mais a mesma de antes.
No início do século XIX, na Grã-Bretanha, a grande classe média, que agora domina os países industrializados, era quase inexistente. As disparidades entre ricos e pobres eram muito maiores do que são hoje e os economistas estavam incertos sobre a forma como os trabalhadores se sairiam depois que a produção aumentou com a revolução industrial. Alguns, como Malthus e Ricardo, acreditavam que os trabalhadores viveriam sempre em níveis de subsistência, pois sua maior produtividade seria minada por sua capacidade de produzir famílias cada vez maiores. (Deve-se acrescentar que embora a base original para a "Lei de Ferro" tenha vindo de Malthus, Ricardo foi mais dogmático sobre seus efeitos determinísticos do que Malthus). 
Além disso, o velho argumento da época mercantilista da "utilidade da pobreza" não tinha sido totalmente enterrado. Os trabalhadores, Malthus argumentou, "podem ser satisfeitos com uma vida de comida simples, roupas mais pobres e casas mais humildes. . . . "(Malthus, p. 9) Se isso fosse verdade, então os trabalhadores, ao se tornarem mais produtivos através da industrialização, provavelmente consumiriam menos do que aquilo que produziam. Isso seria deixar as pequenas classes altas com o fardo de consumir esse excedente, algo que Malthus duvidava que pudesse ocorrer.
Outra base crítica de Malthus era a sua crença de que as trocas nem sempre envolvem mercadorias por mercadorias, uma vez que também poderão ser trocadas por serviços. Mercadorias — observou ele — não eram "figuras matemáticas", mas sim algo existente para satisfazer desejos humanos. Se os desejos estavam saciados, mas ainda existia renda extra, então iria ocorrer um excesso.
Adam Smith tinha escrito sobre a "demanda efetiva", que disse ser baseada na capacidade de alguém para comprar um bem. Usando o exemplo do pobre e do treinador, ele observou que alguém poderia "exigir" alguma coisa, mas se não tivesse os recursos para comprar esse bem, em seguida, então não existiria "demanda efetiva".
Na opinião de Malthus, a demanda efetiva (que ele chamou de "effectual demand") também envolve a vontade de comprar alguma coisa. Enquanto Smith aplicou um teste de meios para a demanda,  Malthus acrescentou desejo. Em outras palavras, alguém pode ter a capacidade de comprar um bem ou serviço, mas se não o desejar, então a demanda será inexistente. Enquanto a análise de Malthus é quase controversa do ponto de vista econômico, o clérigo viu algo economicamente sinistro se os ricos não consomissem bens suficientes para evitar um excesso de oferta.
David Ricardo refutou com sucesso Malthus, pelo menos para a satisfação da maioria dos economistas do século XIX. Como Say, ele baseou sua refutação, em 1817, sobre a idéia de que as pessoas produzem não por razões de produção, mas por razões de consumo:
Nenhum homem produz  a não ser com o objetivo de consumir ou vender, e ele nunca vende, a não ser com a intenção de comprar algum outro produto, que pode ser imediatamente útil para ele, ou que pode contribuir para a produção futura. Ao produzir, então, torna-se necessariamente ouconsumidor dos seus próprios bens, ou o comprador e consumidor de bens de qualquer outra pessoa.
Ricardo, como Say e outros economistas clássicos, não acreditava que poderiam ocorrer gluts, mas, em vez disso, considerou que tais gluts eram apenas temporários e proporcionais na natureza, em vez de serem gerais, como Malthus afirmou.  Ele observou: "Os homens erram em suas produções, não há deficiência de demanda". Ricardo também escreveu:
Muito de uma determinada mercadoria pode ser produzido, de tal modo que pode haver um tal excesso no mercado, para não pagar o o capital dispendido sobre ela, mas isto não pode ser o caso no que diz respeito a todas as mercadorias.
A controvérsia Ricardo-Malthus é um dos capítulos mais interessantes da história da Escola Clássica. Ricardo usou um argumento lógico poderoso, enquanto seu adversário, embora levantando questões importantes, não foi capaz de enquadrar os seus pontos de forma mais clara. A argumentação de Malthus também sofreu da incapacidade do clérigo para diferenciar entre a demanda e a quantidade demandada, e este problema, sem dúvida, prejudicava sua eficácia intelectual.
No entanto, mesmo não tendo influenciado os pensadores econômicos mais influentes de sua época, Malthus iria influenciar grandemente Keynes. Assim, o legado de Malthus de desafiar a Lei de Say, infelizmente, não desapareceu e permanece até os nossos dias.
9. Conclusões
Nas cartas a Malthus, fica bastante claro que as duas visões do mundo econômico são determinadas pela teoria do valor endossada por cada um dos adversários : enquanto Malthus e Ricardo aceitavam a teoria do valor trabalho herdada de Adam Smith, segundo a qual o valor é determinado pelas horas de trabalho utilizadas na produção de um bem, Say, antecipando Jevons, Walras e Carl Menger (que no ano de 1871 concluíram que o valor depende da utilidade marginal), conseguiu antever que era a capacidade de satisfazer as necessidades dos consumidores que determina o valor, ou seja, que o valor depende da demanda. Este é o ponto crucial !
Neste sentido, Say estava corretíssimo e pode ser considerado um legítimo precursor (ao lado de Juan de Mariana, Richard Cantillon e Bastiat, a quem influenciou) da Escola Austríaca de Economia.
Duzentos e dez anos após o Traité d´economie politique de 1803, em tempos de ajuste difícil às rápidas mudanças globais e tecnológicas, é tempo de se resgatar o valor do trabalho de Say, ao desenvolver os fundamentos para uma sociedade livre: a estrutura legal-institucional e a economia de mercado.
Mas a história interminável de disputas sobre o conteúdo e validade da sua famosa "lei dos mercados" — de Sismondi a Malthus, de Ricardo a Mill, de Keynes a Schumpeter — que confundiu tantos foi reformulada numa versão mais popular por James Mill: "a oferta cria a sua própria procura", apotegma que foi ardilosamente captado por Lord Keynes.
Como muito bem exposto em Jean Baptiste Say, na página do Movimento Liberal Social — Liberalismo em Portugal,
Tal formulação constituiu uma provocação para todos aqueles que defendiam que uma procura pequena é a causa para um crescimento econômico pequeno, para a depressão econômica e para o desemprego, e que a política de um governo para aumentar a procura, via salários mais elevados e baixas taxas de juro, é a melhor cura para o crescimento e criação de empregos: as "políticas pelo lado da procura"de Keynes e dos Keynesianos, são ainda apreciadas pelos sindicados e pelos socialistas. Say defende "políticas económicas pelo lado da oferta": Mais investimento de capital cria mais produção e empregos mais bem pagos. Mas, numa simplicidade bíblica, pode reconhecer Say pelos seus frutos, "políticas pelo lado da oferta": A oferta cria a sua própria procura apenas se determinadas pré-condições forem satisfeitas.
Como alguém poderia formular hoje em dia, Say questiona por políticas que mantenham sob controle a inflação, por forma a prevenir distorções no mecanismo de preços relativos. Say exige a segurança da propriedade privada, definição livre de preços, competição e mercados livres, como incentivos sustentáveis para manter os empreendedores sempre na busca de melhores soluções para problemas antigos e contemporâneos, para sinalizar aos empreendedores o que a população realmente deseja: que produtos, como, onde e quando. Say exige também baixos impostos e orçamentos equilibrados, que financiam a necessária estrutura legal e institucional da economia de mercado, deixando sempre aos cidadãos e seus descendentes, uma percentagem razoável dos frutos do seu trabalho. Hoje em dia adicionaríamos: permitindo também que eles vivam uma vida em liberdade e assumindo as suas responsabilidades'.
Na obra completa de Say, especialmente no Traité, encontramos, às vezes de maneira incompleta, outras vezes de forma fragmentada, mas outras com feição integral, os elementos que identificam um economista comoaustríaco, a saber, o tratamento que dá aos conceitos básicos de ação, tempo e conhecimento, aos elementos de propagação desses conceitos, a saber, a utilidade, a utilidade, o subjetivismo e as ordens espontâneas, bem como os desdobramentos dessas ferramentas analíticas nos problemas relacionados à Epistemologia, à Filosofia Política e, principalmente, à Economia, no estudo dos mercados como processos, do empreendedorismo, na rejeição ao uso da matemática e da estatística e nas questões relacionadas às teorias monetária, do capital e dos ciclos econômicos.
Say, senhoras e senhores (especialmente os jovens), foi um excepcional economista e um dos mais importantes precursores da Escola Austríaca! Nosso papel como defensores da economia de mercado e das liberdades individuais, contra a opressão e a burocracia do Estado, deve ser o de dar a Say o que é de Say. Até porque já o roubaram e deturparam muito nos últimos duzentos anos!

domingo, 1 de setembro de 2013

O setor público: desestatizando a segurança, as ruas e as estradas



N. do T.: com a crescente violência e o evidente despreparo da polícia para lidar não só com bandidos, mas também com o cidadão comum, passa a ser do interesse de todos analisar um projeto de desestatização dosserviços de segurança, o que envolve a privatização de ruas e estradas. Murray Rothbard (em um texto de 1973, que na verdade é um capítulo do seu livro For a New Liberty - The Libertarian Manifesto), detalha a seguir como funcionaria uma sociedade que tivesse esses serviços fornecidos pelo mercado; e explica por que, nesse ambiente, abusos de autoridade policial não seriam plausíveis — muito menos rotineiros, como são hoje. De quebra, o problema do congestionamento, consequência da oferta "a custo zero" de um bem — as ruas públicas —, seria resolvido.

Protegendo as ruas
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Abolir o setor público significa, é claro, que todos os pedaços de terra, todas as superfícies terrestres, inclusive ruas e estradas, se tornariam propriedade privada, sendo geridas privadamente por indivíduos, corporações, cooperativas ou por quaisquer outros agrupamentos voluntários de indivíduos e capital. O fato de que todas as ruas e áreas terrestres seriam propriedade privada iria por si só resolver muitos dos aparentemente insolúveis problemas da operação privada relativa a algumas áreas. O que precisamos fazer é reorientar nosso pensamento para considerarmos um mundo no qual todas as áreas de terra são geridas privadamente.
Peguemos, por exemplo, o serviço de proteção policial. Como ele funcionaria e como ele seria fornecido em uma economia totalmente privada? Parte da resposta se torna evidente se considerarmos um mundo de terras totalmente privadas, onde as ruas têm donos. Considere a área de Times Square, na cidade de Nova York. Trata-se de uma área notoriamente dominada pela criminalidade, onde a proteção policial oferecida pelas autoridades é mínima. Cada cidadão nova-iorquino de fato sabe que ele praticamente vive e anda pelas ruas — e não apenas na região de Times Square — em um estado de completa "anarquia", dependendo unicamente da serenidade e da boa vontade de seus concidadãos. A proteção policial em Nova York é mínima, fato esse que foi dramaticamente revelado quando, em uma recente greve policial que durou uma semana, a taxa de criminalidade, pasmem!, em nada se alterou. Não houve qualquer aumento acima do normal, que é quando a polícia está supostamente alerta e na ativa. De qualquer modo, suponha que a região de Times Square, incluindo as ruas, fosse gerida privadamente pela, digamos, "Associação dos Comerciantes de Times Square". Os comerciantes saberiam perfeitamente bem que se a criminalidade na sua região fosse desenfreada, se os furtos e os assaltos a mão armada fossem constantes, seus clientes iriam inevitavelmente desaparecer e iriam passar a freqüentar as áreas vizinhas, suas concorrentes. Assim, seria do interesse econômico dessa associação comercial ofertar uma proteção policial eficiente e abundante, de forma que os clientes se sentissem atraídos — ao invés de repelidos — por essa região. A iniciativa privada, afinal, está sempre tentando atrair e manter seus clientes. Assim sendo, qual seria a vantagem de ser servido por lojas de visual atraente, iluminação agradável e serviço cortês se os clientes podem ser assaltados ao andarem pela região?
Além do mais, a associação comercial seria induzida — por causa do seu desejo de lucrar e de evitar prejuízos — a fornecer não apenas uma proteção policial suficiente, mas também uma proteção cortês e aprazível. Uma polícia estatal não só não tem qualquer incentivo para ser eficiente ou para se preocupar com os desejos dos seus "clientes", como também está constantemente tentada a exercer seu poder de força de maneira brutal e coerciva. A "brutalidade policial" é uma característica bem conhecida do sistema policial estatal, e a única oposição prática a ela são algumas queixas remotas de alguns cidadãos molestados. Agora, se a polícia privada da associação comercial acaso caísse na tentação de brutalizar os clientes dos comerciantes, esses clientes rapidamente desapareceriam e iriam para outro lugar. Assim, a associação dos comerciantes teria de garantir que a sua polícia fosse cortês e eficiente.
Esse tipo de proteção policial eficiente e de alta qualidade iria prevalecer por todo o território, em todas as ruas e áreas privadas. Fábricas iriam proteger suas ruas e áreas adjacentes; os comerciantes, as suas ruas; e as empresas donas de estradas forneceriam uma proteção policial segura e eficiente em suas estradas pedagiadas e em qualquer outro tipo de estrada gerida privadamente. Roubos de carga e assaltos a caminhoneiros ou a viajantes comuns seriam nulos. O mesmo princípio é válido para bairros residenciais. Para esses bairros, podemos prever dois tipos possíveis de gerenciamento privado das ruas.
No primeiro tipo, todos os moradores de um determinado quarteirão podem se tornar os proprietários conjuntos daquele quarteirão, formando por exemplo a "Companhia do Quarteirão A". Essa companhia iria então fornecer a necessária proteção policial, os custos da qual seriam pagos tanto pelos moradores e proprietários de imóveis, como pelo aluguel dos inquilinos, caso a(s) rua(s) inclua(m) apartamentos alugados. Desnecessário dizer, mais uma vez, que os donos dos imóveis terão obviamente um interesse direto em garantir que seu quarteirão seja seguro, enquanto que aqueles que querem alugar seus imóveis tentarão atrair inquilinos oferecendo ruas seguras, além dos serviços mais habituais, como água, ar condicionado/calefação, zeladores, porteiros, etc. Perguntar por que os locadores deveriam fornecer ruas seguras em uma sociedade libertária e completamente privada seria tão tolo quanto perguntar hoje por que eles deveriam prover água e rede elétrica para seus inquilinos. A força da concorrência e da demanda do consumidor os obrigaria a fornecer tais serviços. Ademais, não importa se estamos considerando os moradores ou os imóveis para alugar, em ambos os casos o valor capital da terra e dos imóveis será função da segurança das ruas, bem como de todas as outras conhecidas características do imóvel e da vizinhança. Ruas seguras e bem patrulhadas irão aumentar o valor da terra e dos imóveis da mesma maneira que apartamentos bem cuidados são valorizados; ruas tomadas pela criminalidade irão depreciar o valor da terra e dos imóveis da mesma forma que apartamentos dilapidados são desvalorizados. Dado que os proprietários dos imóveis sempre vão preferir um valor maior para a sua propriedade, há um incentivo inerente para que forneçam ruas seguras, bem pavimentadas e eficientes.
No segundo tipo de gerenciamento privado das ruas em áreas residenciais, empresas privadas seriam donas apenas das ruas, e não das casas e dos prédios adjacentes. Essas empresas iriam então cobrar dos moradores e dos proprietários dos imóveis os serviços de manutenção, de melhoramento e de policiamento de suas ruas. Novamente, ruas seguras, bem iluminadas e bem pavimentadas irão estimular proprietários e inquilinos a se mudar para essas ruas; ruas inseguras, mal iluminadas e mal pavimentadas irão afugentar proprietários e usuários. A satisfação dos usuários e o incremento da demanda pelo uso das ruas — tanto por parte dos moradores como pelo trânsito de automóveis — irão aumentar os lucros e o valor das ações das empresas privadas que gerenciam as ruas; a insatisfação dos usuários e a diminuição do uso das ruas, bem como serviços decadentes da empresa, irão afugentar os usuários e diminuir os lucros e o valor das ações dessas empresas. Portanto, as empresas proprietárias das ruas farão o seu melhor para fornecer serviços eficientes, inclusive proteção policial, de modo a conquistar clientes e agradá-los; elas serão levadas a fazer isso pelo seu desejo de obter lucros e aumentar o valor do seu capital. É infinitamente melhor ter de depender da busca de interesses econômicos por parte de donos de imóveis e de empresas administradoras de ruas a ter de depender exclusivamente do "altruísmo" duvidoso de burocratas e funcionários do governo.
Nesse ponto da discussão, é possível que alguém esteja tentado a perguntar: se as ruas são geridas por empresas privadas, e admitindo que elas geralmente iriam se esforçar para agradar seus clientes com a máxima eficiência, o que aconteceria se algum proprietário de rua maluco ou tirânico repentinamente decidisse bloquear o acesso de um proprietário vizinho à sua rua? Como é que este iria entrar ou sair? Poderia ele ficar permanentemente bloqueado, ou mesmo ser extorquido para que lhe fosse permitida sua entrada ou saída? A resposta para essa questão é a mesma dada a um problema similar sobre propriedade de terras: suponha que todos os proprietários de imóveis ao redor da propriedade de uma pessoa repentinamente não mais a deixassem sair ou entrar. E aí? A resposta é que cada pessoa, ao comprar imóveis ou serviços de rua em uma sociedade libertária, iria se certificar de que a compra ou o contrato de arrendamento lhe garantisse acesso pleno por qualquer que seja o período de anos especificado. Com esse tipo de "servidão"[1] garantido a priori por contrato, nenhum tipo de bloqueio repentino seria permitido, já que ele seria uma invasão do direito de propriedade do dono do imóvel.
Não há obviamente nada de novo ou de assustador nos princípios dessa sociedade libertária até então imaginada. Já estamos familiarizados com os efeitos energizantes da concorrência entre serviços de transporte e entre determinadas localizações. Por exemplo, quando as ferrovias privadas estavam sendo construídas nos EUA durante o século XIX, a concorrência entre as empresas ferroviárias forneceu uma incrível força energizante para o desenvolvimento de suas respectivas áreas. Cada empresa fez o máximo possível para estimular a imigração e o desenvolvimento econômico nas adjacências de seus trilhos. A intenção, é claro, era aumentar seus lucros, o valor de suas terras e o valor do seu capital; e cada uma delas se apressou para fazer isso, pois caso contrário as pessoas e os mercados deixariam sua área e se mudariam para os portos, cidades e áreas servidas pelas ferrovias concorrentes. O mesmo princípio seria válido se todas as ruas e estradas também fossem privadas.
sss.jpgDa mesma forma, já estamos familiarizados com os serviços de proteção policial fornecidos por comerciantes e organizações particulares. Dentro de suas propriedades, as lojas têm vigias e sentinelas; os bancos têm guardas; as fábricas têm vigilantes; os shopping centers têm seguranças privados, etc. Uma sociedade libertária iria simplesmente expandir esse saudável e funcional sistema, levando-o também para as ruas. Não é por acaso que ocorrem muito mais assaltos e roubos violentos nas ruas fora das lojas do que assaltos às próprias lojas; isso é porque as lojas são munidas de precavidos guardas particulares, enquanto que nas ruas todos nós precisamos confiar na "anarquia" da proteção policial estatal. E de fato, em várias cidades do mundo têm crescido nos últimos anos, como resposta ao galopante problema da criminalidade, a contratação de vigias privados para patrulhar alguns quarteirões em troca de contribuições voluntárias dos proprietários de imóveis e moradores daquela região. A criminalidade nessas áreas sempre é substancialmente reduzida quando se adota esse método. O problema é que esses esforços às vezes se tornam vacilantes e ineficientes porque as ruas não são propriedade de seus residentes, e assim não há um mecanismo efetivo para se ajuntar o capital necessário que permita garantir uma proteção eficiente em base permanente. Além disso, os vigias que patrulham as ruas não podem estar legalmente armados porque eles não estão na propriedade de seus contratantes, e eles não podem, da maneira como podem donos de loja ou de outras propriedades, abordar qualquer pessoa que esteja agindo de maneira suspeita, porém não criminosa. Eles não podem, em resumo, fazer as coisas, financeira ou administrativamente, que proprietários podem fazer com suas respectivas propriedades.
E mais: um sistema em que a polícia é paga por proprietários e residentes de um quarteirão ou de um bairro iria não só pôr um fim na brutalidade policial contra os cidadãos, mas, principalmente, iria também acabar com o espetáculo atual em que a polícia é considerada em muitas comunidades como um grupo de colonizadores "imperiais" estrangeiros, que estão lá não para servir, mas para oprimir a comunidade. Por exemplo, atualmente temos uma situação comum e que é geral para todas as grandes cidades: áreas pobres e/ou habitadas por maioria negra são patrulhadas por uma polícia contratada por um governo central, governo esse que é tido como estranho para essas comunidades negras e pobres. Já com uma polícia fornecida, controlada e paga pelos próprios proprietários de imóveis e residentes de uma comunidade, a história seria completamente diferente; essa polícia estaria fornecendo — e todos sentiriam que ela estaria fornecendo — serviços aos seus clientes, ao invés de oprimindo-os em prol de uma autoridade estranha.
Um contraste dramático entre os méritos de uma proteção privada vs. pública foi fornecido por algo que aconteceu no Harlem, o bairro negro de Nova York. Na rua West 135th, entre a Sétima e a Oitava Avenida, está localizada a 82ª delegacia do Departamento de Polícia de Nova York. Todavia, a nobre presença dessa delegacia não evitou a erupção de uma onda de roubos noturnos a várias lojas da região. Finalmente, durante o inverno de 1966, quinze comerciantes da região se uniram e contrataram um vigia para patrulhar o quarteirão durante toda a noite; o vigia foi contratado junto a uma empresa privada de segurança que estava lá para fornecer a proteção policial que não estava sendo entregue pelos impostos sobre propriedade pagos pelos comerciantes. Desnecessário dizer que os roubos acabaram.
Mas a mais bem sucedida e mais bem organizada polícia privada em toda a história foi provavelmente a polícia ferroviária dos EUA, que era mantida por várias empresas ferroviárias com a missão de evitar injúrias aos passageiros e impedir o roubo de cargas. Essa moderna polícia ferroviária foi fundada no fim da Primeira Guerra Mundial pela Seção de Proteção da Associação Ferroviária Americana. Funcionou tão bem que, já em 1929, os pedidos de pagamento de indenização por roubo de carga haviam caído 93%. As prisões feitas pela polícia ferroviária — que, na época do maior estudo já feito sobre suas atividades, no início da década de 1930, totalizavam 10.000 homens presos — resultaram em uma porcentagem de condenações muito mais alta — variando de 83% a 97% — do que aquela atingida pelos departamentos de polícia convencionais. A polícia ferroviária era armada, podia prender normalmente e foi retratada por um criminologista nada simpático a ela[2] como sendo uma polícia que tinha uma ampla reputação de bom caráter e bom preparo.
Determinando as regras das ruas
Uma das indubitáveis conseqüências de todas as áreas terrestres de um país serem privadamente geridas por indivíduos e empresas é que haveria uma maior riqueza e diversidade de vizinhanças. A natureza da proteção policial e as regras aplicadas pela polícia privada dependeriam das vontades dos proprietários de imóveis ou dos donos das ruas, isto é, os donos de uma determinada área. Assim, os moradores mais receosos em uma área exclusivamente residencial iriam insistir que quaisquer pessoas ou carros que entrassem em sua área tenham previamente marcado hora com um morador, ou então que apenas fossem permitidos entrar através de interfones no portão de entrada. Ou seja, as mesmas regras que hoje são frequentemente aplicadas em prédios e condomínios fechados poderiam ser aplicadas para as ruas privadas dos bairros residenciais. Em outras áreas, as mais espalhafatosas, qualquer um poderia entrar a vontade; e ainda haveria vários outros graus de vigilância entre esses extremos. Muito provavelmente as áreas comerciais, ansiosas em não rejeitar e/ou repelir clientes, estariam abertas para todos. A busca pelo lucro é que determinaria a escolha do método mais eficiente. Isso forneceria uma grande disponibilidade de opções para os indivíduos, que de acordo com seus desejos e princípios poderiam escolher a área que lhes fosse mais aprazível.
Pode-se reclamar que tudo isso daria liberdade para "discriminar". Poderia haver discriminação contra o uso de imóveis ou das ruas por determinados tipos de indivíduos? Sim, não há dúvidas quanto a isso. Mas fundamental ao credo libertário é o direito de cada homem poder escolher quem pode entrar na sua propriedade ou fazer uso dela, considerando-se é claro que a outra pessoa queira fazê-lo.
"Discriminação", no sentido de escolher favoravelmente ou desfavoravelmente de acordo com qualquer que seja o critério que a pessoa utilize, é parte integral da liberdade de escolha — logo, de uma sociedade livre. Mas, é claro, no livre mercado qualquer discriminação é custosa, e acabará sendo paga pelo dono da propriedade em questão.
Por exemplo, suponha um indivíduo que, em uma sociedade livre, seja o proprietário de uma casa ou de um bloco de casas, e esteja em busca de inquilinos. Ele poderia simplesmente cobrar o preço de livre mercado do aluguel e deixar por isso mesmo. Mas aí surgem alguns riscos; ele pode escolher discriminar casais com filhos pequenos, não alugando o imóvel para eles por achar que há riscos substanciais de deterioração de sua propriedade. Por outro lado, ele pode muito bem escolher cobrar um aluguel mais caro para compensar o risco maior, de forma que o preço de livre mercado do aluguel para famílias desse tipo tenderá a ser mais caro do que seria de outra forma. Aliás, em um livre mercado, essa situação vai ocorrer na maioria dos casos. Mas e se houver uma "discriminação" pessoal, ao invés de uma estritamente econômica, da parte do locador? Suponha, por exemplo, que o locador seja um grande admirador de um determinado grupo étnico — por exemplo, suecos loiros e muito altos — e decida alugar seus apartamentos apenas para famílias de tal grupo. Em uma sociedade livre, ele estaria completamente em seu direito se assim procedesse. Mas ele claramente iria sofrer um grande prejuízo, pois teria de dispensar inquilino atrás de inquilino, em uma busca sem fim por suecos loiros e altos. Conquanto esse possa ser considerado um exemplo radical, o efeito é exatamente o mesmo — ainda que em grau variado — para qualquer tipo de discriminação no livre mercado. Se, por exemplo, o locador não gostar de ruivos e, por isso, determinar que não vai alugar seus apartamentos para esse tipo, certamente também irá sofrer prejuízos, ainda que não tão severos quanto no primeiro exemplo.
Em qualquer caso, sempre que alguém praticar "discriminação" no livre mercado, ele vai sofrer as conseqüências — seja na forma de prejuízos, seja na forma da perda de serviços recebidos como consumidor. Se um consumidor decide boicotar os bens vendidos por pessoas das quais ele não gosta - seja esse desgosto justificado ou não —, ele consequentemente irá ficar sem esses bens ou serviços que, de outra forma, teria comprado.
Portanto, em uma sociedade livre, são os donos das propriedades quem determinam as regras de uso de seus domínios, bem como as regras de admissão. Quanto mais rigorosas forem essas regras, menos pessoas irão demandar os serviços dessas propriedades, e assim o proprietário terá de fazer um equilíbrio entre rigor de admissão e perda de receita.
O preceito de que a propriedade é administrada por seus proprietários também fornece a refutação para um sempre utilizado argumento em favor da intervenção governamental na economia. O argumento afirma que "afinal, é o governo quem determina as regras do trânsito — luz verde e vermelha, direção do lado direito da pista, limites de velocidade, etc. Certamente todo mundo tem de admitir que o trânsito degeneraria em caos se não fossem tais regras. Portanto, por que o governo não deveria também intervir em todo o resto da economia?" A falácia aqui não é que o trânsito deva ser regulado; é claro que algumas regras são necessárias. Mas o ponto crucial é que tais regras sempre serão estabelecidas por quem quer que seja o dono e que, portanto, gerencie as ruas e estradas. O governo vem criando regras para o trânsito simplesmente porque é ele quem sempre foi o proprietário e, consequentemente, o gerente das ruas e estradas; em uma sociedade libertária baseada na propriedade privada seriam os proprietários quem iriam definir as regras para o uso de suas ruas.
Entretanto, será que em uma sociedade puramente livre as regras de trânsito não tenderiam a ser "caóticas"? E se alguns proprietários designassem a luz vermelha como "pare", enquanto outros escolhessem a verde, ou até mesmo uma azul, etc.? Não teríamos algumas ruas com a mão de direção no lado direito enquanto em outras ela seria no lado esquerdo? Tais perguntas são absurdas, é claro. Obviamente, seria do interesse de todos os proprietários de ruas e estradas terem regras uniformes para essas questões, de modo que o tráfego possa fluir e se integrar suavemente, sem dificuldades. Qualquer proprietário de rua excêntrico ou dissidente que insistisse em uma mão de direção à esquerda, ou no verde para "pare" ao invés de "vá", iria rapidamente se ver cercado de acidentes, além de perder todos os clientes e usuários.
É interessante observar que as ferrovias privadas nos EUA do século XIX enfrentaram problemas similares e os resolveram harmoniosamente e sem dificuldades. Cada ferrovia permitia os vagões de suas concorrentes em seus trilhos; elas se interconectavam entre si para benefício mútuo; as bitolas das diferentes ferrovias foram reajustadas para se tornarem uniforme; e classificações uniformes de cargas regionais foram implementadas para 6.000 itens. E tem mais: foram as empresas ferroviárias, e não o governo, que tomaram a iniciativa de consolidar a mixórdia caótica e ingovernável de fusos horários que existiam até então. Para ter exatidão na programação e na tabela de horários, as empresas tiveram de se unir; e em 1883 elas concordaram em alterar os cinqüenta e quatro fusos horários dos EUA para apenas os quatro que prevalecem até hoje. Um jornal financeiro de Nova York, o Commercial and Financial Chronicle, exclamou que "as leis do comércio e o instinto de auto-preservação efetuaram reformas e melhorias que todos os corpos legislativos juntos não conseguiram realizar!"
Precificando ruas e estradas
290524233_075612b7bc_o.jpgSe, em comparação, examinarmos as performances das ruas e estradas estatais, torna-se difícil imaginar que um gerenciamento privado poderia acumular um histórico mais ineficiente e irracional. Além da péssima qualidade, sobre a qual já virou clichê falarmos, hoje já é amplamente reconhecido, por exemplo, que os governos federal e estadual, incitados pelo lobby das fabricantes de automóveis, das petrolíferas, das fabricantes de pneu, e de empreiteiras e sindicatos, incorreram em uma vasta expansão de estradas. Em termos econômicos, estradas fornecem gordos subsídios aos seus usuários; em termos práticos, elas tiveram um papel central na morte das ferrovias como um empreendimento viável. Assim, enquanto caminhões podem operar em estradas construídas e mantidas pelo contribuinte, as empresas ferroviárias tiveram de construir e manter suas próprias estradas de ferro. Ademais, as estradas e ruas subsidiadas levaram a uma demasiada expansão de subúrbios acessíveis apenas por automóveis, que por sua vez levaram a uma demolição coerciva de várias casas e negócios, tanto para a construção de mais estradas, como para a construção dos subúrbios, e trouxeram um pesado fardo para o centro das cidades. O custo para o contribuinte e para a economia têm sido enormes.
Particularmente subsidiado tem sido aquele usuário urbano de automóvel que se locomove diariamente entre sua casa e o trabalho; e é precisamente nas cidades que os congestionamentos vêm aumentando como conseqüência desse subsídio dado aos usuários de automóveis, o que sempre leva a um excesso de oferta desse tipo de tráfego. O professor William Vickrey, da Universidade Columbia, estimou que as vias expressas urbanas foram construídas a um custo que varia entre 6 e 27 cents por veículo-milha, enquanto que os usuários dessas vias pagam em impostos, tanto o imposto sobre a gasolina como o imposto sobre o veículo automotor, apenas 1 cent por veículo-milha. Portanto, é o contribuinte regular, e não o motorista, quem paga pela manutenção das ruas. Ademais, o imposto sobre a gasolina é pago por milha rodada, não importa qual rua ou estrada esteja sendo usada, e não importa a hora do dia. Logo, quando estradas são financiadas pelos fundos arrecadados com o imposto sobre a gasolina, os usuários das estradas rurais de baixo custo estão sendo taxados com o intuito de subsidiar os usuários das vias expressas urbanas, cujos custos são muito maiores. Estradas rurais normalmente custam apenas 2 cents por veículo-milha para serem construídas e mantidas.
Além disso, o imposto sobre a gasolina dificilmente pode ser considerado um sistema racional de precificação para o uso das estradas, e nenhuma empresa privada jamais iria precificar dessa forma o uso de suas estradas. Empresas privadas precificam seus bens de forma a "equilibrar o mercado", de maneira que a oferta iguale a demanda e não haja nem escassez e nem excedentes. O fato de os impostos sobre a gasolina serem pagos por milha, independentemente da estrada, significa que as altamente demandadas ruas urbanas e estradas estão enfrentando uma situação tipicamente criada pelo governo: o preço cobrado pelo seu uso está muito abaixo do preço de livre mercado. Esse subsídio dado aos motoristas urbanos resulta em enormes e exacerbados congestionamentos nas ruas e estradas, especialmente nas horas do rush, enquanto que ao mesmo tempo deixa toda uma malha de estradas rurais praticamente inutilizada. Um sistema racional de precificação iria, ao mesmo tempo, maximizar os lucros para os proprietários das ruas e propiciar ruas sempre livres de congestionamento. No atual sistema, o governo mantém o preço para os usuários de ruas congestionadas em níveis extremamente baixos, e muito abaixo do preço de livre mercado; o resultado é uma escassez crônica de espaço trafegável, o que resulta em congestionamento.
Mas como seria um sistema racional de precificação instituído pelos proprietários privados das ruas? Em primeiro lugar, as ruas iriam cobrar pedágios, mas com variação de preços de acordo com a demanda. Por exemplo, os pedágios seriam bem mais caros durante a hora do rush e durante quaisquer outras horas de pico, e mais baratos durante as horas mais calmas. Em um livre mercado, a maior demanda durante as horas de pico levaria a preços de pedágio maiores, até que o congestionamento fosse eliminado e o fluxo do tráfego se tornasse estável. Mas as pessoas têm de trabalhar!, o leitor vai reagir. É claro, mas elas não têm de ir em seus próprios carros. Alguns irão compartilhar seus carros com outras pessoas (transporte solidário), enquanto outros irão pegar ônibus expressos (que seriam abundantemente ofertados em um livre mercado) ou trens; já outros irão se esforçar para alterar seus horários de trabalho, de modo a poderem ir e voltar em horas escalonadas. Dessa forma, o uso das ruas durante as horas de pico estaria restringido àqueles mais dispostos a pagar o preço de equilíbrio de mercado por seu uso.[3] Finalmente, os maiores lucros obtidos pelas empresas operadoras de túneis e pontes, por exemplo, estimulariam outras empresas privadas a construir mais dessas estruturas. A construção de ruas e estradas seria governada não pelos clamores de grupos de interesse e de usuários que querem mais subsídios, mas pelos eficientes cálculos de demanda e custo efetuados pelo mercado.
Não obstante tudo isso, a idéia de ruas urbanas privadas ainda espanta as pessoas. Afinal, como elas seriam precificadas? Onde exatamente ficariam os pedágios? Haveria pedágios em cada quarteirão? É óbvio que não, dado que tal sistema seria claramente anti-econômico, além de proibitivamente custoso tanto para o proprietário como para o motorista. Em primeiro lugar, os proprietários das ruas vão precificar o estacionamento em suas ruas muito mais racionalmente do que o modelo atual. Eles vão cobrar muito mais caro para se estacionar nas ruas congestionadas do centro, em resposta à enorme demanda. E contrariamente à prática atual, eles vão cobrar proporcionalmente mais caro, ao invés de mais barato, de quem estacionar durante todo o dia. Ou seja, os donos das ruas tentarão induzir uma rápida rotatividade nas áreas congestionadas. OK, tudo certo quanto a estacionar; novamente, esse é um quesito de fácil compreensão. Mas, e quanto a dirigir em ruas congestionadas? Como isso poderia ser precificado? Existem várias maneiras possíveis. Com a tecnologia moderna e seu constante aperfeiçoamento, desafios desse tipo são risíveis. Uma técnica arcaica sugere que câmeras de TV ou máquinas fotográficas sejam instaladas nas esquinas das ruas de modo a captar as placas dos veículos, com as faturas sendo enviadas aos motoristas ao final de cada mês. Outra, mais moderna, sugere que cada carro seja equipado com um receptor eletrônico que emitiria um sinal exclusivo por carro, sinal esse que seria captado por um aparelho instalado na referida esquina. Outra, ainda mais moderna, garante que sensores óticos, de alguma forma que só os engenheiros sabem, fariam todo o serviço.
330552_pr_01.gifO que importa aqui é que o problema da precificação racional das ruas seria de fácil resolução para a iniciativa privada e para a tecnologia moderna. A técnica que será utilizada para tal é problema para engenheiros. O que sabemos como economistas é que o livre mercado, a busca por lucros sob um o regime de propriedade privada e a moderna tecnologia são capazes de viabilizar essa exigência. Empreendedores em um livre mercado já se mostraram capazes de solucionar rapidamente problemas muito mais difíceis; tudo o que é necessário é dar a eles o espaço para agirem.
Conclusão
Se todos os sistemas de transporte se tornassem livres, se as estradas, as companhias aéreas, as ferrovias e as hidrovias fossem liberadas de suas labirínticas redes de subsídios, controles e regulamentações, e se elas se tornassem um sistema puramente privado, como os consumidores iriam alocar seu dinheiro para transporte? Será que voltaríamos às viagens ferroviárias, por exemplo? As melhores estimativas de custo e demanda para transportes predizem que as ferrovias se tornariam o principal meio de transporte de carga de longa distância, os aviões seriam os preferíveis para transporte de passageiros de longo alcance, os caminhões para cargas de pequena distância e os ônibus para as comutações púbicas diárias. Embora as ferrovias ressuscitassem para uso em transporte de cargas de longa distância, elas não seriam restabelecidas como transporte de passageiros.
Portanto, não é difícil imaginar um setor aéreo e uma rede de ferrovias particulares, não subsidiados e desregulamentados; mas poderia haver um sistema de estradas privadas? Tal sistema seria viável? Uma resposta é que estradas privadas funcionaram admiravelmente bem no passado. Na Inglaterra antes do século XVIII, por exemplo, as estradas — invariavelmente geridas pelos governos locais — eram mal construídas e pessimamente mantidas. Essas estradas públicas jamais teriam suportado a poderosa Revolução Industrial que a Inglaterra vivenciou no século XVIII, a "revolução" que prenunciou a era moderna. A vital tarefa de aperfeiçoar as praticamente intransitáveis estradas inglesas ficou a cargo de companhias privadas que, começando em 1706, organizaram e estabeleceram a grande rede de estradas que fez da Inglaterra a inveja do mundo. Os proprietários dessas companhias privadas eram em geral mercadores, donos de terras e industrialistas da área que estava sendo servida pela estrada, e eles recuperaram seus custos cobrando pedágios em pontos selecionados. Frequentemente, a coleta de pedágios era arrendada por um ano ou mais para indivíduos selecionados através de licitações concorrenciais. Foram essas estradas privadas que desenvolveram um mercado interno na Inglaterra e que reduziram enormemente os custos de transporte do carvão e de outros materiais volumosos. E já que era mutuamente benéfico para elas, as companhias de pedágio se interligaram entre si para poder formar uma rede de estradas interconectadas por todo o país — tudo isso resultado da iniciativa privada em ação.
Como na Inglaterra, o mesmo ocorreu nos EUA algum tempo depois. Defrontando-se novamente com estradas praticamente intransitáveis construídas por unidades governamentais locais, companhias privadas construíram e financiaram uma grande rede de estradas pedagiadas por todos os estados do nordeste americano, aproximadamente entre 1800 e 1830. Mais uma vez, a iniciativa privada provou-se superior na construção e manutenção de estradas, em oposição às retrógradas operações do governo. As estradas foram construídas e operadas por corporações privadas, que cobravam pedágios dos usuários. Essas empresas foram amplamente financiadas por mercadores e pelos donos das propriedades adjacentes às estradas, e elas voluntariamente se interligaram, formando uma rede interconectada de estradas. E essas foram as primeiras estradas realmente boas dos EUA.
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Murray N. Rothbard (1926-1995) foi um decano da Escola Austríaca e o fundador do moderno libertarianismo. Também foi o vice-presidente acadêmico do Ludwig von Mises Institute e do Center for Libertarian Studies.
Notas
[1] Em termo jurídico, servidão é um encargo que dá ao possuidor de um terreno o direito de usar ou tirar algum proveito de uma área contígua que pertence a terceiros. Por exemplo, direito de passagem, busca de água, instalação de fios elétricos, etc. [N. do T.]
[2] Ver Jeremiah P. Shalloo, Private Police (Philadelphia: Annals of the American Academy of Political and Social Science, 1933).
[3] Algumas pessoas podem argumentar que essa é uma idéia "elitista", pois apenas os mais ricos poderiam fazer uso constante de seus veículos. Como contra-argumento, basta lembrar que em uma sociedade puramente libertária não existe absolutamente qualquer tipo de imposto. E como a carga tributária média de um país como o Brasil está na casa dos 35%, isso significa que a ausência de todos os impostos deixaria toda a população mais rica, na média (os funcionários públicos, de início, empobreceriam; porém, em uma economia totalmente desregulamentada,  eles não teriam dificuldades em encontrar empregos mais produtivos e bem mais importantes, como os de manobrista, frentista, caixa de padaria, coveiro, etc. Não mais viveriam luxuosamente à custa de seus concidadãos).  Além disso, a ausência de impostos incidentes sobre mercadorias e transações, bem como a ausência de uma burocracia estatal que eleva o custo dessas transações, faria com que os preços dos bens e serviços caíssem significativamente. Logo, haveria um duplo aumento da riqueza.
Ademais, no caso brasileiro, o pagamento anual de pedágios dificilmente sairia mais caro do que o IPVA pago por dois carros, quantidade hoje normal para uma família de classe média-baixa. E isso sem levar em consideração o benefício da melhor qualidade das ruas e das estradas privadas, bem como a ausência de congestionamentos e a garantia de segurança plena.[N. do T.]

Murray N. Rothbard (1926-1995) foi um decano da Escola Austríaca e o fundador do moderno libertarianismo. Também foi o vice-presidente acadêmico do Ludwig von Mises Institute e do Center for Libertarian Studies.