domingo, 4 de agosto de 2013

Duas diferenças fundamentais entre as ciências naturais e as ciências sociais



natural_sciences (2).jpgQuais são as diferenças essenciais, do ponto de vista metodológico, entre as ciências naturais e as ciências sociais?  A primeira e mais direta resposta pode soar estranha e difícil de acreditar, mas é a mais perfeita definição da diferença entre ambas: as ciências naturais estudam fenômenos relativamente simples e fáceis.  Já as ciências da ação humana estudam fenômenos relativamente complexos.  Ou, ainda mais apropriado, fenômenosextremamente complexos.
Logo, em termos mais práticos, o que distingue um praticante das ciências naturais — como um químico, um físico, um biólogo, um médico — de um economista é o fato de que o químico, o físico, o biólogo e o médico estudam fenômenos simples e fáceis, em termos relativos, ao passo que estudiosos das ciências sociais lidam com fenômenos de extrema complexidade.
É isso mesmo?  Procede dizer que, por exemplo, físicos que estudam assuntos aparentemente herméticos e esotéricos, como mecânica quântica, gravitação quântica, teoria quântica de campos, buraco negro, termodinâmica de buracos negros, quantum de energia, fótons, magnetismo, cargas elétricas, mecanismo de Higgs etc. executam uma tarefa mais fácil do que a daqueles que se propõem a estudar a sociedade, algo que aparentemente todo e qualquer político e burocrata está sempre fazendo?  O que pode haver de difícil em determinar se se deve subir o salário mínimo, aumentar impostos, reduzir impostos, intensificar regulamentações, diminuir regulamentações, desburocratizar, expandir a oferta monetária, reduzir juros, elevar juros, aumentar subsídios, cortar subsídios etc.?  Tal tarefa certamente não deve exigir o mesmo intelecto exigido de um físico, que, para ser um bom físico, tem de se entregar a vários anos de intensos e pesados estudos.  Certo?
Apesar das aparências, a realidade é exatamente contrária.  Digo mais: são tão complexos os fenômenos estudados pelas ciências sociais, que quase ninguém os entende de fato.  E isso, paradoxalmente, faz com que eles pareçam simples e irresistíveis demais para não se dar palpites a respeito.  É justamente por isso que todos os ignorantes se atrevem a pontificar com desenvoltura e segurança sobre assuntos aparentemente simples, mas genuinamente complexos, dos quais não possuem os mais básicos conhecimentos a respeito.  Quanto mais aparentemente simples um assunto, maior a gama de ignaros que ele atrai.
Ninguém se atreve a palpitar resolutamente sobre fissão nuclear sem ser um especialista doutorado em física atômica.  Tampouco é comum ver um leigo perorando profundamente sobre as reações de um organismo em decorrência de uma quimioterapia.  No entanto, todas as pessoas falam com total pretensão e afetação sobre o que deve ser feito a respeito de salários, previdência social, relações trabalhistas, regulamentações, juros, impostos, tarifas de importação, bancos centrais, ajuda aos pobres etc., desconsiderando que os fenômenos sociais são extremamente mais complexos e completamente mais imprevisíveis do que os do mundo da física, da astronomia, da química ou da medicina.
Justamente por serem mais complexos, somos capazes de entender apenas uma mínima fração deles.  E é exatamente por isso, por entenderem tão pouco, que a imensa maioria das pessoas se atreve a dar palpites sobre o assunto.  É difícil ser genuinamente consciente da complexidade daquilo que se ignora totalmente.
Os fenômenos do mundo da economia são extremamente mais complicados que os do mundo das ciências naturais porque o grau de complexidade conceitual e categórico é infinitamente maior.  Ao passo que na física você pode isolar variáveis e trabalhar com constantes, nas ciências sociais são sete bilhões de seres humanos interagindo entre si de forma espontânea, imprevisível e criativa.  Cada interação humana cria um conhecimento que antes simplesmente não existia.  Nenhum átomo, nenhum elétron, nenhuma supernova é capaz de ter ideias, de criar, de descobrir, de compor sinfonias, de projetar novos modelos de televisão ou de carros, de conceber novos sistemas operacionais para computadores etc.
Hayek sempre dizia que, de longe, a ordem mais complexa do universo é o processo da ordem espontânea de um mercado.  E o grande paradoxo, nunca é demais repetir, é que, quanto menos o ser humano realmente entende a respeito desse complexo processo espontâneo, mais ele se julga apto a parolar sobre um assunto do qual absolutamente nada sabe ou entende.  Dependendo dos poderes que um indivíduo ou um conjunto de indivíduos possua, sua intromissão nesta ordem espontânea pode trazer danos irreversíveis.  No extremo, pode destruir toda uma civilização.  Uma única regulamentação, um único tributo, um único processo burocrático pode impedir que um determinado ser humano venha a interagir de forma criativa com outro ser humano, e, como consequência desse impedimento, deixem de pôr em prática uma ideia empreendedorial.  É impossível quantificar quantas coisas benéficas à humanidade não foram criadas por causa de intromissões engendradas por cientistas sociais nas interações empreendedoriais humanas.
Uma segunda diferença entre as ciências naturais e as ciências sociais é que o objeto de estudo das ciências naturais são as coisas, as matérias, as substâncias: uma pedra, um mineral, uma planta, uma vesícula biliar.  Já o objeto de investigação ou estudo das ciências humanas não são coisas, mas sim ideias — as ideias que os seres humanos têm a respeito de seus objetivos e dos meios com os quais alcançar esses seus objetivos.  Esta é uma diferença essencial entre o mundo da ciência natural e o mundo da ciência social.  Nas ciências naturais, seus profissionais estão sempre fazendo experimentos em laboratório, observando e analisando como reagem coisas externas a nós; nas ciências sociais, investigamos as ideias que outros indivíduos têm, investigamos como agem e o que fazem — ou seja, investigamos seus objetivos e os meios utilizados para alcançarem estes objetivos.
Em seu livro The Counter Revolution of Science, Hayek fornece o seguinte exemplo: um cosmético, como um creme de rosto, não é um cosmético por causa de seu composto químico (os elementos descritos em seu rótulo); ele é um cosmético porque determinados seres humanos, homens e mulheres, acreditam que esse creme que passam em seu rosto todas as noites possui uma utilidade — acreditam que fará bem à sua pele, revigorando-a para o dia seguinte, reduzindo as rugas etc.  O creme pode muito bem não ter eficácia nenhuma, mas não importa; basta que um indivíduo acredite que o creme lhe trará um benefício para que aquele composto de produtos químicos passa a ser visto como um cosmético.  Em termos econômicos, esse cosmético não é classificado de acordo com seu composto químico, mas sim de acordo com a ideia que outros têm a respeito dele; de acordo com a maneira como elas acreditam que esse cosmético irá servir para elas alcançarem um determinado fim.
O cosmético, portanto, é um meio para se alcançar um objetivo (uma pele revigorada).  Como todo meio, ele possui a sua utilidade.  A utilidade é a valoração subjetiva que um indivíduo dá a um meio em função do valor (também subjetivo) do fim que ele pode alcançar com aquele meio.
Um exemplo que particularmente gosto de fornecer, pois ilustra esse princípio à perfeição — e que virou curiosidade no YouTube —, é um vídeo em que rasgo uma cédula de 10 euros.  
Quem vê uma pessoa rasgando uma cédula de dinheiro fica compungida não pelo composto de celulose e tinta que foi rasgado, mas sim por inevitavelmente pensar em tudo aquilo que aquele pedaço de papel poderia lhe propiciar.  Isso significa que aquela cédula é um meio para se adquirir coisas de valor; é um meio para se alcançar múltiplos fins.  Como todo meio, ela também possui uma utilidade
Para muitas pessoas, esta utilidade é extremamente alta, pois aquela cédula é um meio necessário para que consigam se alimentar, se locomover ou mesmo para se divertir indo ao cinema.  A destruição de uma cédula de dinheiro gera pesar em muitas pessoas justamente pelas ideias que elas têm a respeito dos desejos que poderiam ser satisfeitos com aquela cédula.  Ao rasgar uma cédula de papel, destruí algo que a outra pessoa faz falta.
As pessoas concedem uma categoria econômica à cédula não em função de seu composto de celulose e tinta, mas sim em função das ideias que podem satisfazer com aquela cédula, dos fins que podem alcançar com aquela cédula.  A cédula, portanto, é um meio e seu valor é subjetivamente determinado por um indivíduo de acordo com o contexto de sua ação.
Conclusão
A ciência econômica, que é a ciência da ação humana, lida com as ideias que outros seres humanos possuem a respeito do que fazem, do que querem alcançar, e dos meios que utilizam para tal.  Já as ciências naturais lidam com coisa externas às relações e ações humanas.  Embora esta última tenha a fama de ser hermética e inalcançável para a maioria dos mortais, é a primeira que realmente não pode de maneira alguma ser confiada a leigos, aventureiros, ou idealistas.  O estrago pode ser irreversível para toda uma civilização.

Jesús Huerta de Soto , professor de economia da Universidade Rey Juan Carlos, em Madri, é o principal economista austríaco da Espanha. Autor, tradutor, editor e professor, ele também é um dos mais ativos embaixadores do capitalismo libertário ao redor do mundo. Ele é o autor de A Escola Austríaca: Mercado e Criatividade EmpresarialSocialismo, cálculo econômico e função empresarial e da monumental obra Moeda, Crédito Bancário e Ciclos Econômicos.

Detroit, a cidade quebrada


por  

detroit75.jpgAs lições a serem aprendidas com a falência de Detroit, uma cidade que já foi o exemplo cintilante do poderio industrialamericano, estão sendo ignoradas pela mídia e por políticos mundo a fora.  Embora a espiral de morte da cidade doautomóvel possa parecer extrema em relação às condições de outros governos, a diferença é apenas de grau, e não de organização.  A falência de Detroit é produto de uma combinação entre decadência produtiva, governos incompetentes, sindicatos agressivos e endividamento incontrolável. 
Como que para comprovar que políticos só pensam em contar mentiras reconfortantes para eleitores, o atual candidato a prefeito de Detroit, Tom Barrow, garantiu de maneira vigorosa que a crise fiscal da cidade não passa de pura ficção.  Em uma recente entrevista, ele descreveu uma conspiração de longo prazo entre forças do Partido Republicano e do setor privado para roubar os ativos dos cidadãos de Detroit, destruir os sindicatos e acabar com os direitos civis dos eleitores.  Detalhe: a cidade está sob inteiro controle do Partido Democrata desde o início da década de 1960.
Graças a anos de excessivos e generosos gastos governamentais, a cidade não possui hoje recursos para financiar nem mesmo os serviços mais básicos para sua população.  Não são poucos os que afirmam que Detroit é tão digna de socorro federal quanto aquelas cidades devastadas por desastres naturais, como furacões e terremotos.  A questão é que não há nada de "natural" no desastre fiscal de Detroit.
A verdadeira história de Detroit é que seus problemas, em vez de naturais, foram totalmente 'criados pelo homem', e podem ser resumidos em sete palavras: o setor privado construiu, o governo destruiu.  Essa é a manchete percuciente que infelizmente está ausente da cobertura midiática.
Na primeira metade do século XX, Detroit oferecia empregos industriais para aproximadamente 200.000 trabalhadores.  O efervescente mercado de trabalho fez com que a população da cidade crescesse para 1,8 milhão de pessoas até a década de 1950.  E os empregos não vieram de programas governamentais ou de "investimentos" públicos em educação e programas de treinamento; eles foram criados pela vitalidade do capitalismo americano, pela visão estratégica e voltada para o longo prazo de industrialistas, pela forte ética do trabalho da população, e pela relativa ausência de interferência do governo e dos sindicatos.  (As três grandes fabricantes de automóveis — GM, Ford e Chrysler — só começariam a lidar com o poderoso sindicato United Auto Workers em 1941).
Qualquer um que já teve o prazer de encontrar um carro americano clássico, como um Oldsmobile 8 Convesível de 1934 ou um Chrysler Town & Country de 1941, é capaz de entender por que Detroit prosperou da forma como prosperou.  Não apenas estes carros eram impressionantes obras de engenharia e de perícia profissional, como também eram surpreendentemente acessíveis para vários americanos de classe média.  A riqueza gerada pelos grandes fabricantes destes automóveis, bem como pela variedade de pequenos fabricantes que lhes forneciam peças e serviços, fluía para todas as classes de pessoas em Detroit, permitindo à cidade construir imponentes prédios e espaços cívicos, estabelecer instituições artísticas de nível internacional, e contribuir enormemente para as realizações culturais do país.
Porém, quando a cidade atingiu seu apogeu, toda a sua riqueza se tornou tentadora demais para as organizações sindicais e para todas as esferas de governo (federal, estadual, municipal).  Embora Detroit continuasse a produzir e a prosperar durante toda a década de 1950, foi na década de 1960, mais especificamente após a guerra do Vietnã, que ocorreu a inflexão da indústria automotiva e da cidade que a representava.  Não obstante a própria indústria automotiva ter a sua parcela de culpa — sua estrutura burocrática e sua arrogância míope a deixaram despreparadas para a concorrência estrangeira, o que certamente contribuiu para seu próprio declínio nos anos pós-guerra —, a real culpa deve ser atribuída diretamente aos sindicatos e ao governo.  Tendo de enfrentar o inabalável poder de uma força de trabalho monopolizada e protegida pela poderosa máquina política controlada pelo Partido Democrata, que comanda a cidade desde a década de 1960, as fabricantes de automóveis tiveram de aquiescer com seguidos aumentos salariais, com leis trabalhistas restritivas, e com generosas e crescentes pensões, o que inviabilizou totalmente sua capacidade de investimento.  Era simplesmente impossível sobreviver a esse conjunto de demandas.
Politicamente, a própria dinâmica eleitoral de uma cidade fortemente sindicalizada criou uma tempestade perfeita para Detroit.  Prefeitos e vereadores passaram a ser eleitos exclusivamente de acordo com sua capacidade de prometer cada vez mais benesses para os sindicatos e seus membros, os quais, obviamente, irrigavam seus políticos preferidos com nababescas doações de campanha.  E, embora as fabricantes fossem livres para apoiar os candidatos que quisessem, não havia como concorrer em número com os reais eleitores, que eram os sindicatos, os operários e suas famílias.  Como resultado, desde a década de 1960, Detroit passou a sofrer com gerações de governos corruptos e incompetentes financiados por sindicatos corruptos e incompetentes.  Ambos os lados não possuem a mais mínima compreensão de como sua cidade foi construída e de como as promessas que estavam fazendo para as gerações futuras jamais poderiam ser mantidas tão logo as indústrias sucumbissem sob a pesada mão da tributação, das regulações e da coerção sindical.
No final da década de 1950, a população caucasiana começou a sair da cidade, mudando-se para a região norte, acima da mítica 8 Mile (veja o filme homônimo com o rapper Eminem).  Os violentos distúrbios de 1967intensificaram ainda mais este êxodo, o qual a mídia rotulou de "fuga dos brancos".  Em 1974, foi eleito o prefeitoColeman A. Young, com um forte discurso anti-brancos, que ficaria no poder por incríveis 20 anos e intensificaria ainda mais a "fuga dos brancos".  O legado de Young foi desastroso.  Durante seu reinado, a cidade foi imersa em inúmeros escândalos de corrupção ao mesmo tempo em que a administração, com sua retórica fortemente racial, foi criando um verdadeiro e profundo apartheid urbano.  Dentre os principais "feitos" de Young estão a adoção de políticas de ação afirmativa como critério padrão para se preencher empregos municipais; um departamento de polícia chafurdado em escândalos e ligado ao narcotráfico, o que culminou com o chefe de polícia indo para a cadeia; a terceirização de obras públicas exclusivamente para empresas formadas por minorias, independentemente de sua qualificação; e a imposição de que todas as empreiteiras que fizessem obras com dinheiro da prefeitura contratassem nativos de Detroit.
Tudo isso gerou um enorme êxodo populacional, o que encolheu ainda mais a base tributária.  Atualmente, a população de Detroit é de apenas 40% do que era em seu auge, e o número de empregos na indústria caiu 90%, para menos de 20.000.  Enquanto isso, a dívida municipal é de mais de US$18 bilhões, o que equivale a aproximadamente de US$25.000 por cidadão.  E isso em uma cidade em que menos da metade da população adulta está empregada e praticamente metade é formada por analfabetos funcionais. 
A cidade prometeu mais de US$3 bilhões para 20.000 pensionistas municipais (US$150.000 para cada um), um dinheiro que simplesmente não existe.  Kevin Orr, escolhido para administrar o processo de falência de Detroit, recentemente veio a público mostrar que a cidade gasta 38 cents de cada dólar de imposto com estes "custos herdados", e a previsão é que tal cifra irá crescer para 65 cents.  Isso significa simplesmente que não sobrou nenhum dinheiro para administrar a cidade.  E em vez de reconhecer estes problemas, os políticos de Detroit, bem como o atual candidato a prefeito, preferem apenas fingir que eles não existem.
A boa notícia é que as mesmas forças que construíram Detroit podem ajudar a reerguer a cidade, desde que deixadas livres para atuar.  Em primeiro lugar, Detroit tem de declarar moratória em sua dívida.  Isso significa que aqueles indivíduos que contavam com suas pensões nababescas, investidores que compraram títulos municipais e demais cidadãos comuns irão sofrer.  O governo municipal, por sua vez, se tornará totalmente indigno de crédito, o que significa que investidores não mais irão retirar dinheiro do setor produtivo para emprestar para a burocracia municipal.  Tão logo esse processo doloroso esteja completo, Detroit passará a apresentar várias vantagens.  Seus imóveis estarão inacreditavelmente baratos e a cidade terá uma mão-de-obra desesperada por trabalho.  Se o governo relaxar as regulamentações e as leis trabalhistas, cortar impostos, adotar uma linha dura com relação às táticas de intimidação dos sindicatos, e abolir o salário mínimo, empreendedores poderão vislumbrar ali uma oportunidade e voltar para a cidade.
Muito embora a indústria não possa oferecer os altos salários que oferecia no passado, Detroit ao menos voltaria a fornecer empregos.  E embora a cidade fosse retroceder gerações, ela ao menos estaria apresentando algum dinamismo.  Mas a verdade é que a esquerda entraria em erupção e irromperia em fúria.  Estamos programados para interpretar tais medidas de mercado como sendo apenas um exemplo cruel de 'exploração gananciosa' em vez de entendê-las como sendo a maneira natural como o capitalismo cura os excessos do intervencionismo e recomeça o jogo.  A esquerda prefere ver os desempregados em sua situação atual a permitir que eles voltem a trabalhar mais horas e recebendo salários menores. 
Portanto, em vez de uma cura honesta, é de se esperar que Detroit tente sair da crise aumentando seu endividamento, reforçando suas promessas irrealistas e suplicando por socorros do governo federal, ao mesmo tempo em que seus políticos fingem estar atacando os problemas crônicos. 
No final, Detroit é apenas mais um exemplo do que ocorre quando governo e sindicatos se unem e impõem pensões dadivosas, legislações trabalhistas draconianas, regulamentações irrealistas e privilégios dignos de realeza.  Acrescente a isso uma forte dose de discurso racial anti-brancos, ações afirmativas, medidas que afastam empreendedores e endividamento crescente, e você entenderá a situação atual.  Embora as contas públicas de Detroit não tenham correspondentes, a cidade do automóvel é apenas um exemplo mais avançado de uma tendência que pode vir a afetar governos de todo o mundo caso eles não controlem seus gastos e seu endividamento, e não restrinjam as demandas de seus funcionários públicos e de seus sindicatos favoritos.

Peter Schiff 
é o presidente da Euro Pacific Capital e autor dos livros The Little Book of Bull Moves in Bear MarketsCrash Proof: How to Profit from the Coming Economic Collapse e How an Economy Grows and Why It Crashes.  Ficou famoso por ter previsto com grande acurácia o atual cataclisma econômico.  Veja o vídeo.  Veja também sua palestra definitiva sobre a crise americana -- com legendas em português 
Tradução de Leandro Roque

As diferenças essenciais entre uma genuína economiade livre mercado e uma economia intervencionista



intervencionismo.jpgAo longo de toda a história humana, foram várias as manifestações de movimentos ideológicos coletivistas.  Especialmente nas décadas de 1930 e 1940, em várias partes da Europa, estes movimentos se tornaram mais explícitos e radicais, e assumiram suas extremadas formas de comunismo, fascismo e nazismo.  Todas estas três ideologias representavam a total rejeição da liberdade econômica, do livre mercado e da liberdade individual.   
Atualmente, o comunismo, o fascismo e o nazismo — ao menos no formato que assumiram no século XX — estão mortos.  Eles fracassaram miseravelmente, tendo produzido nada mais do que genocídios, forme, devastação e miséria.  Embora sejam vários aqueles que alegam — em todos os eixos do espectro político ideológico — que o capitalismo triunfou sobre estas ideologias, a verdade é que o sistema econômico que hoje existe ao redor do mundo está muito longe daquilo que economistas liberais-clássicos como Mises consideravam ser uma economia de livre mercado.
O que seria uma verdadeira economia de mercado?  Quais as características indispensáveis que uma economia deve apresentar para ser considerada de livre mercado?  Os nove princípios a seguir definem, em minha opinião, uma genuína economia de livre mercado:
1. Todos os meios de produção são propriedade privada, seja de indivíduos ou de empresas.
2. Os proprietários destes meios de produção têm total liberdade para utilizá-los da maneira que mais lhes aprouver, sem estipulações estatais, sem restrições e sem regulamentações (a única restrição óbvia é não agredir a vida, a propriedade e a liberdade de terceiros).
3. A demanda dos consumidores é o que realmente determina como estes meios de produção serão utilizados.
4. As forças concorrenciais da oferta e da demanda determinam os preços dos bens de consumo e dos vários fatores de produção, inclusive da mão-de-obra.
5. A livre concorrência é plena, o que significa que não há restrições à entrada de indivíduos ou empresas em nenhum tipo de mercado.  Não há empecilhos burocráticos e não há agências reguladoras determinando quem pode e quem não pode entrar em um determinado mercado.  
6. O sucesso ou o fracasso de empresas e empreendimentos é determinado exclusivamente pelos lucros e pelos prejuízos destas empresas, os quais, por sua vez, decorrem de sua capacidade de vencer a concorrência das empresas rivais no mercado e mais bem satisfazer as demandas dos consumidores.  Não há programas de socorro governamental a nenhum tipo de empresa falida, inclusive bancos.
7. O mercado não está restrito a transações domésticas.  Há plena liberdade de comercializar com pessoas de todos os cantos do mundo, sem restrições governamentais, sem tarifas protecionistas.
8. O sistema monetário é completamente separado do estado.  O governo não possui controle algum sobre o dinheiro, e este não é de curso forçado.  Não há um banco central protegendo o sistema bancário e imprimindo dinheiro para expandir o crédito, determinar juros e estimular os lucros dos bancos.  Há plena liberdade de entrada no setor bancário.  A moeda será aquela voluntariamente escolhida pelos cidadãos.
9. O governo é restrito a níveis locais e sua atividade consiste unicamente em proteger a vida, a liberdade e a propriedade das pessoas.
Por essa definição, nenhum país do mundo é atualmente uma sociedade de livre mercado (embora haja várias gradações que deixem alguns — majoritariamente as cidades-estados — mais perto destes critérios).  Sendo assim, que tipo de sistema econômico existe hoje no mundo?  Mises explicou isso em sua coleção de ensaios de 1929, Uma Crítica ao Intervencionismo:
Quase todos os teóricos de política econômica e quase todos os estadistas e líderes partidários estão procurando um sistema ideal que, em suas crenças, não deve ser nem capitalista nem socialista, e que não se baseie nem na propriedade privada dos meios de produção e nem na propriedade pública.  Estão procurando um sistema de propriedade que seja restrito, regulado e dirigido pela intervenção governamental e por outras forças sociais, como os sindicatos.  Denominamos tal política econômica de intervencionismo, que vem a ser o próprio sistema de mercado controlado.
Uma economia intervencionista
Eis a seguir os nove pontos que definem uma economia intervencionista:
1. Os meios de produção podem ser propriedade privada, mas seu uso é restringido e regulamentado pela autoridade política.
2. O governo pode estipular, restringir ou regulamentar o modo como os meios de produção são utilizados, bem como pode proibir ou regular o acesso a determinados setores da economia, ou mesmo estipular que apenas ele, o governo, pode incorrer em determinada atividade comercial.
3. A demanda dos consumidores não é o único fator a determinar como os meios de produção serão utilizados.  O governo pode impor regulamentações estipulando metas de produção, obrigando a prestação de serviços em determinados mercados sem demanda ou proibindo a produção de determinados tipos de produtos ou serviços.
4. O governo influencia ou até mesmo controla a formação dos preços de vários bens de consumo e de fatores de produção, inclusive da mão-de-obra.  O governo manipula os efeitos do mercado — isto é, das leis de oferta e demanda — sobre o sucesso ou o fracasso de várias empresas, influenciando as receitas das empresas através de meios artificiais como regulações de preços, políticas de compra de estoques excedentes, limites à liberdade de entrada nos mercado, subsídios diretos e indiretos, e redistribuição de riqueza.
5. A livre concorrência é tolhida por vários tipos de restrição à entrada em vários setores da economia.  Agências reguladoras determinam quem pode e quem não pode entrar em um determinado mercado, bem como quais serviços as empresas escolhidas podem ou não ofertar, e quais preços podem cobrar.
6. O governo pode escolher quais empresas podem falir e quais devem ser socorridas com o dinheiro dos pagadores de impostos.  Os pequenos são utilizados para cobrir os prejuízos dos grandes com boas conexões políticas e sindicais.
7. A liberdade de entrada de produtos estrangeiros no mercado doméstico é desestimulada ou mesmo impedida por meio de proibições, tarifas ou quotas de importações.  O mesmo se aplica à entrada de potenciais empresas estrangeiras que possam rivalizar com empresas nacionais já estabelecidas.
8. O sistema monetário é inteiramente regulado pelo governo, que detém o monopólio da moeda e impõe sua aceitação obrigatória para todos os cidadãos.  Um banco central protege e carteliza o sistema bancário, além de manipular os juros e o valor do dinheiro ao determinar a que taxa sua quantidade na economia deve ser aumentada.  A expansão do crédito é determinada pelo governo e não pela poupança voluntária dos cidadãos.  Todas estas medidas são utilizadas como ferramentas para afetar o emprego, a produção e o crescimento a economia.
9. O governo está presente em várias áreas da economia e da vida das pessoas, possui abrangência nacional e não está limitado à proteção da vida, da liberdade e da propriedade.
É importante observar que o sistema intervencionista representado por estes nove pontos só pode ser implementado por meios violentos e coercivos.  Somente o uso da força, ou a ameaça do uso da força, pode fazer as pessoas incorrerem em ações diferentes daqueles em que elas incorreriam voluntariamente sem a intervenção do governo.  Sendo assim, embora a intervenção estatal seja normalmente discutida como se fosse "política pública", a verdade é que não há nada de "pública" nela.  Intervenções são políticas coercivas implantadas por políticos e burocratas visando ao interesse próprio e de seus favorecidos.
Compare estas políticas ao livre mercado, ou à economia desobstruída, como foi definido acima.  O que é mais evidente é a natureza voluntária de arranjos sociais genuinamente baseados em transações de mercado.  A violência ou a ameaça de violência é reduzida a um mínimo, e o indivíduo adquire a liberdade de viver sua própria vida e de aprimorar suas circunstâncias por meio da livre associação com terceiros.
Exatamente por isso é importante compartilhar com um maior número possível de pessoas uma visão clara e persuasiva a respeito da sociedade livre e da economia de livre mercado.  Apenas esta difusão de ideias pode, se não pôr um fim, ao menos restringir bastante esta era do estado intervencionista, levando-nos para um pouco mais perto da liberdade humana, que é um direito natural de qualquer indivíduo.

Richard Ebeling 
leciona economia no Hillsdale College em Michigan, é um scholar adjunto do Mises Institute e trabalha no departamento de pesquisa do American Institute for Economic Research.
 Tradução de Leandro Augusto Gomes Roque

Capitalismo é liberdade e dignidade



Tua prosperidade.jpgQuerer que a liberdade seja o princípio organizador de uma sociedade e de todo um modo de vida é um objetivo simples, porém trabalhoso.  Aquele que quer esta liberdade deve continuamente batalhar pela liberdade de expor suas ideias, de expressar e discutir suas visões, de se organizar livremente em associações ou grupos não coercitivos, de arranjar sua vida econômica e social da maneira que mais lhe aprouver (desde que seja pacífica) e, principalmente, de poder escolher a forma de governo sob a qual quer viver.  Para o homem, desfrutar a liberdade significa trabalhar com o que gosta e com o que lhe dá prazer, encontrar emprego ou fornecer emprego como achar mais adequado, comprar e vender livremente seus bens e serviços, e poder manter suas remunerações.  Ser livre é estar desimpedido e desobstruído para buscar seus objetivos econômicos.
A ideologia e o programa político que defende a liberdade individual é o liberalismo.  Pelo menos foi assim que tal programa foi rotulado durante a maior parte da história, e foi assim que Ludwig von Mises também o rotulou em suas prodigiosas obras.  O liberalismo foi a ideologia dominante entre a Revolução Gloriosa (1688) e a Lei de Reforma de 1867 (que duplicava o número do eleitorado), além de ter sido uma vasta tendência política e social por todo o mundo ocidental.  Suas demandas primordiais eram a tolerância e a liberdade religiosa, e o constitucionalismo e os direitos individuais — os quais, por sua vez, forneceram grande ímpeto para a teoria e a prática da liberdade econômica.  Os fisiocratas franceses e os economistas liberais ingleses erigiram o postulado econômico do laissez-faire ao defenderem a propriedade privada irrestrita dos meios de produção e os mercados livres e desimpedidos, não sujeitos a nenhuma intervenção política. 
Para Ludwig von Mises, a ordem social baseada na propriedade privada, comumente chamada de capitalismo, era a única ordem econômica e social exequível e duradoura.  Foi ela quem deu origem à civilização moderna e a todas as conveniências econômicas já criadas. 
Há apenas a alternativa entre propriedade comunal e propriedade privada dos meios de produção.  São inúteis todas as formas alternativas de organização social, as quais na prática se mostram auto-anuladoras.  Se também se conclui que o socialismo é inviável, não se pode então deixar de reconhecer que o capitalismo é o único sistema possível de organização social, baseada na divisão do trabalho.  Esse resultado, vindo de investigação teórica, não será surpresa ao historiador ou ao filósofo da história.  Se o capitalismo tem obtido êxito em manter sua existência apesar da inimizade que sempre encontrou quer dos governos quer das massas, se o capitalismo ainda não foi obrigado a abrir caminho para outras formas de cooperação social, as quais têm gozado, em grau muito maior, das simpatias dos teóricos e de homens de negócios de conhecimento apenas prático, isto deve ser atribuído, tão somente, ao fato de que nenhum outro sistema de organização social é factível. (Ludwig von Mises. Liberalismo — Segundo a tradição clássica)
Não importa o tanto que conheçamos sobre o funcionamento do capitalismo — se muito ou muito pouco —, o fato é que é impossível não admirar suas qualidades resilientes e duradouras.  Professores e escritores o fustigam por causar exploração e desigualdades, por gerar monopólios e oligopólios, por contribuir para o desemprego e para o desperdício por sua suposta falta de mecanismos que assegurem o pleno emprego.  E, ainda assim, não obstante todas essas acusações falaciosas e paradoxais (quem produz exploração, desigualdade, monopólios e oligopólios, desemprego e desperdício são justamente os sistemas intervencionistas e socialistas), o capitalismo consegue resistir e se manter indiferente a estas críticas.
Moralistas e intelectuais de araque o reprovam em termos morais e culturais, e ainda assim o capitalismo sobrevive, não obstante as censuras e condenações.  Políticos falam sobre as urgentes necessidades de se dar mais poder ao setor público, e ainda assim o capitalismo perdura não obstante toda a extorsão e confisco de sua riqueza em prol do setor parasitário.  As características mais básicas do capitalismo seguem intactas mesmo nos mais lúgubres e inóspitos cantos do mundo não obstante todas as leis criadas por políticos autoritários contra o capitalismo e toda a força bruta que os governos utilizam contra os cidadãos.  Seria porque a propriedade privada e a ordem social baseada nela são elementos profundamente arraigados na própria natureza do ser humano?
É difícil encontrar uma ordem capitalista genuinamente livre e desobstruída em algum lugar do mundo.  Governos, que nada mais são do que aparatos políticos de coerção e compulsão, interferem em praticamente todas as manifestações da vida econômica.  Governos impõem tributos confiscatórios sobre a produção e a distribuição, e ainda assim empreendedores e capitalistas conseguem produzir vários bens e ofertar uma ampla gama de serviços com as migalhas que os governos lhes permitem manter. Governos regulam e restringem a produção, e ainda assim a ordem social baseada na propriedade privada, embora algemada e mutilada, consegue perseverar e produzir bens e serviços. 
Governos estipulam salários e interferem continuamente no sistema de preços, e ainda assim a ordem de mercado consegue continuar respirando na economia subterrânea e nas atividades "informais".  Governos inflacionam a moeda, destroem seu poder de compra, expandem o crédito de maneira populista e impõem leis de curso forçado à sua moeda, e ainda assim a produção capitalista consegue sobreviver em meio ao caos da destruição monetária.  Governos concedem privilégios econômicos e imunidades legais para sindicatos e permitem que eles perturbem a produção e impeçam empreendedores de utilizar livremente seus meios de produção, e ainda assim, no final, a produção econômica consegue ser retomada, mesmo que a mão-de-obra e a divisão do trabalho parem de funcionar eficientemente.  Governos praticam guerras e causam destruição em massa, e ainda assim, quando a carnificina acaba e nada mais existe para o governo planejar, racionar e distribuir à força, ainda há resquícios de capitalismo permitindo a sobrevivência dos vivos.  E, no final, é o capitalismo quem produzirá os milagres da reconstrução e as maravilhas da recuperação.
Na maior parte do mundo, o capitalismo é o sistema de última instância.  Em economias na qual a liberdade econômica é severamente tolhida pelo governo, é ao capitalismo que seus cidadãos recorrem quando estão na pior e finalmente percebem que sua situação tem de melhorar urgentemente por uma questão de vida ou morte.  É ao capitalismo que indivíduos recorrem quando simplesmente querem viver com mais dignidade e mais liberdade.   
Quando a ordem socialista culminar em pobreza e fome, quando absolutamente todas as medidas de coerção política fracassarem abismalmente, quando a mentalidade dos políticos se mostrar incapaz de inventar alguma outra medida autoritária, quando as autoridades policiais finalmente se exaurirem de regular a produção econômica e os tribunais estiverem completamente paralisados por uma infinidade de processos por "crimes contra a economia", a era da ordem de mercado baseada na propriedade privada finalmente terá chegado.  Ela não necessita de nenhum plano político, de nenhuma legislação econômica e nem de nenhuma autoridade reguladora.  Para surgir e prosperar, ela necessita apenas de liberdade.

Leitura indispensável:

É verdade que Keynes era um liberal?


por , 

71107963.jpgKeynes e o neomercantilismo
Sempre houve quem classificasse John Maynard Keynes como um dos mais importantes liberais da história moderna, talvez o mais recente entre os "grandes" na tradição de John Locke, Adam Smith e Thomas Jefferson.[1]
Dentre estas pessoas, quase todas são da opinião que, assim como esses homens, Keynes acreditava sinceramente — aliás, exemplarmente — na livre sociedade.  Se ele se distinguia dos liberais "clássicos" em um ou dois pontos mais evidentes e importantes, era só por ter tentado atualizar o essencial das ideias liberais para adequá-las às condições econômicas de uma nova era.
Não há dúvida de que, ao longo da vida, Keynes defendeu valores culturais mais generosos, aos quais se costuma dar o nome de "liberais", como a tolerância e a racionalidade, além de, é claro, sempre ter se definido comoliberal (era também apoiador do Partido Liberal Britânico). Mas nada disso tem peso significativo na classificação de seu pensamento político.[2]
Em um primeiro momento, identificá-lo como modelo de liberal já é um paradoxo, quando se sabe que ele adotou a doutrina mercantilista. À época em que A teoria geral do emprego, do juro e da moeda foi publicada, em 1936, W. H. Hutt estava prestes a mandar para o prelo seu Economists and the public  (1936). Nos anos seguintes, ele submeteria o sistema de Keynes a uma análise minuciosa e desmoralizadora (Hutt 1963, 1979), mas até aquele momento só havia conseguido inserir às pressas algumas observações preliminares. Para ele, o mais estarrecedor era aquele economista de renome "querer que nós acreditemos que os mercantilistas estavam certos e as críticas feitas e eles pelos clássicos, erradas" (posição exposta no capítulo 23 da Teoria Geral) (Hutt 1936, p. 245).
Hutt escrevia sob a ótica da ciência econômica. Aqui, estamos falando da totalidade do liberalismo como filosofia social. Se o que caracteriza historicamente a doutrina liberal é seu repúdio ao paternalismo do estado assistencialista, ainda mais característica é sua rejeição ao componente mercantilista do absolutismo do século XVIII. Então, como pode um escritor que tentou reabilitar o mercantilismo ser incluído entre os grandes do liberalismo?[3]
Em defesa de Keynes, Maurice Cranston argumenta que ninguém negaria incluir John Locke entre os liberais, apesar de ele ter aderido ao mercantilismo (1978, p. 111).  Bem, dizer que Locke defendeu o mercantilismo é questionável; Karen Vaughn (1980) já nos deu razões para acreditar no contrário. Mas, ainda que houvesse defendido, o fato não validaria o argumento de Cranston. Locke é considerado com justiça um dos grandes do liberalismo não por causa de suas ideias sobre teoria e política econômica, fossem quais fossem, mas por causa da importância caracteristicamente libertária que reconhecia aos direitos naturais e do que acreditava ser a consequência desse reconhecimento.[4]
O sistema keynesiano
Conforme o próprio Keynes e seus partidários, a necessidade de sua guinada para o neomercantilismo deveu-se à descoberta de falhas fundamentais na teoria econômica clássica. A alegação é que ela não conseguiu explicar nem as causas da persistência do alto índice de desemprego na Grã-Bretanha, na década de 1920, nem as da Grande Depressão. Keynes, ao contrário, explicou as duas coisas na Teoria geral — façanha que obteve ao desmascarar os graves defeitos de uma economia de mercado não dirigida, o que causou uma "revolução" no pensamento econômico.
Mas todas essas crises específicas que causaram a reação de Keynes foram o produto de políticas governamentais equivocadas. A persistência da alta taxa de desemprego na Grã-Bretanha remonta, em parte, à decisão de Winston Churchill, que era ministro da fazenda, de retornar ao padrão-ouro utilizando a irrealista paridade vigente antes da guerra e, em parte, aos altos e dispendiosos (em comparação aos salários) valores pagos pelo seguro-desemprego após 1920. A Grande Depressão foi causada principalmente pela gestão monetária do governo — em particular, do Federal Reserve, o Banco Central dos Estados Unidos.  As duas crises podem ser explicadas pela análise econômica "ortodoxa", não há necessidade de nenhuma "revolução" teórica (Rothbard 1963; Johnson 1975, pp. 109–12; Benjamin e Kochin 1979; Buchanan, Wagner e Burton 1991).[5]
Como observou Hutt, Keynes, em A Teoria Geral, deu as costas a toda autoridade reconhecida, desde Hume e Smith a Menger, Jevons e Marshall, passando por Wicksell e Wicksteed.  À parte o grau de adesão de cada um desses pensadores ao laissez-faire, estes pensadores ao menos reconheciam que, em uma economia de mercado, havia forças autocorretivas que faziam com que as eventuais depressões econômicas fossem temporárias.  Keynes, ao descartar a "ortodoxia" de seus antecessores (e contemporâneos), alinhou-se com o que ele mesmo apelidou de "corajoso exército de hereges": Silvio Gesell, J. A. Hobson e outros social-reformistas e críticos socialistas do capitalismo, descartados como lunáticos pelos economistas mais em voga (Friedman 1997, p. 7).
Em um famoso ensaio de 1934, Keynes já se colocava ao lado desses "hereges", escritores "que rejeitam a ideia de que o sistema econômico vigente consiga se autorregular de forma relevante... O sistema não é autorregulável e, a menos quando deliberadamente orientado, não é capaz de converter nossa penúria real em fartura potencial" (1973a, pp. 487, 489, 491). A Teoria Geral foi escrita com a intenção de providenciar uma estrutura analítica que justificasse essa posição.
Conforme Keynes, mudanças nos preços, salários e taxas de juros não cumprem a função que a teoria econômica clássica lhes atribui — tendendo a gerar um equilíbrio com pleno emprego.  O nível dos salários não exerce efeito significativo no volume de empregos; a taxa de juros não contribui para equilibrar as poupanças e investimentos; a demanda agregada é, em geral, insuficiente para produzir o pleno emprego; e assim por diante. As falsas conjecturas, incoerências conceituais e non sequiturs que deturpam essas afirmações exageradas foram desmascarados em várias ocasiões (por exemplo, Hazlitt 1959, [1960] 1995; Rothbard 1962, p. 2, passim; Reisman 1998, pp. 862–94).[6] Cabe a James Buchanan resumir a questão: "Não há evidência nenhuma que sugira que as economias de mercado sejam intrinsecamente instáveis" (Buchanan, Wagner e Burton 1991, p. 109).
Seja como for, nem todo sistema que preserve elementos comuns a uma ordem baseada na propriedade privada pode ser considerado, com justiça, um sistema liberal. Como é do conhecimento de todos, na história moderna houve um sistema que incluía a propriedade privada e permitia que os mercados operassem de modo restrito e limitado. Contudo, os responsáveis por seu controle insistiam no papel predominante do estado, sem o qual — assim acreditavam — a vida econômica descambaria em anarquia. O surgimento do liberalismo econômico foi uma reação contra esse sistema, chamado mercantilismo.
Também de extrema importância para o ponto em discussão é o modo como os equívocos de Keynes abalaram a confiança em um arranjo de livre mercado, abrindo caminho para o aumento descomunal do poder do estado.
Murray Rothbard observa que Keynes postulava um mundo em que os consumidores seriam autômatos ignorantes e os investidores seriam sistematicamente irracionais, guiados por um cego "espírito animal", concluindo que a totalidade do volume de investimentos deveria ser entregue aos cuidados de um deus ex machina, uma "classe externa ao mercado … o aparato estatal" (Rothbard 1992, pp. 189–91). A esse processo, Keynes dá o nome de "socialização dos investimentos". Como declara em A Teoria Geral, "Tenho esperanças de ver o Estado, que está em posição de calcular a eficiência marginal dos bens de capital a longo prazo e tomando por base a vantagem social geral, assumir uma responsabilidade cada vez maior na organização direta dos investimentos" (1973b, p. 164). Ele defendeu a criação de um Conselho Nacional de Investimentos. Mesmo tardiamente, em 1943, ainda estimava que uma autoridade assim exerceria influência direta sobre "dois terços ou três quartos do total dos investimentos" (Seccareccia 1994, p. 377).[7]
Robert Skidelsky insiste que, nestes exemplos, Keynes não tinha em mente o estado no sentido de um governo central (1988, pp. 17–18), mas, sim, aqueles "órgãos semiautônomos no seio do Estado" dos quais falou em 1924, "órgãos cujos critérios, no âmbito de sua esfera de atuação, são unicamente os do bem público, segundo seu entendimento, e de cujas deliberações estão excluídos proveitos privados" (Keynes 1972, pp. 288–89). Contudo, Skidelsky parece ignorar os problemas dessa concepção pretensiosa.
Keynes nunca especificou como deveria ser a atuação desses órgãos, nem jamais apresentou razão nenhuma para se acreditar que estariam em posição de calcular a "eficiência marginal do capital" (seja como for, um conceito bastante confuso; ver Hazlitt 1959, pp. 156–70; Anderson [1949] 1995, pp. 200–205) e nunca esclareceu de que modo misterioso eles se manteriam inacessíveis a motivações que obedecessem a um proveito particular (inclusive pessoal e ideológico).[8]  Além disso, dado que Keynes garantiu que esses "órgãos semiautônomos" estariam "sujeitos até a última instância à soberania da democracia, expressa por meio do Parlamento" (1972, pp. 288–89), como impedi-los de se tornarem, de fato, agências do estado central?
Se o cerne da doutrina liberal é que, havendo uma adesão institucional ao direito à vida, à liberdade e à propriedade, é de se esperar que, de modo geral, a sociedade civil seja capaz de gerir a si mesma; e se o exemplo emblemático do programa liberal é a capacidade de uma economia de mercado livre de intervenção estatal funcionar a contento, então a "Revolução Keynesiana" assinalou o abandono do liberalismo.
Em pouco tempo, o keynesianismo triunfou entre proeminentes economistas acadêmicos e do governo, tornando-se, após a Segunda Guerra Mundial, a doutrina oficial dos países avançados.  Entre os administradores do Plano Marshall e seus aliados na Comissão Econômica para a Europa, da ONU, ele era obrigatório, assim como entre os administradores do Programa de Recuperação Europeu. A Itália, por exemplo, "era constantemente instada por essas duas agências a incorrer em uma reflação monetária" (de Cecco 1989, pp. 219–21).
Apesar da resistência da Alemanha Oriental, então sob a liderança de Ludwig Erhard e os conselhos de economistas como Wilhelm Röpke, os dois maiores partidos políticos britânicos defenderam o ideal keynesiano de estimular a demanda como meio de se obter o pleno emprego — à época, o principal objetivo. Nos Estados Unidos, oEmployment Act de 1946 reconheceu o papel fundamental do governo federal em garantir uma política de emprego máximo, fazendo uso de operações fiscais. Os resultados dessa revolução foram desastrosos.
Antes de Keynes, o objetivo dos governos era manter o orçamento equilibrado — ao menos, nos países civilizados. O keynesianismo reverteu essa "constituição fiscal". Ao atribuir aos governos a responsabilidade pelas políticas fiscais "contracíclicas", e ao ignorar a tendência dos políticos imediatistas de acumular déficits, ele preparou o terreno para um aumento sem precedentes tanto na tributação, quanto na dívida pública, nas décadas seguintes à Segunda Guerra Mundial (Buchanan 1987; Rowley 1987b; Buchanan, Wagner e Burton 1991).
É com alguma frequência que se diz que Keynes "não era keynesiano", no sentido de que não se pode responsabilizá-lo pelo uso que seus seguidores fizeram de suas teorias. Mas em qual outro caso um "grande nome" do liberalismo, um liberal "exemplar", viu um círculo de acólitos de enorme influência atribuir a ele uma interpretação acentuadamente antiliberal?  Michael Heilperin observa com sarcasmo: "Se [Keynes] era liberal, então era do tipo singular, daquele cujas recomendações práticas constantemente promoviam o coletivismo" (1960, p. 125).
Regras ou "arbitrariedade"?
Em contraste com as antigas ideologias absolutistas e, depois, com as coletivistas, a característica do liberalismo é sua insistência em que haja regras tanto na vida pública, quanto na econômica. O estado de direito como fundamento do Rechtsstaat é um exemplo patente, bem como a doutrina do laissez-faire, que até John Stuart Mill, mesmo que apenas na retórica, foi obrigado a apoiar como um princípio (facilmente revogável): "O laissez-faire, em resumo, deveria ser uma prática generalizada". Adotar o máximo de flexibilidade e margem de ação no exercício do poder não é uma característica que agrade aos liberais. "Um governo de leis, não de homens" é uma conhecida máxima liberal.[9]
Murray Rothbard observou que a oposição de Keynes aos princípios era, de certo modo, uma questão de princípios (1992, 177).[10] Não é exagero dizer que sua aversão às leis, ou "dogmas" — como tinha por hábito chamá-las —, era parte de sua natureza. Essa atitude prevaleceu em seu pensamento ao longo de toda sua vida. Em 1923, ele declarou: "Quando estão para ser tomadas grandes decisões, o Estado é um órgão soberano cuja finalidade é promover o bem maior no todo.  Portanto, ao adentrarmos o reino da atuação do Estado, tudo deve ser considerado e ponderado com base em seus méritos" (1971a, pp. 56–57).
Nos últimos anos de vida, Keynes julgava "bastante sensata" a proposta para que o estado "assumisse a vaga de empreendedor-chefe", "interferindo na propriedade ou na gestão de determinados negócios … [somente] com base no mérito da causa, e não a mando de um dogma" (1980, p. 324). Em carta a F. A. Hayek, a propósito do livroO Caminho da Servidão, então recém-publicado, Keynes repreendeu o autor por não ter percebido que "decisões perigosas podem ser tomadas com segurança em uma comunidade cujos pensamentos e sentimentos sejam justos, ao passo que, se adotadas por quem tenha pensamentos ou sentimentos injustos, seriam uma porta aberta para o inferno" (1980, pp. 387–88).
Essa resistência a agir estritamente de acordo com princípios, alega Robert Skidelsky, é o cerne do "segundo renascimento do liberalismo" de Keynes (após o anterior "Novo Liberalismo" da escola de Hobhouse): Keynes tinha por meta "sobrepor uma filosofia de gestão … uma filosofia de intervenções ad hoc, com base em uma consideração desinteressada" (1988, p. 15). Alec Cairncross afirma: "Ele detestava a servidão a regras. Defendia que os governos exercessem uma arbitrariedade e que os economistas auxiliassem no exercício dessa arbitrariedade" (1978, pp. 47–48). Mas é justamente a natureza ad hoc dessa abordagem de Keynes, a convicção em uma estranha "consideração desinteressada", e a predileção pela "arbitrariedade" governamental, desobrigada dos limites impostos pelos princípios, que vai diretamente de encontro à própria doutrina liberal.
Tradicionalmente, o autêntico liberalismo sempre nutriu uma profunda descrença nos agentes do estado, seja porque lhes falte competência ou imparcialidade, ou ambos.  A infundada confiança que Keynes depositava nos especialistas em economia, cujos sábios conselhos deveriam ser postos em prática por políticos abnegados, é um insulto a essa suspeita totalmente justificada, bem como a toda evidência histórica e teórica que lhe dá sustentação. Em termos contemporâneos, contradiz os ensinamentos associados à escola da escolha pública.[11]
A utopia de Keynes
Muitas vezes, Keynes entregava-se a reflexões sobre a natureza da sociedade futura. Por causa do excesso de inconsistências em seus escritos[12], tornou-se possível a alguns de seus adeptos argumentar que ele, na realidade, queria apenas "vincular o pleno emprego ao liberalismo clássico", que "seu modelo era essencialmente 'capitalismo mais pleno emprego', e que ele nutria certo otimismo quanto à viabilidade do gerenciamento da macroeconomia" (Corry 1978, pp. 25, 28).
Ao longo da carreira de Keynes, no entanto, há indícios evidentes de seu anseio por uma ordem social bem mais radical — em suas palavras, uma "Nova Jerusalém" (O'Donnell 1989, pp. 294, 378 n. 27).  Ele confessou ter entretido mentalmente "possibilidades de mudanças sociais mais vastas que aquelas abrangidas pelas atuais filosofias", mais vastas até mesmo que a idealizada por pensadores como Sidney Webb. "A república de minha imaginação localiza-se na extremidade esquerda do espaço celeste", meditava (1972, p. 309). Inúmeras de suas afirmações, feitas em diferentes décadas, lançam luz sobre essa confissão um tanto obscura. Tomadas em conjunto, confirmam a alegação de Joseph Salerno (1992) de que Keynes era um milenarista — um pensador para quem a evolução social seguia uma direção predeterminada, rumo àquilo que ele entendia ser um final feliz: uma utopia (O'Donnell 1989, pp. 288–94).
Ele ansiava por um estado de "igualdade de satisfação entre todos" (seja qual for o sentido que se atribua a isso) (1980, p. 369), no qual o problema a ser enfrentado pelo cidadão comum seja "como ocupar o ócio, o qual a ciência e os juros acumulados lhe terão garantido, para viver sabiamente, agradavelmente e bem" (1972, p. 328). O progresso tecnológico, gerado pelos investimentos socializados, garantirá automaticamente bens de consumo adequados a todos. A essa altura, surgirão os assuntos mais importantes da vida: "A evolução natural deveria ser no sentido de chegarmos a um nível de consumo conveniente a todos e, depois de suficientemente alto, no sentido de aplicarmos nossas energias aos interesses não econômicos da vida. Assim, é preciso reconstruirmos lentamente nosso sistema social tendo em vista essa finalidade" (1982a, p. 393).
À parte a questão de quem decidirá quando esse nível de consumo será suficientemente alto, é de se perguntar: quais as técnicas que Keynes imaginava existir que possibilitariam tamanha reestruturação da sociedade? Como sempre ocorria quando meditava sobre o futuro, ele não fornecia detalhes.[13] O que fica evidente é que, na utopia futura, o estado será o líder incontestável.[14] Dando um fim à "anarquia econômica", o novo "regime [será aquele] com o propósito deliberado de exercer o controle e a direção das forças econômicas, no interesse da justiça social e da estabilidade social" (1972, p. 305).[15]
O estado, conforme Keynes, tomaria decisões até quanto ao nível ótimo de população. Com relação à eugenia, às vezes ele parece indeciso: "é possível que chegue um tempo, um pouco mais adiante, em que a comunidade como um todo tenha de prestar atenção às qualidades inatas, assim como à mera quantidade dos futuros membros" (1972, p. 292; ver também Salerno 1992, pp. 13–14). Outras vezes, era definitivo: "A grande transição na história da humanidade" terá início "quando o homem civilizado empenhar-se em tomar as rédeas do controle consciente, livre do instinto cego da mera sobrevivência predominante" (1983, p. 859).[16] Desse modo, o estado — na forma do "homem civilizado" — também direcionará e supervisionará a reprodução da raça humana.
Em todas essas questões, o estado será conduzido por intelectuais dotados de sabedoria e visão, dos quais o próprio Keynes era exemplo.[17]  E como poderia ser diferente? Quando se deixa as pessoas livres para agir por conta própria, a grande maioria acaba desamparada, por assim dizer. Como declarou Keynes, "Nem tampouco é verdade que o egoísmo seja em geral esclarecido; o mais frequente é os indivíduos que agem sozinhos na promoção dos próprios fins demonstrarem tamanha ignorância ou inépcia a ponto de nem disso serem capazes" (1972, p. 288). E, uma vez que ele reconhecia que, em questões econômicas, "a solução acertada envolverá princípios intelectuais e científicos que sem dúvida estarão acima dos conhecimentos da vasta massa de eleitores, que são relativamente iletrados" (1972, p. 295), é o caso de se perguntar o quanto da "soberania da democracia" continuaria a existir em sua utopia.
Tendo em vista seus gostos pessoais, era natural que as artes desempenhassem um papel central em sua concepção.  Ele lamentava a mesquinhez dos subsídios estatais para as artes, frugalidade essa defendida pelos "habitantes sub-humanos do Tesouro". Essa política era incompatível com qualquer concepção mais elevada do "dever e propósito, honra e glória [sic] do Estado". Os subsídios para as artes eram o meio pelo qual o estado cumpriria com seu dever de elevar "o homem comum", fazê-lo sentir-se "mais distinto, mais afortunado, mais admirável, mais despreocupado" (citado em Moggridge 1974, pp. 34–35).
Durante a Segunda Guerra Mundial, Keynes exerceu o papel de principal porta-voz daquilo que depois se tornaria o Arts Council. "Morte a Hollywood" era sua máxima. Sentia-se imensamente gratificado por poder relatar que três mil operários ingleses das Midlands, região central da Inglaterra, haviam demonstrado "frenética empolgação" em reação a uma apresentação de balé (citado em Moggridge 1974, pp. 41, 48). No futuro, à parte os subsídios estatais, a apreciação artística seria inculcada nas escolas: assistir a peças e visitar galerias de arte "será um elemento vivo na formação de todos, e a frequência regular a teatros e concertos, parte da educação organizada" (1982b, p. 371).
A rematada banalidade dessa cruzada pelo elevamento estético, sob o patrocínio do estado — fundamental à realização da utopia de Keynes —, só é superada por sua melancolia.

A liberdade não é complicada


por  

definindo.jpg
Clique na imagem para adquirir o livro
Este brilhante livro apresenta uma coletânea de 50 ensaios curtos escritos por Ron Paul sobre assuntos que vão desde aborto, assassinato e aquecimento global a sindicatos, sionismo e tortura.  No entanto, tal coletânea em momento algum se mostra desatinada e disparatada; ao contrário, ela é totalmente unificada em torno de um tema central: a vital importância da liberdade.  A defesa que Ron Paul faz da liberdade, bem como sua veemente oposição aos inimigos contemporâneos desta, o colocam em conflito direto com todos os políticos do establishment americano.
Como ele escreve com sua força característica:
Durante mais de 100 anos, a visão dominante que tem influenciado nossos políticos solapou os princípios de liberdade individual e propriedade privada.  A tragédia é que essas más políticas têm tido forte apoio de ambospartidos.  Não há real oposição ao contínuo aumento do tamanho e da abrangência do governo.  Os democratas são larga e ostensivamente favoráveis à expansão do governo, e se julgarmos os republicanos pelas suas ações e não pelo discurso, chegaremos quase exatamente à mesma conclusão a respeito deles. (p. 51)
Qual exatamente é a liberdade que Paul defende?  Ele deixa claro logo no início do livro o que ele tem em mente:
Liberdade quer dizer o exercício dos direitos humanos em qualquer maneira que a pessoa escolher, desde que não interfira no exercício dos direitos dos outros.  Isso significa, acima de tudo, manter o governo fora de nossas vidas. (p. 11)
Obviamente, as liberdades em questão incluem os direitos de propriedade: uma sociedade livre depende inteiramente da existência de uma economia de livre mercado.
Poucos — talvez nenhum — políticos irão declarar abertamente total oposição à liberdade e à propriedade, mas o fato é que a abordagem convencional a respeito destes valores difere inteiramente da abordagem feita por Paul.  Da maneira como políticos veem a questão, liberdade e propriedade, qualquer que seja sua importância, devem ser contrabalançada por outros valores, como justiça social e segurança.  Não seria sensato, perguntam eles, que os ricos abram mão de um pouco de sua riqueza para ajudar os destituídos?  Por acaso uma concepção absolutista sobre liberdades civis não ignoraria os perigos do terrorismo?  Mesmo que seja um incômodo termos de nos submeter a procedimentos de vigilância e escrutínio estatais, não seria esse um preço válido caso tais medidasreduzam os perigos de um ataque terrorista?
principal mérito de Definindo a Liberdade é justamente o de refutar estas alegações rotineiras.  Como Paul vigorosamente demonstra, qualquer capitulação de uma pequena quantia de liberdade em troca de valores concorrentes, como segurança, rapidamente leva a drásticas reduções — se não na mais completa restrição — da mesma.
Garantir bolsa-alimentação para 2% da população carente parece algo razoável a se fazer.  No entanto, o que não se percebe é que, apesar de apenas 2% receberem benefícios oriundos dos 98%, 100% do princípio de liberdade individual foi sacrificado... Pode-se esperar que a dependência dos tais 2% vai crescer e se espalhar... Eis um bom exemplo de como concessões podem levar ao caos: o imposto de renda de pessoa física começou com uma taxa de 1% aplicada somente a pessoas ricas.  Agora compare isso ao tamanho do atual código tributário. (pp. 209-10)
Essa discórdia de Paul não deve ser descartada como um mero argumento evasivo.  Sua visão não é a de que qualquer ataque às liberdades leva necessariamente a outros ataques.  Sua argumentação, na realidade, é dupla: pessoas que defendem um equilíbrio entre liberdade e outros valores nunca conseguiram demonstrar como estabelecer, de forma íntegra e proba, um limite aos sacrifícios da liberdade; e a experiência prática demonstra que, sempre que se tentou este equilíbrio, a liberdade perdeu.
Exatamente o mesmo processo de capitulação gradual ocorre com a segurança:  "Muitos americanos acreditam que é necessário sacrificar alguma liberdade em troca de segurança com o intuito de preservar a liberdade em um sentido mais amplo." (p. 233)  Esta crença, por várias vezes, levou à defesa de comportamentos gravemente imorais:
Nos últimos anos, especialmente após o 11 de setembro, a maioria do povo americano foi submetida à lavagem cerebral, e passou a acreditar que nossa segurança nacional depende de tortura e que ela tem sido efetiva.  Mas a verdade é que a constituição, nossas leis, as leis internacionais, o código de moralidade, todos a proíbem.  Sociedades civilizadas, por centenas de anos, têm rejeitado seu uso... A velha artimanha dos defensores da tortura é perguntar o que você faria se soubesse que alguém tem alguma informação vital que, se fosse revelada, poderia salvar outras vidas? ... A questão que aqueles que apoiam o uso da tortura se recusam até mesmo a perguntar é se uma pessoa em um grupo de 100 pessoas tem informação vital — e você não sabe qual das pessoas ela é —, você considera justificável torturar as 100 pessoas para obter a informação?  Se, ainda assim, a resposta for sim, temo que nosso atual sistema de governo não possa sobreviver. (pp. 271-72)
Porém, se renunciássemos, em todas as instâncias, ao uso da tortura, não estaríamos colocando nossa nação em risco?  Muito pelo contrário: a visão de que a segurança depende do estado — mais ainda, da tortura a mando do estado — é uma completa ilusão.  Se existe uma real ameaça à vida e à liberdade, as pessoas em uma sociedade livre podem lidar com ela voluntariamente.  A coerção estatal é supérflua.  
Em uma sociedade livre, a qual depende muito pouco ou nada do governo, qualquer crise real serve para motivar os indivíduos, as famílias, as igrejas e as comunidades a se arregimentarem e trabalhar para resolver a crise, seja ela de causas naturais — como enchentes, seca, fogo, doenças ou predadores — ou de origem humana. (p. 233)
Ameaças representadas por nações estrangeiras seriam uma exceção a este raciocínio?  De modo algum.  Estas supostas ameaças são grosseiramente exageradas com o intuito de engrandecer o poder estatal.  A chamada guerra ao terror ilustra perfeitamente como o estado utiliza uma crise superestimada em proveito próprio:
Só para tranquilizar o leitor, mesmo com todos os erros que contribuem para os perigos terroristas, ainda é mais provável que um americano morra atingido por um raio do que por ataque terrorista.  Reconheço que esta é uma afirmação perigosa, pois certamente terá alguém em Washington que vai querer propor uma lei declarando "guerra aos relâmpagos". (p. 145)
Com uma coragem anormal para alguém que tentava a presidência, Paul observa que a errônea busca por "segurança" levou os EUA a se tornar uma ameaça para outras nações.
A maioria dos americanos não consegue conceber que outros países vejam os Estados Unidos como uma ameaça.  Nosso governo é o único que faz incursões em terras distantes a fim de derrubar governos, montar bases militares e jogar bombas na população local.  Os Estados Unidos foram o único país do mundo que já utilizou armas nucleares contra as pessoas. E ainda nos surpreendemos que tanta gente no mundo nos veja como uma ameaça? (p. 236)
A política americana de agressão externa infelizmente não começou nos governos Bush e Obama.  Estes presidentes apenas deram continuidade às políticas de seus predecessores eminentes.  Dentre estes, ninguém menos que o venerado (pela esquerda) Franklin Roosevelt, que falava em "libertar-se do medo", mas que era mestre em açular essa mesma emoção que ele declarava querer abolir, e tudo com o objetivo de melhor implantar seus esquemas belicosos:
Ignoro as motivações de Roosevelt e seus objetivos, mas os resultados de suas ações foram péssimos para a causa da liberdade nos Estados Unidos.  Sete meses depois de seu discurso em prol da liberdade, Roosevelt suspendeu todas as remessas de petróleo para o Japão, o que contribuiu para o ataque a Pearl Harbour.  Ao mesmo tempo em que Roosevelt pregava uma visão distorcida de liberdade, ele nos conduzia em direção à guerra. (p. 206)
Vejamos agora o que Ron Paul tem a dizer sobre o racismo.  Surpreendentemente, ele encontra uma ligação entre o racismo nos EUA e a belicosa política externa americana:
Períodos de guerra são épocas em que germinam as piores formas de racismo.  E isso deriva do grande amor que o governo tem em transformar em ódio os preconceitos existentes, a fim de mobilizar as massas. ... Se odiamos o racismo, também deveríamos odiar as guerras, pois são elas que criam essas formas malignas de racismo. ... O racismo estimulado pelo governo é concebido justamente para aumentar o poder nas mãos do estado.  É conhecida a tática, usada pelos que estão no poder, de desviar a opinião pública — que naturalmente teria como alvo o próprio governo — para a direção de algum inimigo estrangeiro malvado.  (pp. 214-15)
A batalha de Paul contra o imperialismo americano lhe trouxe muita fama, mas ele é igualmente famoso por sua campanha em prol de uma moeda forte e de uma economia livre.  Com efeito, essas duas batalhas são intimamente próximas, uma vez que é o keynesianismo militar que dá sustentação intelectual aos maciços gastos governamentais necessários para a implantação de um império.
O keynesianismo militar apoiado por conservadores e esquerdistas tem contribuído para o esbanjamento de uma obscena montanha de dólares de impostos, volume esse que atualmente supera a soma dos gastos militares de todas as outras nações do mundo. ... O keynesianismo militar induz a políticas mercantilistas. Com frequência, nossas forças armadas se deslocam pelo mundo de acordo com os investimentos corporativos feitos por empresas americanas nestas partes do globo, e tem sido assim por mais de 100 anos. ... Há algo no keynesianismo militar que me causa ainda mais desdém do que o keynesianismo econômico doméstico.  Foram várias as ocasiões em que vi como a agenda conservadora — que em teoria defende cortes nos gastos do governo — foi sobrepujada por este apego ideológico a gastos militares ilimitados. (pp. 161-62)
Paul não se limita a apenas criticar; ele também apresenta uma solução para esta situação imoral e desanimadora.  O governo deveria abandonar por completo o intervencionismo econômico e permitir à economia funcionar desimpedidamente.  Em específico, o governo deveria renunciar completamente ao controle da oferta monetária.  O grito de guerra de seus seguidores, "Acabem com o Fed", que se tornou mundialmente conhecido, é parte de um programa ainda maior:
Eu gostaria de ver um dólar tão sólido quanto o ouro.  Gostaria de ver o sistema bancário operando como se estivesse em um arranjo de livre mercado, isto é, sem um banco central para protegê-los.  Gostaria de ver moedas concorrenciais surgirem no mercado e que o governo as deixasse prosperar. ...  O dinheiro de papel é como uma droga na qual o governo está viciado. ... O governo tem de se retirar do caminho e deixar outro sistema surgir, sistema este criado espontaneamente a partir das escolhas humanas. (pp. 193)
Todo o programa político de Paul se baseia firmemente em princípios morais.  Ele, de forma inspirada, resume sua crença desta maneira:
Que sistema moral deveria o governo adotar?  O mesmo que os indivíduos seguem. Não roubar, não matar, não prestar falso testemunho, não invejar, não incentivar o vício.  Se o governo ao menos seguisse as leis morais que todas as religiões reconhecem, viveríamos em um mundo de paz, prosperidade e liberdade.  Tal sistema é chamado liberalismo clássico. A liberdade não é complicada. (p. 173)

David Gordon é membro sênior do Mises Institute, analisa livros recém-lançados sobre economia, política, filosofia e direito para o periódico The Mises Review, publicado desde 1995 pelo Mises Institute. É também o autor de The Essential Rothbard