segunda-feira, 26 de agosto de 2013

Os gregos, apesar da crise, ainda se reúnem pela música

Simone Leitão - 

Os gregos, apesar da crise, ainda se reúnem pela música

(A pianista Simone Leitão foi à Grécia tocar num festival de música clássica e, de algum ponto do Mar Egeu, na volta, ela enviou para o blog esse relato da crise vista de perto) 
Vim à Grécia convidada para o 9º Festival Internacional de Música clássica de Cyclades em Syros. Esse é hoje um festival estabelecido e um dos mais importantes do setor nesse país. Syros é uma ilha que praticamente vive do turismo como tantas outras do lindo mar Egeu, e teve seu apogeu econômico no século XIX, a partir da revolução Grega de 1821; Syros recebeu imigrantes de Creta, Psara, Chios, Ásia menor e se transformou no centro das atividades marítimas e rota de comércio de Cyclades. O apogeu durou até o início do século XX. Vestígios dessa era de fartura se encontram nas construções, entre elas a belíssima, aconchegante e confortável casa de Ópera construída em 1840, onde acontece o festival.
Carlos, motorista que em Atenas me levaria ao Porto, não esperou pergunta. Imediatamente começou a me mostrar os efeitos e os sinais da crise no “sightseeing” da cidade. Alguns estádios das Olimpíadas de 2004 e algumas obras abandonadas. Cheguei em uma terça-feira à tarde, era um dia útil, mas notei muitos estabelecimentos comerciais fechados. Perguntei se os estádios que via eram usados. Carlos me respondeu que os que foram construídos para as Olimpíadas têm alto custo de manutenção, são pouco usados. Os que já existiam e foram reformados têm mais eventos como já tinham antes.
Carlos, assim como a maioria dos gregos que conheci, acompanha de perto aeconomia da Grécia e da Europa. Acham que o Brasil está muito bem. Apesar do esfriamento do crescimento que contei, sua visão foi que temos futuro e presente. Enquanto eles não sabem do futuro e sentem que o presente lhes está sendo roubado. Carlos, em seus 45 anos, se emocionou ao falar do desalento da juventude atual.
Crise é assunto sempre presente. O tema do festival foi crise. O garçom do hotel onde fiquei contou longamente seu sofrimento para Efy, a diretora do festival, quando jantávamos no encontro de boas-vindas: este ano ele se aposentaria, mas não poderá, não sabe quando isso vai acontecer e teve seu salário e benefícios cortados. Terá que viver com menos e trabalhar mais. O festival, assim como a maioria dos eventos, vive de financiamento do governo. E eles lutam com uma burocracia irracional e atrasos impiedosos. A mesma agência do festival tem uma série de música de Câmara e Ópera em Atenas. O atraso dos aportes é de 6 meses a 2 anos depois que o evento acontece. Vivem até lá da venda dos ingressos, que está cada vez mais escassa.
A crise desembarcou mais forte em Atenas. Muito desemprego. Nas ilhas, graças ao turismo, de maio a setembro tem trabalho. Se come o que se planta e pesca na ilha. É vida simples, sem glamour. Cardápio restrito nos restaurantes e sem lojas de grife. As lojas, hotéis, restaurantes, taxis, tudo existe para o turista. Na verdade, somos encorajados a comprar roupas e presentes feitos na Grécia. Eles estão fumando muito. Em todas as idades. Perguntei a razão a uma jovem que não fuma. Ela é estudante de piano clássico em Atenas. A resposta foi direta: estamos deprimidos. Todo o serviço é feito por gregos, ao contrário de outros países europeus que contam com braços estrangeiros: africanos, asiáticos e outros.

A história de Efy reflete esse momento. Mãe de 4 filhos, começou trabalhar aos 38 anos. Hoje, aos 50, ela, empreendedora, é dona da única agência e produtora de música clássica credenciada internacionalmente pela IAMA da Grécia. O atual marido, nove anos mais jovem, ficou desempregado e hoje trabalha com ela, sendo o designer gráfico, web administrator. As duas filhas mais velhas fizeram mestrado e doutorado na
Inglaterra, com bolsa do governo inglês, e se estabeleceram lá. Efy busca parcerias com outros países e embaixadas para manter a arte num país em crise. O festival tem sempre grupos escandinavos que contam com todo apoio financeiro dos governos de seus países para manutenção e gastos de seus artistas em terras estrangeiras. Eles querem manter relação com festivais no Rio até 2016 já que essa é a próxima cidade olímpica. Pensam que seria um bom argumento e oportunidade de apoiarmos a Grécia.

Em um país de 10 milhões de pessoas, onde 2 milhões de trabalhadores ficaram desempregados nos últimos três anos, onde um em cada três em idade produtiva não tem salário, toda parceria é bem-vinda. Eles atribuem a crise profunda à completa irresponsabilidade de vários governos e da corrupção desenfreada.
Compartilhava as frustrações de uma nação perder tanta verba com corrupção, como o Brasil, com Christos, meu motorista em Mykonos e ele lembrou: corrupção existe em vários países, não se deve parar de lutar contra esse mal, porque ele pode contaminar uma economia saudável irreversivelmente.

Na sexta, depois de correr trinta minutos e ensaiar quatro horas, almoço um carneiro em uma viela charmosa que dá para a rua do teatro. Todos falam grego comigo. Dizem que tenho cara de grega. Me sinto incluída!

Observo que os gregos são unidos. Podem estar em momento difícil, mas mantêm a classe, o charme e a calma. São ritualísticos e, a princípio, racionais; com  poesia. O país que mais influenciou a formação de nossa identidade ocidental, hoje, não consegue identificar seu futuro. Mas permanece. A fé cristã ortodoxa inquestionável é somente uma das sinalizações que esse é um lugar onde as coisas ficam. Dúvidas, nunca tiveram tantas. Mas uma das instituições que seguram a base desse país é a família. Idosos são muitos. Mas são na maioria cuidados diligentemente por sua descendência.
No festival, uma surpresa boa: os concertos tinham excelente público. Estavam ávidos por boa música. Quando toquei o trio nº. 2 de Brahms, com o violoncelista pernambucano radicado nos EUA, Léo Altino, e o violinista grego Yannos Margaziotis parecia que todo romantismo intelectual de Brahms se tornava mais visceral, mais experimental. Coisa que Brahms não é. Até o lirismo poético e confortável de Dvorak, testemunha de uma época de paz e prosperidade, tinha que ter uma dose de dúvida e sofrimento. A interpretação do mesmo texto realmente muda com os tempos. Ele reflete o repertório de emoções pertinente a uma determinada época. Foram assim os concertos desse festival na Grécia. Intensos e cheios de um certo abandono emocional.

Nessa atmosfera de dúvida, a paz ainda me emociona. O som sereno do vento. Permanente. Esse mar azul. O cuidado com a aparência e o interesse genuíno pelo estrangeiro. Estratégia. Uma palavra que eles inventaram, assim como tantas outras, parece hoje perder o Kratos (poder). Gregos não conseguem identificar a estratégia para manutenção no seu futuro, cada vez mais incerto.

Nenhum comentário:

Postar um comentário