sábado, 3 de março de 2018

Polêmica no cardápio


Aconteceu em Belo Horizonte, no começo de fevereiro. O conceituado restaurante Glouton, do premiado chef Leonardo Paixão, recebeu uma forte crítica no Facebook sobre os preços praticados nos seus pratos – mais especificamente, a papada de porco. Até aí, nada de novo no mundo dos críticos virtuais.
O interessante foi a resposta do dono do restaurante, também no Facebook, que optou por descrever em detalhes a complexidade na gestão de um restaurante, passando pela formação de custos de um prato de alta gastronomia (mesmo que com ingredientes simples), detalhando processos, enumerando a equipe envolvida e as horas de trabalho. Em resumo, uma bela aula sobre a complexidade de ser dono de um restaurante, fazendo gastronomia exigente, de alta performance.
A polemica está rendendo bastante assunto, com defensores e acusadores de ambos os lados. Abaixo os textos.
A crítica:
“A PAPADA PRECIOSA, por Hanna Litwinski
Começo esse post com um pedido. Por favor, “leia” as imagens para entender melhor o que está descrito a seguir.Existem alguns cortes de carne que são historicamente relegados por nós brasileiros. Aliás, essa classificação de carne “de primeira”, “carne de segunda” que fazemos é um completo absurdo. Não existe um corte de carne mais nobre que outro (isso estende-se a todos os ingredientes) e sim o modo mais adequado de preparo para extrair o que cada parte tem de melhor. Existem cortes totalmente ignorados por nós que são verdadeiras iguarias em outros países.
Esse é o caso da papada suína ou bochecha suína. Com um sabor forte, textura delicada e rica e gordura, é um corte feito a partir do pescoço do porco. Esse pitéu vem sido introduzido e evidenciado nos cardápios dos jovens talentos da nossa culinária como o fera Jefferson Rueda. No seu restaurante, o afamado Casa do Porco em São Paulo, a papada é apresentada na inusitada versão de sushi.
Dito tudo isso, onde eu quero chegar? Pois bem, sou assinante do ChefsClub; um dentre tantos grupos de descontos. Hoje recebi um e-mail anunciando um prato em promoção no restaurante Glutoun, do nosso aclamado chef Leonardo Paixão. É um prato como podem conferir pelo “print” da imagem (ilustrativa, acredito que não é a porção servida); belo, simples e convidativo como todo bom prato deveria ser. Na descrição: papada suína acompanhada de mandioca, batata doce, acelga e molho de laranja. Que poesia! Ingredientes simples, saborosos e abundantes na mesa brasileira. Entretanto, a gente tem um talento enorme para complicar as coisas. O que era pra ser simples vira modinha, gourmetiza. E aí a papada honesta, saborosa e até outro dia desperdiçada (sim, a maioria dosaçougues só faz esse corte sob encomenda porque não tem muito valor comercial) passa a ter peso de ouro
O “prato apaixonante” como é descrito no anúncio sai dos originais R$74,00 pela bagatela de R$51,80 na oferta! Só faltou a emenda: “Corram! Promoção assim, você não vê todo dia”! Fala sério, gente?! Porque insistimos em fazer essa triste inversão de valores? Será que a gente tem um prazer sórdido em ser feito de trouxa? Porque transformar coisas simples, acessíveis e que são absolutamente maravilhosas por isso mesmo, em produtos de boutique? Com esse preço (entendo e sei bem de todos os custos envolvidos num restaurante) o que era pra ser mais acessível justamente porque é desconhecido e desvalorizado por aqui é apresentado ao público numa lamentável versão deluxe. Não existe diferença na nobreza dos alimentos como afirmei anteriormente, mas o valor de custo sempre existiu e é enormemente variante de produto pra produto a partir da básica lei da oferta/procura até análises muito mais complexas que determinam o valor comercial das coisas.
Falta comunicação na nossa gastronomia. Falta informação, falta cultura e por vezes sinto falta de um pouco mais de honestidade. Este texto não tem a intenção de polemizar muito menos de condenar. “Ninguém é de todo bom ou de todo mau” como nos ensinou a maravilhosa Rachel de Queiroz. Aliás, essa polarização e a mania de colocar as coisas no plano do antagonismo é que está empobrecendo e emburrecendo o nosso mundo. Existem muitas nuances, perspectivas e discussões valiosas que nos tornam absolutamente melhores. Esse é o meu propósito sincero aqui; um convite ao bom debate através do portentoso exercício da argumentação, fundamentada e lógica.
Em tempo: pesquisei no pai dos burros Google, e, dos poucos açougues que comercializam a papada suína, encontrei a Piné Casa de Carnes de Campinas/SP. O preço do kg? R$8,99. Ah! Não precisa correr porque não é promoção.”
A réplica do chef  Leo Paixão:
“Gostaria de começar o texto agradecendo ao enorme carinho dos nossos queridos conterrâneos. Fiquei emocionado com a quantidade de gente que nos apoiou nos comentários. Fico muito feliz que exista tanta gente que valoriza, respeita e aprecia a gastronomia. Isso me deixa muito inspirado para continuar na luta. Tenho muito carinho por vocês que compartilham comigo essa paixão pela culinária.
Recentemente foi escrito um texto que me cita e cita meu restaurante, Glouton, como exemplo de cobranças abusivas por ingredientes baratos “gourmetizados”. Disse também que “Falta informação, falta cultura e por vezes sinto falta de um pouco mais de honestidade.”
Acho muito fortes insinuações de desonestidade direcionadas aos empresários do setor de restaurantes, um dos mais difíceis do mercado.Apesar de ter dito no texto que entende bem os custos envolvidos em um restaurante, vou fazer uma continha aqui e dar um pouco mais dessa informação.
Nosso gasto mensal com água, luz, gás, aluguel, telefone, alarme, limpeza de fossa, lavanderia, controle de pragas, contador, recolhimento de lixo e manutenção em geral (equipamentos, jardinagem, limpeza de calhas, quebra de pratos, taças, perdas de talheres e etc) é aproximadamente 70.000.Nosso gasto com salários, transporte de funcionários e gratificações é aproximadamente 135.000.
Nosso gasto mensal com impostos em geral (somos uma média empresa) é 95.000 reais.Nosso gasto mensal com produtos em geral: insumos e bebidas é em torno de 160.000Atendemos uma média de 4000 clientes por mês. Sendo assim nosso gasto por cliente atendido é 115 reais, sendo que desse valor 40 reais é o custo de produtos aproximado.
Vale frizar que sempre a margem direta sobre as bebidas é pelo menos 4 vezes menor que sobre alimentos, uma vez que custa muito mais caro para se preparar um prato que servir uma bebida. Dessa forma nosso custo de matéria prima vendida, ou CMV, é 34,7% de nossos gastos. Daí você pode ver como o Glouton é um restaurante bem administrado.
Poucos conseguem manter um CMV destes, próximo a 33,33%, que é considerado o ideal para uma administração saudável.Trocando em miúdos, do custo dessa papada pra mim, somente 1/3 foi de ingrediente.
Fazendo essa continha perversa por cliente e analisando os números de forma fria, se um casal vem aqui com Chef’s Club e o consumo fica em 250 reais (duas papadas e um vinho de 102, água gratuita), você paga 205,60 (44,4 reais de desconto). Essa conta é 24,4 reais mais baixo que o simples custo médio de dois clientes na casa seja, “alguém pagou sua conta.”
Respondo à pergunta:
“Será que a gente tem um prazer sórdido em ser feito de trouxa?” Na realidade acho difícil isso acontecer na gastronomia. Manter um restaurante com os custos altíssimos e a pequena margem de lucro é tão difícil que, segundo a ABRASEL 70% das casas abertas no Brasil fecham antes de completar 5 anos. Se fosse esse negócio da China, a história seria bem diferente.
E respondo especialmente à essa, muito obrigado por me dar a chance:
“Porque transformar coisas simples, acessíveis e que são absolutamente maravilhosas por isso mesmo, em produtos de boutique?” Ora, essa é a essência da gastronomia e o real sentido da minha vida. Isso é meu sonho, de transformar o ordinário em extraordinário! É duro, é árduo e muitas vezes vai contra muita gente, mas é a poesia da minha existência. E citando também Rachel de Queiroz:
“A vida sem sonhos é muitíssimo mais fácil. Sonhar custa caro. E não digo só em moeda corrente do País, mas daquilo que forma a própria substância dos sonhos”.
Agora, pensando na papada, eu não pago 8,90 no quilo, pago 6,50. Ela gera uma perda de 70% no processo de limpeza e desengorduramento e mais uma perda no forno. Segundo nossos cálculos, cada quilo de papada nos da 1 porção. Servimos aproximadamente 160 papadas por semana. Ela precisa de duas funcionarias qualificadas durante meio horário para a limpeza, mais tempo de outros dois funcionários para grelhar. Gastamos muito suco de laranja espremida na hora, caldo de carne feito no Glouton com mocotó e carne moída. Esse caldo leva dois dias para ficar pronto, gasta energia de 5 horas de forno para cozinhar a carne, mais 12 horas cozinhando, mais 6 horas reduzindo. No dia seguinte uma funcionaria escorre a papada e enrola ela durante meio horário. Outro funcionário pega os caldos e faz o molho, que leva 6 horas para reduzir e vários temperos. A guarnição de mil folhas de mandioca gasta 2 quilos de manteiga e sete de mandioca por tabuleiro, um tabuleiro da 36 porções, gasta o dia inteiro de duas funcionarias para laminar e intercalar as mandiocas, depois 7 horas de forno durante a noite. Depois resfria por 24 horas e é porcionada por outro funcionário, grelhada e finalizada. Os pasteizinhos de batata doce são feitos com recheio de puré de batata e massa de guioza que custa caro. A acelga é selecionada, aparada e lavada por outro funcionário. O prato é servido em uma louça artesanal super frágil que custa 110 reais por prato e possui razoável quebra, que entra no custo de manutenção. Se colocar tudo no papel, ela é mais cara que o atum que, apesar de custar 89 reais o quilo, não gasta equipamento, mão de obra ou tempo de preparo.
Dando um pouco mais de informação, carnes de porco não são divididas entre carne de primeira e carne de segunda. O critério para dividir as carnes é a dureza: carnes de primeira são naturalmente macias e carnes de segunda são, por definição, mais duras e precisam ser amaciadas pela cocção para serem comidas. É uma nomenclatura besta, mesmo porque uma rabada, por exemplo, tem tanta perda em osso que fica mais cara por quilo que um filé mignon.
Eu realmente acredito na gastronomia, acredito na magia da boa experiência em um restaurante, que inclui desde a decoração, climatização, ambiente, serviço, bebidas e comidas. Acho que é das coisas mais extraordinárias da vida, alimenta o corpo e a alma, um lugar para ser feliz com a família, amigos e pessoas que ama. Faço isso com muito carinho e tomo extremo cuidado para cobrar o preço mais justo possível por isso.
Abraços,
Leo PaixãoChef, proprietário Restaurante Glouton.”
Ivan Primo Bornes (ivan@pastificioprimo.com.br) – empreendedor e fundador da rede de rotisserias Pastificio Primo (www.pastificioprimo.com.br)

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