sábado, 28 de setembro de 2013

Evidências do real



O ensinamento de Mao está correto: em sua forma mais radical, uma revolução possui caráter cultural. É triste que hoje tenhamos de retomar esse ensinamento a partir das decisões do grupo neoconservador postado em torno de Bush.
O livro Evidências do real de Susan Willis, entretanto, resgata o papel crítico dos estudos culturais. Sua análise do 11 de Setembro como um fenômeno cultural não trata de um aspecto menos importante do que as dimensões políticas ou militares – pelo contrário, põe em foco o núcleo do conflito existente. Este livro se torna uma referência indispensável a todos os que se preocupam em saber o que está acontecendo no mundo de hoje. Ignorá-lo significa querer manter-se em ignorância abençoada – a seu próprio risco.
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“Uma obra prima de nosso tempo”
Por Daniel Puglia.*
“A velha glória” é o primeiro ensaio de Evidências do real, de Susan Willis. Nele podemos ler: enfeitando os carros com bandeiras, “nós, os norte-americanos, [mostramos saber] que a guerra contra o terrorismo é o código para a preservação de nossas rodovias interestaduais, nossos carros, nossos bairros de classe média e toda a rede petroquímica que nos alimenta e veste” (p.24). Nessa pequena passagem estão imbricados três procedimentos que parecem nortear o livro como um todo: a busca incessante do oculto revelado pelo aparente, o estabelecimento de correlações inusitadas e, por fim, um tom de ironia comedida – da calmaria antes da catástrofe. Assim, o patriotismo representado na bandeira é escovado a contrapelo e o estandarte nacional surge como o fetiche da religião do comprar e vender, o lábaro que marca um povo no pasto dos shopping centers. E a guerra adquire novas feições não apenas contra o terrorismo, mas, sobretudo, contra a perspectiva aterrorizante de serem destruídas as possibilidades de consumo.
O desfile mundial do pavilhão estadunidense encena o caráter a um só tempolúgubre e festivo, aparvalhado e mesquinho, de um modo de vida que encobre osofrimento humano real sob o manto do prazer mercável. Evidentemente nossaautora não se coloca contra os avanços da ciência e da tecnologia mas, com razão, parece não ter muita paciência para os problemas da classe média norte-americana, afinal, bombas e granadas made in America garantem o horizonte apalermado de uma eterna infância cevada por cartões de crédito.
O caráter contagioso e virtualmente ubíquo da mercadoria adquire novaentonação com o ensaio “Nós somos o antraz”. Após o 11 de Setembro, o temorde um novo ataque adquiriu contornos de realidade quando correspondênciascom antraz pareciam ser outra ameaça ao sonho americano. No entanto, emboraalgumas cartas contivessem esporos, milhares continham apenas açúcar ou talco, e esses falsos alarmes são particularmente significativos. Escolas, fábricas e repartições públicas eram fechadas; a normalidade do cotidiano, interrompida.
“Talvez os perpetradores estivessem fartos da cultura do ‘Tenha um bom dia’  e quisessem expressar o lado negro, oculto e inconfesso de uma sociedade quegosta de exibir a face sorridente do consumo” (p.34). A possibilidade de atrapalhar o curso usual dos acontecimentos acrescenta um novo matiz ao patriotismo aparentemente hegemônico. Como escreve Willis, ainda enquanto as bandeiras eram agitadas de modo entusiástico, um rumor e uma dúvida davam expressão aos descontentamentos cotidianos.
Mas a crítica latente sinalizada nas ameaças de antraz tem ainda outro grau decontundência. Um mês depois das homenagens aos mortos nas Torres Gêmeas, um atirador passa a alvejar pessoas em Washington. O significado disso é o assunto do ensaio “Tudo que vai, volta”. A vida transformada num cassino, a existência submetida ao caos do livre mercado, tem na loteria de morte sua materialização extrema. Essa mesma vida, protegida na fantasia palpável do consumo, sofre um severo golpe quando a violência rotineiramente praticada externamente, em países distantes, ou internamente, nos bairros mais pobres, atinge pessoas dos subúrbios afluentes. Ocorre que, se a exploração do trabalho alheio não é um dado natural e se os paraísos da bonança têm de ser mantidos também pelo uso da força, então o atirador de Washington não é uma figura anômala, mas sim um efeito bumerangue, o feitiço contra o feiticeiro: “… a utilização da força criminosa é a verdade mais fundamental de nossa nação” (p.60). Na lógica espetacular da cultura e do comportamento psicossocial, Willis deslinda interdependências materiais precisas, em que o esforço de guerra é a corrente subterrânea da militarizada democracia estadunidense. “Se há uma verdade final transmitida pelo atirador, trata-se de nossa prontidão de abrir guerra contra os civis” (p.66).
A existência de um governo paralelo, instalado em abrigos nas montanhas ao redor de Washington, e a realização de exercícios militares que simulam uma invasão por exércitos inimigos: eis algumas das evidências recolhidas no ensaio “Somente o Sombra sabe”. O fetiche pela bandeira nacional pode ter o efeito sufocante de uma atmosfera impregnada por antraz. Por seu turno, os alvos potenciais de um atirador vivem a incerteza de saber quem governa suas vidas. Nesse sentido, os escritórios governamentais abaixo da superfície casam perfeitamente com os negócios escusos praticados na Casa Branca. Mas, talvez para que a população não tenha dúvidas, temos a simulação na Carolina do Norte: “… segundo informações militares, dez das áreas centrais do estado – todas rurais e carentes em maior ou menor grau – fazem parte de um cenário imaginário, fazendo a vez de uma nação tomada por um governo repressor” (p.81). Ou seja, a ficção bélica se encarrega de dirimir desconfianças: a nação realmente está à mercê de um governo repressor, tramando nas sombras, atacando à luz do dia.
“O maior show da Terra” é o ensaio que se detém sobre três ousadias: um rapaz que se jogou nas cataratas do Niágara apenas com a roupa do corpo e sobreviveu; outro que despachou a si mesmo, num caixote, no compartimento de cargas de um aeroporto; e, por fim, um ilusionista norte-americano que jejuou durante 44 dias suspenso em uma caixa de vidro sobre o Tâmisa. Willis escreve:
“Não temos como reconhecer nossos realizadores de proezas como evidências do real, figuras que tocam os mais profundos nervos da História para dar visibilidade àquilo que reprimimos. Por não conseguir ler a verdade na metáfora, não conseguimos viverhistoricamente” (p.102).
No arremate do texto, a autora lembra que o privilégio e a riqueza permitem que os Estados Unidos produzam tais proezas, enquanto os  problemas reais parecem estar relegados a outros mundos.
Em “¿Quién es más macho?”, ensaio que encerra o livro, as fotografias dastorturas cometidas por soldados estadunidenses na prisão iraquiana de Abu Ghraib são o fio condutor de um inquérito: o desvelar do inconsciente da economia política  capitalista. Para efetivar o saque no país invadido são mobilizados os milhares de jovens norte-americanos que têm limitadas perspectivas de emprego e que aprendem a aniquilar enquanto são aniquilados, tanto física quanto psiquicamente.
Assim, nas fotografias perturbadoras “jovens e viçosas garotas norte-americanas que facilmente passariam por funcionárias da Disney aparecem sorrindo e fazendo o sinal de positivo com o polegar junto a uma pilha de prisioneiros nus” (p.106).
Recorrendo ao vasto arsenal da psicopatologia de sociedades lastreadas na espoliação, indo da Ku Klux Klan, passando pelos seriados policiais televisivos echegando aos fantasmas da heterossexualidade mal resolvida, “¿Quién es másmacho?” constitui uma verdadeira peça de acusação contra o empreendedorismo viril, uma das formas espectrais do mercado. Nesta aparição moderna, o domínio sobre o outro, a supremacia competitiva e o ápice do vencedor se transformam todos numa imagem ideal a ser alcançada – imagem esta que recalca, sob o encanto abjeto da pornografia da guerra cotidiana, a mesmice a que estão reduzidas quaisquer individualidades.
Na introdução a seu livro, Willis escreve que os ensaios “foram escritos comuma linguagem que procura capturar a dicção norte-americana”. De fato, o leitor poderá apreciar a era pós-11 de Setembro em seis textos formadores de um caleidoscópio que, ao ser lido e relido, emite a familiar estranheza do som do futuro.
A paradoxal naturalidade desse som, preservada na tradução brasileira, talvez seja também a crônica de uma crise anunciada. Uma crise que, agora mais nítida, realça a urgência das palavras de Slavoj Žižek para essa obra-prima de nosso tempo.
Publicado originalmente no volume 28 da revista Crítica Marxista.

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