sábado, 3 de agosto de 2013

O arrocho da classe média (Revista Época, em 09.06.2013)


Despesas com serviços como médicos e escola subiram mais do que a inflação oficial. 
Por que isso ocorreu – e como lidar com a alta dos preços
JOSÉ FUCS, ISABEL CLEMENTE E THAIS LAZZERI, COM MARCOS CORONATO E ANA LUIZA 
CARDOSO
Alan Alencar com a mulher, Diane, e a filha, Laura. Em vez de restaurantes, fast-food. 
Em vez de cinema, TV pela internet (Foto: Rafael Motta/NITRO/ÉPOCA)
O mineiro Alan dos Santos Alencar, de 43 anos, responsável pela área de tecnologia de
 uma revenda da Volvo e professor universitário, teve de promover um ajuste dramático 
em suas contas para não ficar no vermelho. Depois de analisar em detalhes as despesas
 com sua mulher, Diane, de 42 anos, e a filha Laura, de 15 anos, ele se deu conta de que 
os gastos com restaurantes, cinemas e saídas à noite estavam pesados demais. Com uma 
renda familiar de R$ 8 mil, teve de adotar um remédio amargo, mas inevitável: cortar gastos.
 As idas semanais a restaurantes foram substituídas por refeições em praças de 
alimentação de shoppings. O cinema foi trocado por um serviço que oferece filmes e séries 
de TV pela internet. A viagem de férias da família ao exterior ficou para depois. Agora, 
Alencar diz que, antes de fazer qualquer compra expressiva, ele e Diane avaliam se o gasto é prioritário – e como impactará as contas e os projetos familiares no longo prazo. Sua filha 
passou a ter uma mesada de R$ 500 para cobrir suas despesas do dia a dia. “É uma maneira
 de ela aprender a administrar o próprio dinheiro – e de a gente controlar melhor os gastos”, 
afirma. “Descobri que ter uma adolescente em casa muda muito as contas de uma família.”
O tomate e a ameaça da inflação
O caso de Alencar não é isolado. Hoje, no Brasil, milhões de famílias da classe média
 tradicional, que viviam com uma folga relativa até pouco tempo atrás, têm de fazer as
 contas e mudar os hábitos para manter o orçamento sob controle. Fazem parte desse 
contingente os assalariados e os empresários de pequeno e médio porte relativamente bem-sucedidos, com um patrimônio conquistado quase sempre com o próprio esforço, além dos 
profissionais em ascensão na carreira. Em sua maioria, eles têm diploma universitário, nível
 cultural elevado e estão acostumados a frequentar restaurantes, bares, cinemas e shows. 
Sempre que possível, viajam para fora do país com a família ou com os amigos. Segundo a
 Fundação Getulio Vargas (FGV), a classe média tradicional, também chamada classe A/B, é
 uma massa formada por 21,5 milhões de pessoas, o equivalente a 11,2% da população 
brasileira. Embora sua importância econômica esteja diminuindo nos últimos anos, com a 
ascensão das faixas de menor renda, a classe média tradicional ainda representa cerca 
de um quarto do consumo nacional, de acordo com a Nielsen, uma empresa de pesquisa 
e análise de mercado – uma fatia estimada em cerca de R$ 800 bilhões por ano, equivalente 
a 35 vezes o custo do Bolsa família para o governo em 2013.
Ruth de Aquino: Não enlouqueça com os preços
A classe A/B responde por 86% das matrículas em escolas particulares, 78% das viagens 
e 74% dos gastos com lazer e cultura do país. “O desenvolvimento nos últimos dez anos
 não contemplou a classe média tradicional”, diz o economista Waldir Quadros, professor
 da Universidade de Campinas (Unicamp). Estudioso da classe média brasileira, ele defendeu,
 no final dos anos 1970, sua tese de mestrado. “A classe média está espremida, nervosa.”
Ao contrário do que ocorre com as faixas de renda mais baixa, o responsável pela alta no custo de vida dessa faixa da população não é a inflação do tomate ou de outros alimentos. A alta dos alimentos afeta todo mundo, mas pesa mais para os mais pobres. O que mexe com o bolso da classe A/B é um fenômeno chamado pelos economistas de “inflação de serviços”. Ela inclui itens como escolas, planos de saúde, empregadas domésticas, restaurantes e viagens, com maior peso no orçamento de quem ganha mais. Essa inflação dos serviços não se reflete plenamente nos principais indicadores de inflação do país. No IPCA, o índice oficial, calculado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), os serviços representam apenas 20% do total, embora alcancem 60% ou até 70% dos gastos familiares nas faixas de renda mais alta, segundo Renato Meirelles, diretor do Instituto Data Popular – voltado para o estudo do consumo dos emergentes e das faixas de menor poder de compra (classes C, D e E).
NOVO COLÉGIO
Renata Wassermann com os filhos, Laura e Alexandre. As crianças passaram a estudar na escola pública (ao fundo na foto) (Foto: Na Lata/ÉPOCA)
Nos últimos cinco anos, enquanto a inflação oficial ficou na faixa de 35%, a inflação dos serviços atingiu quase 45%, de acordo com o IBGE. Nos últimos 12 meses encerrados em abril, não foi diferente. A inflação oficial, pressionada pelos preços dos alimentos, ficou em 6,5%, no teto da meta do governo. Só que os serviços subiram, em média, 8,13%, quase um terço a mais. Segundo o IBGE, 60% dos serviços subiram mais que a inflação no período. Apesar de ter havido uma ligeira desaceleração na alta dos serviços em abril, não se esperam grandes mudanças até o final do ano. “Está havendo uma transformação dos preços relativos da economia, em favor do setor de serviços”, afirma o economista Júlio Sérgio Gomes de Almeida, ex-secretário de Política Econômica no governo Lula. “Isso equivale a mudar o padrão de consumo da sociedade e a reduzir o poder real de compra da classe média mais alta.”
>>Inflação oficial avança para 0,55% em abril
Diante do aumento dos preços de alguns serviços, é difícil acreditar que o país vive uma fase de estabilidade econômica. Desde 2008, a escola das crianças subiu quase 50%. Os planos de saúde, 42%. O dentista, 48%. A empregada doméstica, antes da mudança da legislação, 75%. Os restaurantes, 66%. As passagens aéreas, 178%. O estacionamento, 65%. As oficinas mecânicas, 47%. Isso pelos números oficiais do IBGE, que refletem uma média de todo o país. Dependendo da região em que cada um vive e da composição de gastos de cada um, a inflação dos serviços pode ter tido um impacto ainda maior no orçamento.
Embora ela afete da mesma forma quem acabou de subir um degrau na pirâmide social e quem já fazia parte da classe média antes, pode-se dizer, sem risco de cometer uma injustiça, que quem chegou agora já está no lucro. De um jeito ou de outro deu um salto no poder de compra, no consumo e na qualidade de vida. Para quem já estava acostumado a ter um padrão melhor e tem de mudar seu estilo de vida, a situação é mais complicada. “A classe média alta não quer usar os serviços públicos, mas os gastos com serviços privados já estão no limite de sua renda”, diz Márcia Sola, diretora do Ibope Inteligência, instituto de pesquisas de mercado e de opinião. “É inconcebível essa alta dos preços dos serviços num país de renda média como o Brasil, com baixa qualidade de mão de obra”, afirma Júlio Sérgio Gomes de Almeida.
O balcão de negócios de Brasília e a farra fiscal
No Rio de Janeiro, a bancária Renata Senna, de 38 anos, diz que teve de reduzir a jornada de trabalho de sua empregada doméstica de cinco para dois dias por semana, entre outros cortes, para manter o orçamento sob controle. Com uma renda familiar de R$ 6.800 por mês, ela diz que passou a realizar mais tarefas domésticas, com o apoio do marido, Luiz Paulo Neves Filho, um ano mais velho, e até da filha Ana Clara, de 6 anos. Em São Paulo, a professora universitária Renata Wassermann, de 42 anos, conta que gastava R$ 3.200 por mês com a escola dos dois filhos, Laura, de 9 anos, e Alexandre, de 7. Recentemente, aproveitando a mudança da família para um apartamento no bairro do Butantã, na Zona Oeste da cidade, decidiu transferi-los para uma escola pública bem cotada perto de casa. Assim, ela economiza 20% da renda da família, de R$ 15 mil, sem prejudicar a educação dos filhos. Também com uma renda mensal de R$ 15 mil, a advogada gaúcha Alessandra Busato, de 38 anos, de Canoas, na região metropolitana de Porto Alegre, diz que chegava a gastar até R$ 800 por mês no salão de beleza. Depois de anos, mudou de salão e conseguiu cortar os gastos pela metade. Ela afirma que, agora, também faz hidratação facial e no cabelo em casa. Tudo isso para fazer o mês caber no salário e economizar algum dinheiro para projetos futuros.
SALÃO DOMÉSTICO
A gaúcha Alessandra Busato com a filha, Laura, na sua casa, em Canoas, Rio Grande do Sul. Ela cortou gastos pela metade (Foto: Ricardo Jaeger/ÉPOCA)
Em São Paulo, o publicitário Danilo Corci, de 38 anos, indignado com os preços abusivos cobrados nos bares, resolveu reagir. Com sua mulher, Camila, e dois amigos, lançou no início de abril o site Boicota SP. É um palanque para as pessoas falarem sobre os preços altos, do restaurante ao xerox. Se quiser, o representante do estabelecimento mencionado pelos usuários no site pode entrar em contato por e-mail, para dar sua versão dos fatos. Poucos dão o retorno, segundo Corci. A ideia dos empreendedores era ter cerca de 3 mil usuários simultâneos no primeiro ano. Em pouco mais de um mês, Corci diz que o site já atingiu 50 mil pessoas navegando ao mesmo tempo e mais de 150 mil usuários únicos por dia. “Costumo dizer que a gente não é um Procon, mas um espaço para troca de experiências e sugestões.” Corci também já não vai tanto a bares com os amigos. Eles passaram a se reunir em suas casas e a comprar as bebidas no supermercado. “Não dá para comparar a sensação de beber num barzinho à de fazer isso em casa, mas a companhia continua sendo ótima – e não me sinto lesado com o valor da conta.”
Se a renda da classe média tivesse acompanhado a alta dos preços dos serviços, ela poderia ser absorvida de forma indolor. Isso não aconteceu. A renda da classe A/B subiu bem menos que a dos emergentes e das classes de menor renda. Na última década, a renda dos 10% mais pobres subiu 91,2% em termos reais (acima da inflação), enquanto a dos 10% mais ricos, 16,6%, segundo Marcelo Neri, ministro interino da Secretaria de Assuntos estratégicos, presidente do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) e autor do livro A nova classe média (Ed. Saraiva). É preciso levar em conta que esses 16,6% de ganho real a que Neri se refere podem ser uma miragem. Como o índice de inflação usado no cálculo – o INPC, apurado pelo IBGE – também não reflete o peso real dos serviços para a classe média, o aumento de renda pode ter sido bem menor que o anunciado ou nem sequer ter existido. “É uma boa tese”, diz Neri. “Isso me faz lembrar aquela imagem da Belíndia: o lado rico do Brasil está tão estagnado quanto a Bélgica, enquanto o lado pobre está crescendo como a Índia e a China.”
MÃO NA MASSA
A bancária Renata Senna, com o marido, Luiz, e a filha, Ana Clara, em sua casa, no Rio de Janeiro. Eles dividiram as tarefas em casa (Foto: André Valentim/ÉPOCA)
Há, ainda, outros fatores que afetam a queda do poder de compra da classe média tradicional. Não dá mais para contar com ganhos obtidos com aplicações no mercado financeiro, como acontecia até pouco tempo atrás. O ganho real de outrora minguou. Com a inflação oficial na faixa de 6,5% ao ano e a taxa básica de juros – a Selic, que serve de referência para todas as outras – em 8% ao ano, o ganho real é praticamente zero para a maioria dos aplicadores, que não recebem a taxa “cheia” nos bancos – ou até negativo (abaixo da inflação), se o valor aplicado for baixo. O Imposto de Renda também abocanha uma fatia maior dos salários e afeta o rendimento da classe média. Segundo um estudo elaborado pelo Sindicato dos Auditores Fiscais da Receita Federal (Sindifisco), a defasagem da tabela do Imposto de Renda na fonte alcança 66,4% nos últimos 16 anos. Enquanto o IPCA avançou 189,54%, a tabela foi atualizada em 73,95%. Não por acaso, a proporção de famílias de maior renda que não conseguirá pagar em dia as dívidas aumentou de 1,9% para 2,2% desde setembro do ano passado, segundo um estudo da Federação do Comércio do Estado de São Paulo (Fecomercio). Nos cinco primeiros meses de 2013, a inadimplência subiu 20% em relação ao mesmo período do ano passado, de acordo com a Serasa Experian, uma empresa de informações de crédito. Apesar de a classe média ter incorporado 9,2 milhões de “novos ricos” entre 2003 e 2011, de acordo com Marcelo Neri, já começam a aparecer sinais de retração no consumo do segmento. A seguir, alguns exemplos.
▪ Nos dois primeiros meses de 2013, houve queda de 20% no faturamento dos bares em São Paulo, segundo uma pesquisa feita pela Associação Brasileira de Bares e Restaurantes (Abrasel-SP) com 600 associados – e não apenas por causa da Lei Seca;
▪ No segundo trimestre de 2013, a intenção de compras pela internet na faixa de renda mais alta é de 76,5% – 7,4 pontos abaixo do primeiro trimestre e o índice mais baixo desde 2007, segundo um estudo do Programa de Administração de Varejo (Provar) e da e-bit, uma empresa de informações sobre o mercado virtual;
▪ Nos últimos meses, houve uma queda de 20% nos pedidos de reembolso de consultas particulares aos planos de saúde, de acordo com a Federação Nacional de Saúde Complementar;
▪ Em 2012, segundo uma pesquisa realizada pela Kantar Worldpanel, outro instituto de pesquisas de mercado, o número de itens comprados pelas classes A e B caiu 4%, embora o valor gasto para comprá-los tenha aumentado 5%;
▪ Também no ano passado, a quantidade de imóveis financiados pelos bancos para famílias de maior renda caiu 7%, segundo dados da Associação Brasileira de Crédito Imobiliário e Poupança (Abecip).
No momento, é difícil dizer se esses sinais negativos se aprofundarão e se espalharão pelos demais setores da economia nos próximos meses, contribuindo para conter a alta nos preços dos serviços. Caso a inflação dos serviços persista, uma saída, defendida por alguns economistas, é esfriar um pouco o mercado de trabalho, para reduzir a demanda de serviços e de bens. Essa solução é defendida, entre outros, pelo consultor Affonso Celso Pastore, ex-presidente do Banco Central. É uma solução cuja probabilidade de implementação no atual governo é perto de zero. Se, porém, o mercado de trabalho se mantiver aquecido e o desemprego no menor nível da história, não há muito a fazer no curto prazo. Faltam profissionais qualificados para trabalhar no setor de serviços, em todos os ramos de atividade: engenharia, medicina, trabalhos domésticos, construção civil e mecânica de automóveis. Se já é difícil evitar o aumento de preços dos serviços normalmente, porque eles quase não sofrem concorrência dos estrangeiros, tudo piora num cenário de escassez de mão de obra.
LONGE DOS BARES
Danilo Corci com os amigos Ricardo Giassette e Marcos Takabayashi. As bebidas agora são compradas no supermercado (Foto: Na Lata/ÉPOCA)
No longo prazo, só um choque de produtividade e investimentos pesados em educação, com treinamento e capacitação profissional intensivos, poderá transformar esse quadro perverso, que afeta o poder de compra da classe média tradicional. Os ganhos de escala, possíveis com a ascensão dos emergentes à classe A/B, também podem contribuir para resolver a questão. “Em países desenvolvidos, compensa-se a mão de obra escassa otimizando a prestação de serviços. Um médico atende em várias salas alternadamente, com a ajuda de uma enfermeira, e um sujeito sozinho cuida de uma lanchonete”, afirma o economista Roberto Macedo, ex-secretário de Política Econômica no governo Collor. “A oferta de produtos pode oscilar ao longo de semanas – ela depende da disponibilidade de matéria-prima”, diz o economista Paulo Piccheti, doutor pela Universidade de Illinois e professor do Instituto Brasileiro de Economia (Ibre)-FGV. “Só que a oferta de serviços depende da oferta de gente formada e oscila ao longo de gerações.”
O calvário da classe média tradicional, portanto, ainda deve continuar por um bom tempo. Para enfrentar a inflação dos serviços sem quebrar o orçamento, restam apenas as ações individuais, como as adotadas pelo mineiro Alencar – que mudou os hábitos e cortou as despesas da família – ou o ativismo de Danilo Corci, o publicitário de São Paulo que criou o site Boicota SP, cujos resultados ainda estão por se provar. Muitas vezes, os prestadores de serviços têm mais flexibilidade para negociar e baixar preços que vendedores de produtos. Há margem de negociação também com escolas e profissionais liberais, como advogados, arquitetos e decoradores. “Nos Estados Unidos, existe a cultura do ‘faça você mesmo’. Na Europa, a classe média não come carne todo dia”, diz o cientista político Alberto Carlos Almeida. “Aqui, estamos nos aproximando disso. Não será preciso, talvez, cortar a carne, porque o Brasil é o maior produtor mundial, mas terá de cortar outra coisa.” Para a classe A/B, talvez seja o caso de lembrar o velho lema de campanha do ex-deputado e ex-ministro Antônio Delfim Netto: “Eu era feliz e não sabia”.
Reprodução: http://revistaepoca.globo.com/vida/noticia/2013/06/o-arrocho-da-classe-media.html

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