terça-feira, 6 de agosto de 2013

O processo de mercado



I. INTRODUÇÃOportobello_market.jpg
Podemos sintetizar o universo da teoria econômica da Escola Austríaca na frase: "a economia é ação humanaao longo do tempo, nos mercados, sob condições de incerteza genuína". Vamos discutir essa afirmativa analisando cada um dos elementos que a formam e mostrando, de um lado, a sua importância para explicar os fenômenos da chamada "economia do mundo real" (economy) e, de outro, como a teoria econômica convencional ou "não-austríaca" (economics) tem perdidooportunidades de prover melhores explicações para os mesmos fenômenos, exatamente por não incorporar de maneira adequada aqueles elementos, a saber: o conceito seminal de ação humana, a limitação do conhecimento e o subjetivismo, a incerteza decorrente da imperfeição e dispersão do conhecimento, e o conceito de tempo real ou subjetivo ou dinâmico.
É conveniente analisarmos um a um esses elementos, pois, assim procedendo, entenderemos no final, tal como ao terminarmos de montar um quebra-cabeça, porque os mercados são processos que tendem a convergir para estados de equilíbrio, sem, contudo, conseguir atingi-los, porque as condições subjacentes alteram-se com a passagem do tempo e uma situação que seria de "equilíbrio" hoje certamente não o será dentro de algumas horas ou semanas. Vejamos separadamente cada um dos elementos que compõem a teoria "austríaca" do processo de mercado.
II. OS ELEMENTOS DA TEORIA
1. Ação Humana
Dissemos que a economia é ação humana ao longo do tempo, nos mercados, sob condições de incerteza. Tendo em mente os conceitos de ação, limitação e dispersão do conhecimento, subjetivismo, incerteza e tempo real, podemos passar ao exame do funcionamento dos mercados no contexto social. Para isso, nosso primeiro passo deve ser o de analisar, sob o ponto de vista da Escola Austríaca, a denominada Teoria do Valor, e, daí, estudar o processo de mercado.
Mises denominou de praxeologia ao estudo da ação humana, sob o ponto de vista de suas implicações formais. E, como ação, no sentido que lhe dá a Escola Austríaca, significa qualquer ato deliberado (que tanto pode ser fazer, como deixar de fazer alguma coisa), com o intuito de se passar de um estado menos satisfatório para outro mais satisfatório, segue-se que todos os atos econômicos, como por exemplo, os de trocar, comprar, vender, produzir, poupar, investir, consumir, emprestar, tomar emprestado, exportar, importar, etc., estão contidos no conceito seminal de ação humana. Esta é a proposição básica, o primeiro axioma da praxeologia: o incentivo para qualquer ação é a insatisfação, uma vez que ninguém age, no sentido misesiano, a não ser que, estando insatisfeito, o faça pensando em melhorar de estado, ou seja, em aumentar seu conforto ou satisfação, diminuindo, portanto, seu desconforto ou insatisfação.
Notemos que este axioma é universal: onde quer que existam seres humanos, haverá ação humana, o que faz com que a ciência econômica construída com base na praxeologia também seja universal. Não há, portanto, uma teoria econômica específica para cada país ou região; o que existe é uma teoria econômica epistemologicamente correta, que é a que se constrói a partir do estudo da ação humana. Por exemplo, as conhecidas leis da demanda e da oferta são universais, uma vez que todos os homens - sejam índios, economistas, banqueiros, aposentados, universitários, analfabetos, etc. - gostam de "comprar barato" e "vender caro", já que isso aumenta, logicamente, sua satisfação.
Ao agir, portanto, o homem busca satisfazer a algum desejo e, para isso, deve recorrer aos meios de que dispõe. O fato a ser ressaltado é que a própria ação implica que esses meios são escassos, isto é, são sempre insuficientes para que todas as necessidades humanas, que são ilimitadas, sejam atendidas. De fato, se os meios não fossem escassos, todas as necessidades seriam atendidas, os homens estariam sempre inteiramente satisfeitos e, portanto, não haveria incentivos à sua ação. Toda ação humana busca sempre, então, aumentar a utilidade ou satisfação: quem compra ações, por exemplo, objetiva ganhar dinheiro e, assim, aumentar sua utilidade, assim como quem, por caridade, doa sua fortuna aos pobres, tem em vista aumentar o bem-estar (utilidade) do próximo, pois isso, em sua avaliação, também aumentará sua própria satisfação.
Denominamos de benefício ou ganho à diferença, em termos de maior utilidade, obtida através de uma ação bem-sucedida e de custo inferior ao valor atribuído à situação que se abandonou quando se decidiu por sua escolha. Para clarear essa definição, tomemos o exemplo do poupador que decide aplicar sua poupança comprando um automóvel, ao invés de, por exemplo, gastá-la em uma viagem de férias. Ao fazer isso, ele escolheu entre a situação que lhe proporciona maior satisfação (possuir um automóvel) e a que o satisfaria menos (viajar) e poderá dizer, acertadamente: "este carro me custou uma viagem à Calábria". Benefício, portanto, é a diferença positiva entre a situação escolhida e a que se abandonou. Caso a referida diferença seja negativa, isto é, caso a satisfação seja menor depois da ação do que antes, diz-se que houve uma perda.
Trata-se, então, de, mediante a ação, perseguir objetivos específicos, utilizando-se de meios escassos. Para que uma determinada ação proporcione o máximo, em termos de aumento de utilidade, o homem procura sempre escolher, dentre os meios escassos, aqueles que lhe permitam chegar aos objetivos com os menores custos possíveis. Ao agir assim, ele está "economizando" recursos. Isto significa que toda ação é uma escolha: o sujeito da ação deve escolher, de um lado, o objetivo a que deseja chegar e, de outro, os meios específicos. A este ato de eleição, denominamos de valoração; valorar, portanto, significa escolher entre duas ou mais alternativas. Por outro lado, definimos bens como aqueles meios que são usados para satisfazer as nossas necessidades e produto como o fruto da ação, isto é, a nova situação gerada.
Talvez o leitor ainda não tenha percebido que, apenas partindo da definição de ação humana, deduzimos diversos conceitos econômicos: escassez, "economização", benefício, perdas, valoração, custo, bem e produto. Além desses, a praxeologia permite definir os demais conceitos utilizados em economia, como, por exemplo, juros, capital, moeda, utilidade marginal, período de produção, preferência temporal, produtividade, etc. Praxeologia e economia, no entanto, são ciências diferentes: enquanto a praxeologia centra sua análise na ação humana, a economia política focaliza sua atenção nos processos de utilização de recursos nos mercados (que os austríacos chamam de cataláctica), para o que ela deve fazer uso dos conceitos elaborados pela análise praxeológica. Mises integra a economia dentro de sua teoria geral da ação humana - a praxeologia - da qual a economia é apenas uma das partes (ou categorias praxeológicas), por sinal, a que melhor se desenvolveu até o presente.
As "Construções Imaginárias"
Uma das características da análise praxeológica é elaborar estudos sobre situações que são simples construções mentais. Esses paradigmas - chamados de construções imaginárias - servem como ponto de partida para o exame das situações do mundo real; embora não existindo concretamente, são bastante úteis para proporcionar-nos uma idéia bem fundamentada a respeito dos processos econômicos, além, evidentemente, de servirem como excelentes veículos para a clareza expositiva. Os economistas da Escola Austríaca costumam utilizar três construções imaginárias: o "estado natural de repouso", a "economia uniformemente circular" e a "economia autística".
O estado natural de repouso, bastante útil para o entendimento correto das forças que impulsionam os processos de mercado, descreve um estado que, embora jamais seja alcançado pela ação humana no mundo real - pois uma das características desse mundo é a escassez de recursos -, é permanentemente perseguido: a satisfação total e a consequente inação. Esta construção nos permite, por exemplo, entender como os preços de mercado, flutuando entre a oferta e a demanda como decorrência da ação humana, tendem para um preço final que, no entanto, nunca é alcançado, pela simples razão de que o homem, estando permanentemente insatisfeito, continua a agir (para aumentar sua utilidade), o que faz com que a oferta e a demanda estejam permanentemente sofrendo alterações. Há, contudo, uma corrente de economistas austríacos, liderada por Lachmann, que nega essa tendência para um preço final, conforme veremos algumas linhas adiante.
A economia uniformemente circular ("evenly rotating economy") é uma construção, imaginada por Mises, que procura fotografar um estado de coisas em que não ocorrem quaisquer mudanças nos dados externos (preferências, tecnologia e recursos) em um sentido objetivo, tudo se passando como se o tempo parasse. O argumento em favor do uso desse artifício metodológico é que, se desejamos analisar os fenômenos desencadeados pela ação humana em toda a sua complexidade, devemos iniciar nossas investigações admitindo ausência de mudanças e, em seguida, devemos ir aos poucos introduzindo cada fator capaz de provocar impactos específicos. Como o leitor conhecedor dos rudimentos da teoria econômica tradicional já deve ter percebido, esta construção austríaca equivale à conhecida cláusula "coeteris paribus", introduzida por Alfred Marshall na análise econômica em 1891 e largamente utilizada até hoje. A diferença é que os austríacos realizam suas análises levando sempre em conta que seu método de construções imaginárias, mesmo sendo o único método possível de investigação praxeológica e econômica, é de difícil manejo, porque pode facilmente resultar em falácias. Conforme Mises observou, "... é como caminhar numa crista estreita: de ambos os lados abrem-se os abismos do absurdo e do inconsciente. Somente uma impiedosa autocrítica pode impedir alguém de cair nessas profundezas abissais"
A economia autística é uma construção que procura estudar os problemas com que se defrontaria um indivíduo isolado dos demais, como Robinson Crusoé em uma ilha deserta. Este conceito é de grande importância, porque permite desenvolver, a partir de sua característica de ausência de trocas interpessoais, as situações do mundo real que são caracterizadas pela existência de trocas entre os agentes econômicos, derivando-se diversos conceitos importantes, como os de moeda, capital, juros, investimento, poupança, produtividade, etc. Mises imaginou duas variantes de uma economia autística: a economia de um indivíduo isolado e a de uma sociedade socialista. Segundo ele, tanto "Robinson Crusoe (como) o dirigente supremo de uma comunidade socialista perfeitamente isolada - que nunca existiu - não poderiam planejar e agir como o fazem as pessoas que podem recorrer ao cálculo econômico".
A Teoria Austríaca do Valor
A noção de que o valor dos bens depende diretamente da utilidade que eles proporcionam é antiga. Na realidade, ela remonta aos autores escolásticos: ainda no século XV, São Bernardino de Sena (1380-1444), em sua análise sobre a influência da escassez sobre os preços, solucionava o problema que, cerca de quatrocentos anos depois, viria a ser conhecido como o "paradoxo do valor": "...Comumente, a água é abundante, mas pode suceder que em alguma montanha ou em outro lugar, ela seja escassa e não abunde, e por isso será mais estimada (valorizada) do que o ouro; e é por esta abundância da água que os homens estimam (valorizam) mais o ouro do que a água" (parêntesis nossos). São Bernardino sustentava em sua teoria que os bens têm dois valores: um, objetivo, baseado na natureza, e outro baseado no uso, sendo influenciado essencialmente por sua utilidade subjetiva. De acordo com aquele autor que, juntamente com Santo Antonino de Florença (1389-1459), influenciou o pensamento da chamada "escolástica tardia", como Francisco de Vitória (1495-1560, fundador da famosa Escola de Salamanca), os preços dos bens eram determinados por seu valor subjetivo, considerado sob três perspectivas: "virtuositas" (valor de uso), "raritas" (escassez) e "complacibilitas" (desejabilidade).
Conforme diversos trabalhos recentes têm mostrado, os filósofos católicos escolásticos, em especial os espanhóis e italianos dos séculos XVI e XVII, foram notáveis economistas, que chegaram a desenvolver, como observam, por exemplo, Rothbard e Río, uma abordagem para a teoria subjetiva do valor bastante semelhante à da Escola Austríaca, o que já havia sido percebido, ainda que de modo incompleto, por Joseph Schumpeter. A rigor, o único ingrediente da moderna teoria austríaca do valor que não fora considerado pelos filósofos católicos foi o conceito marginalista. Por isso, a opinião, exposta principalmente por Max Weber e tão facilmente assimilada, de que a ética do capitalismo é de natureza protestante, não corresponde à verdade que os estudos mais recentes nos têm revelado: a economia de mercado e, portanto, o liberalismo, tem raízes cristãs (São Tomás de Aquino, no século XIII) que antecedem as reformas efetuadas no século XVI por Lutero e Calvino.
O procedimento geralmente adotado nos livros-texto de economia, nos capítulos sobre as teorias de valor e formação de preços, é o de tratar a demanda e a oferta separadamente. E, embora as teorias de demanda mais recentes tenham avançado ao incorporar elementos subjetivistas em suas estruturas, o mesmo não ocorreu com as teorias de oferta, que continuam tratando os custos de produção de maneira exclusivamente objetiva. O ponto de vista dos economistas da Escola Austríaca, que procuraremos expor em seguida, é o de que existe um fator comum que liga o lado da demanda e o lado da oferta: ambas são inteiramente determinadas pela ação humana subjetiva, que caracteriza os processos de valoração e formação de preços.
As primeiras respostas ao problema do valor partiam da premissa de que o que se devia identificar era o "valor objetivo" de cada bem. Uma das primeiras tentativas nesse sentido, realizada por Adam Smith, foi sugerir que as coisas valem pelo conteúdo de trabalho embutido nelas. Essa teoria, no entanto, não se adapta à realidade, porque não consegue explicar, por exemplo, o alto valor de um diamante encontrado no leito de um rio por alguém, que teve apenas o trabalho de molhar os pés, agachar-se e pegá-lo.
Uma segunda resposta ao mesmo problema, também falsa, mas na qual, ainda hoje, muitos insistem, consiste em supor que as coisas valem pelos custos em que os produtores incorrem para produzi-las. Isto também não se adapta à realidade, por deixar de considerar que, em uma economia de mercado, podem haver lucros ou prejuízos. Os preços não dependem dos custos; na realidade, os preços, respondendo à ação humana de ofertantes e demandantes, podem situar-se acima ou abaixo dos custos, determinando assim lucros ou prejuízos para os empresários. Evidentemente, isso não sucederia se, como sugere a teoria do valor-custo, os preços dependessem dos custos, pois, nesse caso, não haveria jamais prejuízos. O que a teoria do valor-custo e suas vertentes modernas (que conduzem à defesa, por exemplo, dos controles de preços) parecem desconhecer é que os preços não medem os valores, eles apenas expressam o valor dos bens no mercado. Posso, por exemplo, gastar uma fortuna para fazer uma escultura, cujo valor de mercado seria, certamente, próximo de zero...
O passo seguinte na direção correta foi o de atribuir o valor à escassez e à utilidade, mas ainda de maneira objetiva, o que levou ao "paradoxo do valor", a que já nos referimos anteriormente, sem que o problema fosse solucionado. Garrafas de vinho quebradas nas calçadas são escassas nos bairros limpos, mas nem por isso valem alguma coisa; poucos bens são tão úteis quanto o ar que, no entanto, não tem valor no mercado. No entanto, se considerarmos a utilidade e a escassez de modo subjetivo, estaremos caminhando na direção e no sentido corretos: poderemos deduzir, a partir de conceitos praxeológicos, a teoria do valor que se adapta à realidade, que é a lei da utilidade marginal.
Essa importante lei pode ser explicada com base no fato de que o homem, ao agir, escolhe seus objetivos e os ordena em uma escala valorativa própria, isto é, que não é intrínseca aos objetivos. Ao mesmo tempo, para chegar a esses objetivos, ele usa uma série de meios, que são formados por unidades capazes de proporcionar o mesmo serviço. Este exemplo, elaborado pelo filósofo argentino Gabriel Zanotti, esclarece a questão: "...imaginemos que disponho do meio "folha de papel", dividido em 5 unidades (5 folhas de papel), cada uma capaz de proporcionar o mesmo serviço. Logo, ordeno meus fins (necessidades) em uma escala valorativa pessoal e subjetiva. A primeira folha, emprego para resolver um exercício de lógica; a segunda, para escrever um poema; a terceira, para praticar caligrafia; a quarta, para testar minha lapiseira e a quinta para limpar o escritório. Observamos que, à medida que aumenta o número de unidades do bem, o valor da última (que se denomina valor marginal, assim como a última unidade é a unidade marginal), vai caindo, pois essa unidade é utilizada para o grau mais baixo de prioridades do sujeito; sucede o contrário quando cai o número de unidades: aumenta o valor da unidade marginal, pois esta vai sendo empregada nas prioridades mais altas do sujeito".
Observemos que, à medida que reduzimos as quantidades do bem em uma unidade, perdemos a satisfação que aquela unidade nos proporciona e que, à medida que aumentamos a quantidade do bem em uma unidade, ganhamos a satisfação que, a nosso juízo, aquela unidade nos propicia. Isto é, ao reduzirmos a quantidade do bem em unidades sucessivas, o valor de cada unidade vai sucessivamente aumentando, o que explica o fato de um cantil com água valer mais no deserto do que perto de uma fonte pura: similarmente, ao aumentarmos sucessivamente as unidades do bem, o valor de cada unidade vai progressivamente decrescendo.
Ao compreendermos a lei da utilidade marginal, conseguimos resolver o "paradoxo do valor": o pão é mais útil do que o perfume fino, mas, como o número de unidades de pão é maior do que o de perfumes finos, o valor do pão, determinado por essa combinação de utilidade e escassez subjetivas, é menor do que o do perfume. A comparação relevante não é, portanto, entre a utilidade de todos os pães e de todos os frascos de perfume, mas entre as utilidades de um pão e de um frasco.
Antes de estudarmos o processo de mercado, é conveniente lembrarmos que, ao contrário do sugerido pelas abordagens convencionais, no ponto de vista da Escola Austríaca a utilidade não influencia apenas a demanda; ela afeta, igualmente, a oferta, uma vez que não há possibilidades de medição objetiva dos custos de produção, pois as alternativas relevantes (que seriam a medida objetiva dos custos de oportunidade) não foram realizadas e, portanto, não podem ser avaliadas monetariamente.
A essência da Teoria Austríaca do Valor é sua subjetividade, que origina, a partir do axioma básico da praxeologia, o da busca permanente por maior satisfação, a lei da utilidade marginal, que se constitui em elemento indispensável para a compreensão correta do processo de mercado.
2. Limitação do conhecimento e subjetivismo
Uma das principais características dos economistas "austríacos" é o subjetivismo da sua teoria, que se baseia na pressuposição de que o conteúdo da mente humana - e, portanto, os processos de tomada de decisão - não podem ser determinados rigidamente pelos eventos externos. O subjetivismo assim entendido abre espaço para a criatividade e a autonomia das escolhas individuais, estando dessa forma ligado ao individualismo metodológico, ou seja, à visão de que os resultados do mercado resultam de atos de escolha individuais. Em outras palavras, para os economistas "austríacos" e para os subjetivistas em geral, a teoria econômica deve lidar com fatores que determinam as escolhas e não com interações entre magnitudes objetivas.
A teoria econômica subjetivista procura analisar a ação humana no campo das atividades econômicas, levando em conta que essa ação ocorre sempre sob condições de incerteza genuína, ou seja, não probabilística, e que, além disso, ela necessariamente acontece ao longo do tempo. Por isso, subjetivismo e ação humana dinâmica sob condições de incerteza não bayesiana são idéias absolutamente inseparáveis sob a ótica da Escola Austríaca de Economia.
Quando um agente econômico escolhe um determinado curso de ação, as conseqüências de sua escolha irão depender, pelo menos parcialmente, dos cursos de ação que outros indivíduos escolheram, estão escolhendo ou ainda vão escolher. Se considerarmos um mundo em que impere a autonomia das decisões individuais, isto significa que o futuro não apenas é eventualmente desconhecido, o que permitiria que ele fosse aprendido de maneira gradual, mas que ele simplesmente não pode ser conhecido e nem aprendido.
Com efeito, a concepção dinâmica do tempo, juntamente com o reconhecimento do fato de que a imperfeição de nosso conhecimento nos leva a agir na presença de incerteza, são dados que o Prof. Mises denominava de irredutíveis - isto é, que não podem ser negados, dada a sua natureza axiomática -, o que nos leva a enxergar o tempo como um fluxo permanente de eventos, fluxo esse que contém implicitamente as idéias de novidade, de aprendizado, de surpresa e de descoberta.
À medida que o tempo passa, o estoque de experiências cresce e vai permanentemente se incorporando à memória, o que faz com que as perspectivas individuais mudem. Presente e futuro são, assim, permanentemente afetados pelos fluxos contínuos de eventos, o que faz com que cada novo instante seja por si uma nova perspectiva individual. Tal fato, aparentemente tão simples, torna a previsibilidade perfeita um evento impossível.
Por outro lado, a ignorância, entendida como imperfeição do conhecimento, não é um estado que possa ser totalmente evitado ou simplesmente ignorado, ou assintoticamente eliminado por algum processo. Por isso, os expedientes analíticos que costumam transformar a ignorância em uma mera variante do conhecimento, por não refletirem a ação humana no mundo real, devem ser afastados da teoria econômica.
Resumindo, podemos conceituar esse desconhecimento do futuro de acordo com duas noções complementares: (a) a de ignorância e seu corolário, o conceito de "incerteza genuína" (ou "incerteza radical") e (b) a de tempo real (ou dinâmico subjetivo ou histórico).
3. Incerteza
O conceito de incerteza genuína decorre naturalmente como corolário da aceitação das hipóteses de ignorância e de tempo real. As implicações mais importantes da idéia de incerteza genuína são: primeiro, a impossibilidade de listagem de todos os possíveis resultados provocados por um determinado curso de ação e, segundo, a passagem da incerteza - que na teoria econômica convencional costuma ser tratada como uma variável exógena -, para a categoria de variável endógena.
Com efeito, o tratamento que a teoria neoclássica costuma dispensar à variável incerteza é o de listar arranjos ou ponderações das possibilidades conhecidas. Esse método, na verdade, termina negando a autonomia das escolhas individuais, ao retratar o futuro como uma distribuição de probabilidades definida para um determinado conjunto de eventos, o que equivale a impor a condição de que o único problema em relação ao futuro é que ele, apenas, é desconhecido no presente. Sendo assim, ele pode vir a ser conhecido, porque, independentemente das escolhas individuais, um dia ele vai chegar. Na verdade, esse tratamento que a teoria econômica neoclássica dispensa ao futuro termina abolindo a própria autonomia da mente humana.
Alguns avanços recentes em direção a teorias "subjetivistas" de probabilidades não têm deixado de se constituir em um passo adiante em relação ao tratamento neoclássico mais tradicional, mas nem por isso podem ser considerados satisfatórios, na medida em que deixam de lado aquele que talvez seja o aspecto mais importante da ignorância, que é a impossibilidade de listagem dos resultados possíveis. Na verdade, não se trata apenas de um simples desconhecimento das probabilidades associadas aos diversos eventos de um determinado conjunto, mas ao fato de que o próprio conjunto não é determinado.
A teoria subjetivista de probabilidades, portanto, reflete o subjetivismo naquilo que podemos denominar de sua forma estática, mas passa ao largo do relevante, que é o subjetivismo dinâmico, em que o tempo real e a incerteza genuína caminham lado a lado e são indissociáveis.
O segundo aspecto importante da incerteza genuína, que é a sua característica de endogeneidade, leva-nos a visualizar os mercados como processos dinâmicos ininterruptos, processos por si só geradores de mudanças às quais o sistema econômico deve adaptar-se. Isto significa que um estado de completa adaptação, ou um estado de equilíbrio, é algo incompatível com os conceitos de incerteza genuína e de tempo real. Como observou Mises, uma ciência econômica que enfatize apenas os estados de equilíbrio deixa de ser uma ciência da ação humana, para ser uma ciência da inação, isto é, a própria negação da economia.
Isto ocorre porque, à medida que o tempo (real) passa, o estoque de conhecimentos necessariamente cresce e, portanto, também aumenta a "produção" endógena de mudanças. Uma importante implicação disso é que essas mudanças não se processam aos preços de equilíbrio e que, portanto, ao invés de focalizar apenas as trocas realizadas sob condições de equilíbrio ou os processos de ajustamento em direção ao equilíbrio, a teoria econômica deve essencialmente preocupar-se com a trajetória das trocas efetuadas sob condições de desequilíbrio, isto é, com os comportamentos descoordenadores. Um exemplo desse tipo de preocupação que a teoria econômica deveria sempre ter presente é a Teoria Austríaca dos Ciclos Econômicos, que explica a inflação e o desemprego como resultado de trocas realizadas de maneira descoordenada, sob condições de desequilíbrio.
4. Tempo
A teoria econômica convencional, ao enfatizar os estudos de equilíbrio, emaranha-se em um cipoal de paradoxos e inconsistências, no que se refere ao tratamento dispensado ao fator tempo. De fato, poucos se dão conta de que nos mercados em equilíbrio a formação dos preços, ao invés de resultar - como ocorre no mundo real - do processo de trocas voluntárias, precede o referido processo. Nos modelos de equilíbrio geral, as decisões sobre preços e as decisões sobre trocas são simultâneas. Assim, causas e efeitos, presente e futuro são como que fotografados instantaneamente.
Até mesmo os modelos de equilíbrio intertemporal - em geral, matematicamente sofisticados - que pretendem levar em conta o fator tempo, ao adotarem a hipótese da existência simultânea de todos os mercados intertemporais e contingenciais, literalmente, acabam anulando o tempo, por trazerem os estados futuros para o presente. O modelo de Arrow-Debreu, uma elegante elucubração teórica construída com vistas a ampliar e refinar o modelo de equilíbrio geral de Walras e Pareto, é um desses exemplos. A analogia utilizada por O'Driscoll e Rizzo descreve bem a inutilidade do esforço desses modelos : "todas as decisões são feitas em um único instante essencial: o futuro nada mais é do que o desenrolar de uma tapeçaria que existe agora."
Há dois conceitos de tempo: o newtoniano e o real. A teoria econômica convencional adota a primeira concepção, enquanto os economistas "austríacos" preferem a segunda. Examinemos rapidamente as características desses dois conceitos.
Tempo Newtoniano
A concepção newtoniana de tempo estabelece uma analogia entre tempo e espaço, à medida que simboliza a passagem do tempo por meio de movimentos ao longo de uma linha, em que os diferentes períodos de tempo são representados por uma sucessão de segmentos de reta (no caso de variáveis discretas), ou são retratados como uma sucessão de pontos (no caso de continuidade). O tempo newtoniano apresenta três características importantes
A primeira é a homogeneidade. Cada ponto é exatamente igual a todos os demais, a não ser por sua posição espacial que, aliás, é seu fator determinante, assim como o tempo espacializado nada mais é do que um conjunto de posições temporais. Isto faz com que cada ponto ou segmento representativo do tempo seja vazio por construção, o que torna o tempo independente de seu conteúdo. Em outras palavras, a homogeneidade temporal faz com que o tempo decorra sem que nada aconteça, ao transformá-lo em uma categoria estática. No modelo de Arrow-Debreu, por exemplo, em que todas as decisões são tomadas em uma data inicial, o tempo passa sem que os agentes econômicos aprendam, o que, evidentemente, é incompatível com a visão do mercado como um processo.
A segunda característica é a continuidade matemática, não no sentido de interrelações entre instantes sucessivos de tempo, mas no de divisibilidade contínua. Assim como um segmento de reta pode ser dividido e subdividido em partes infinitesimalmente tão pequenas quanto o desejarmos, os intervalos do tempo newtoniano também podem ser estabelecidos arbitrariamente pequenos e sempre haverá um espaço entre eles. E, uma vez que os pontos ao longo de uma linha jamais podem se tocar, cada instante de tempo é isolado, ou independente dos demais. Se a continuidade matemática caracterizasse o mundo real, então os ajustamentos que determinam o processo de mercado deveriam ocorrer a velocidades infinitas e a mobilidade de recursos também deveria ser infinitamente grande, para que todo o processo ocorresse em um único instante. Aí reside o chamado "paradoxo newtoniano": se o ajustamento fosse instantâneo, por que seriam necessárias as mudanças e variações? A consequência disso é que a teoria econômica tradicional é forçada a adotar o expediente de considerar cada mudança como sendo proveniente de fora do sistema, isto é, como sendo exógena. Outra vez, uma parábola de O'Drioscoll e Rizzo: "um sistema newtoniano é meramente como dedilhar ao mesmo tempo diversos estados estáticos e não pode gerar mudanças endogenamente".
A terceira característica é a inércia causal, em que o estado inicial do sistema deve conter tudo o que for necessário para produzir as mudanças e, portanto, em que o tempo não acrescenta, literalmente, nada. Esta característica é evidente no tratamento que os modelos econômicos convencionais dispensam ao aprendizado, isto é, à incorporação de novos conhecimentos. O determinismo implicado pela inércia causal virtualmente nega os problemas que o economista tem que resolver. De fato, se todas as causas das mudanças estão presentes no instante seminal to, para que esperarmos pelos resultados até t1, t2 ,t3, t4..., etc.? Na teoria tradicional, há diversos exemplos dessa eliminação do tempo e do conseqüente enfraquecimento da compreensão do mundo real que tal procedimento provoca. A teoria do capital, os modelos de equilíbrio geral intertemporal e o equilíbrio "ad hoc" que caracteriza, por exemplo, as abordagens de alguns economistas da respeitável Escola de Chicago (nas quais, na ausência de evidência em contrário, os preços e quantidades observados podem ser tratados como boas aproximações para seus valores de equilíbrio competitivo de longo prazo) são três desses exemplos.
Tempo Real ou Subjetivo
Nesta concepção, denominada, em 1910, de "la durée", pelo filósofo Henri Bergson, o tempo deixa de ser um conceito meramente estático e passa a ser considerado como um fluxo dinâmico e contínuo de novas experiências. Tal fluxo não está no tempo, como na conceituação newtoniana; muito mais do que isso, ele é, ele se constitui, ele caracteriza o tempo, na medida em que sempre alguma coisa nova deve acontecer, ou o tempo não será real.
O tempo real ou subjetivo apresenta, também , três características básicas: a continuidade dinâmica (ao invés da continuidade matemática), a heterogeneidade (em contraposição à homogeneidade) e a eficácia causal (em antítese à inércia causal).
continuidade dinâmica pode ser compreendida a partir de uma analogia com a experiência musical. Ao ouvirmos os primeiros compassos de uma nova melodia, não somos capazes de captar os compassos seguintes, porque nossa percepção envolve, primeiro, a memória das frases ou compassos recém-ouvidos e, segundo, a antecipação das frases ou compassos seguintes e que ainda não ouvimos. Assim, a estrutura dinâmica do tempo real ou subjetivo constitui-se de dois elementos: memória e expectativa, em que o presente é ligado a outros períodos através das percepções individuais. A memória e a expectativa são oselementos estruturais do tempo real, que vão originando, a cada novo instante, a continuidade dinâmica e, embora possamos subdividir continuamente o tempo matemático de uma dada experiência em quantos pontos ou fragmentos desejarmos, cada um desses instantes, sob o ponto de vista subjetivista, não é independente nem pode ser isolado dos demais. Por isso, o tempo subjetivo implica um verdadeiro elo, do qual o tempo newtoniano se abstrai. O futuro é visto de modos diferentes, dependendo de onde, ou de qual instante ele é visto; em outras palavras, a experiência de uma primeira situação passa a ser utilizada como um novo parâmetro na segunda situação; ambas passam a ser parâmetros para uma terceira situação e assim sucessivamente. A esta altura, o leitor deve ter percebido que continuidade dinâmica e processo de mercado são fenômenos inseparáveis. São os elementos de uma partitura que começa no momento de nossa concepção e que se estende à eternidade.
A característica da heterogeneidade ressalta da observação de que, além de ser a memória o componente de nossa experiência que liga o passado ao presente, ela também é o elemento responsável pela diferenciação contínua entre cada momento sucessivo. Quando o tempo passa, a memória de cada indivíduo vai se enriquecendo continuamente e portanto, os pontos de vista individuais e subjetivos, as visões de mundo pessoais, vão-se transformando continuamente. Por isso, cada ponto do tempo real é novo exatamente porque, por intermédio da memória, está ligado a pontos anteriores. Continuidade dinâmica e heterogeneidade não são características isoladas do tempo real, elas são dois aspectos de um mesmo fenômeno. A heterogeneidade do tempo é particularmente importante quando consideramos as possibilidades de precisão dos agentes econômicos. Mesmo quando um fenômeno ocorre "exatamente" como foi previsto por um indivíduo, ele não será experimentado ou vivido exatamente como foi previsto, uma vez que, ao ser feita a previsão, o ponto de vista era diferente do relevante ao ocorrer o fenômeno, porque a memória, ao incorporar a previsão, mudou sua perspectiva.
Por fim, a característica da eficácia causal decorre imediatamente da heterogeneidade. O simples decorrer do tempo é uma fonte permanente de novidades, já que a memória altera a perspectiva sob a qual cada um de nós vê o mundo. Logo, o tempo é, sob o ponto de vista da causalidade, potente e criativo. Isto significa que todos os processos econômicos devem necessariamente envolver a transmissão e o crescimento do conhecimento. Sob esta perspectiva, a competição deixa de ser apenas o nome dado a um determinado estado de equilíbrio, para ser um processo caracterizado pela descoberta. Na verdade, conforme a Escola Austríaca sempre sustentou, o crescimento do conhecimento, que se processa mediante as descobertas, é a força endógena que propulsa ininterruptamente todo o sistema.
Há duas conseqüências da rejeição do tempo newtoniano e da adoção da concepção subjetiva do tempo. A primeira é que o tempo subjetivo ou real é irreversível. Assim, os movimentos ao longo das curvas de oferta e de demanda não espelham as mudanças temporais reais: ao nos movermos de um ponto para outro em uma mesma curva, não há volta possível. A segunda conseqüência é que a passagem do tempo envolve uma "evolução criativa", ou seja, os processos geram mudanças imprevistas. Um processo não pode ser um simples rearranjo de fatores dados, como freqüentemente se considera em alguns modelos. Se as mudanças são reais, elas não podem ser determinísticas; sempre deve haver lugar para surpresas. O conceito de tempo real é fundamental para compreendermos a ação humana: ao agir, os indivíduos adquirem novas experiências, o que dá origem - necessária mas não deterministicamente a novos conhecimentos. Com base nesses novos conhecimentos, os indivíduos alteram seus planos e ações. Portanto, o sistema econômico é impulsionado por forças inteiramente endógenas. O estado natural da economia no tempo é movimento e não repouso, porque, como o tempo passa inexoravelmente, o conhecimento se altera e, com isso, a própria economia.
Podemos encerrar estes comentários a respeito do tempo subjetivo com o "enigma do tempo", formulado por um campeão do subjetivismo, G.L.S. Shackle: "time is experienced, time is imagined: the one is formed by the other, the other is formed by the one".
III. MERCADO, PREÇOS DE MERCADO E PROCESSO DE MERCADO
Todos os economistas da Escola Austríaca concordam com a proposição firmada pela tradição neoclássica, de Adam Smith a Milton Friedman, segundo a qual a liberdade econômica - caracterizada pela economia de mercado - é um importante componente da liberdade individual. Entretanto, os austríacos adotam um ponto de vista diferente a respeito de quais são as características essenciais dos mercados, que a análise econômica convencional (neoclássicos e keynesianos, de um lado, e marxistas, de outro) tem sistematicamente desprezado. São duas essas características, que funcionam de maneira interligada: (a) a importância do grau de conhecimento dos diversos participantes do mercado e (b) a importância maior do processo que conduz os mercados ao equilíbrio (enfatizado pela teoria convencional). O conhecimento, imperfeito e disperso, dos participantes dos mercados, como vimos, possui características que tornam a incerteza genuína uma presença permanente, embora indesejável.
Com o objetivo de entendermos melhor o processo de mercado, repassaremos cronologicamente as principais idéias dos economistas da Escola Austríaca, começando com Menger, prosseguindo com Mises e Hayek e desembocando na controvérsia mais recente entre Kirzner, que sustenta a tese de que os mercados convergem permanentemente para o equilíbrio, sem, no entanto, alcançá-lo e Lachmann, que descarta a existência de uma tendência ao equilíbrio endógena aos mercados.
A vertente austríaca tradicional, composta por Menger, Mises, Hayek e Kirzner, pode ser considerada, no que se refere a seu entendimento do fenômeno do mercado, como uma tentativa de reformulação e reconstrução das ideias neoclássicas fundamentais. Com efeito, enquanto os neoclássicos enfatizavam a chamada análise de equilíbrio geral e os problemas implicados por essa análise, colocando em uma posição secundária o estudo dos processos mediante os quais os mercados atingem o equilíbrio, a vertente principal dos austríacos prioriza como objeto de estudo o processo de mercado, relegando a análise das condições de equilíbrio a um plano não mais que instrumental.
Para a Escola Austríaca, o mercado é um processo de permanentes descobertas, de tentativas e erros, o qual, ao amortecer as incertezas, tende sistematicamente a coordenar os planos formulados pelos agentes econômicos. Como as diversas circunstâncias que cercam a ação humana estão ininterruptamente sofrendo mutações, segue-se que o estado de coordenação plena jamais é alcançado, embora os mercados tendam para ele.
Carl Menger tem, como quase todos os fundadores, uma história complexa, na medida em que suas obras, como observou Langlois, contêm elementos que foram retomados de formas diversas por seus seguidores. Kirzner, por exemplo, sustenta que o fundador da Escola Austríaca não poder ser enquadrado como um teórico do desequilíbrio, ao passo que Jaffé, Alter e O'Driscoll sugerem que sua obra contém elementos que permitem classificá-lo como um precursor da abordagem que vê os mercados como processos de desequilíbrio. A leitura atenta dos trabalhos de Menger permite-nos verificar sua crença de que a economia não está permanentemente em equilíbrio, embora tenda sempre para o equilíbrio; contudo, não ficam claras suas posições nem sobre o papel do empresário, nem sobre o dos preços de equilíbrio.
Mises, por sua vez, sustentava que a principal característica da Escola Austríaca era sua teoria da ação e não uma teoria de equilíbrio ou de inação. Assim, seu objetivo é explicar os preços que são efetivamente praticados no mercado e não os preços que prevaleceriam sob condições que jamais se verificam, como as que servem de apoio às teorias de equilíbrio de mercado. Por isso, ressaltava que "devemos reconhecer que sempre estudamos o movimento e nunca um estado de equilíbrio". De fato, o uso de "construções imaginárias", como o conceito de "economia uniformemente circular", que é uma das características da obra de Mises, não revela qualquer pretensão de representar a realidade; pelo contrário, seu objetivo é apresentar uma imagem tão essencialmente afastada da economia real que, a partir do forte contraste produzido em relação à complexa realidade econômica, seja possível compreendê-la tal como se apresenta.
A idéia hayekiana de coordenação representa um avanço sobre a construção misesiana de "economia uniformemente circular", uma vez que o conceito de Hayek envolve, sem dúvida, uma aplicação mais consistente do subjetivismo, já que abandona o requisito de que os dados externos (preferências, tecnologia e recursos) não se alteram, requerendo, em troca, que esses dados não variem com respeito às expectativas que guiam os planos dos agentes econômicos. A contribuição de Hayek para a teoria do processo de mercado deriva, essencialmente, de sua visão de que o conhecimento humano é imperfeito. Essa limitação do conhecimento, que se traduz em informações incompletas e na possibilidade de ocorrência de alterações nas preferências, na tecnologia e nos recursos, reflete-se também nos planos de ação dos participantes do mercado. Assim, os agentes econômicos não apenas são parcialmente ignorantes, mas as informações que possuem em cada caso são diferentes e, não raro, contraditórias e, além disso, as expectativas que formam a respeito do futuro são, em boa parte, divergentes. Este problema, que Hayek denominou de "dispersão do conhecimento", é considerado por ele como a questão central a ser resolvida pela economia.
A pergunta relevante, para Hayek, deve ser: quanto conhecimento e que tipo de conhecimento por parte dos agentes econômicos tornam-se necessários, para que possamos falar em coordenação perfeita entre os planos de todos os agentes econômicos, isto é, em equilíbrio de mercado? O papel do mercado, então, é o de servir como um processo, mediante o qual, por tentativas e erros, tanto o conhecimento como as expectativas dos diferentes membros da sociedade vão se tornando paulatinamente mais compatíveis no decorrer do tempo. Surge, desta maneira, a importância fundamental, primeiro, do sistema de preços, com o papel de emitir sinais para que os diversos participantes do processo de mercado possam coordenar seus planos ao longo do tempo e, segundo, da competição, como o único meio de descoberta das informações que são realmente relevantes. Evidentemente, a ignorância gerada pela escassez de conhecimento e que envolve o processo de trocas, fará com que diversos planos fracassem e a tendência para um maior grau de coordenação dependerá, de um lado, da capacidade de cada agente aprender com seus próprios erros e, de outro, de sua capacidade de substituir por planos cada vez mais corretos os que fracassaram anteriormente.
Se desejarmos condensar para o leitor a posição de Hayek, podemos escrever que, em sua concepção, a importância do processo de mercado é a de servir como um mecanismo transmissor de informações, proporcionando economia de conhecimento. De fato, requer-se de cada participante do mercado um grau baixo de conhecimento, para que possa agir corretamente.
Dentre os "austríacos", contudo, é Israel Kirzner, londrino que viveu e estudou em Cape Town e que obteve seu PhD. na Universidade de Nova Iorque, onde atualmente é professor aposentado, quem mais tem se dedicado (juntamente com o alemão Ludwig Lachmann, que pertenceu à geração anterior) à análise do processo de mercado e das características da atividade empresarial. Segundo ele, uma das causas da atual crise da teoria econômica é a ênfase excessiva que ela tem dedicado ao estudo dos casos de equilíbrio. Com efeito, embora não seja correto repelirmos de antemão a idéia de mercados em equilíbrio, o bom senso e a simples observação do mundo real, de um lado, e o espírito de seriedade acadêmica, de outro, obrigam-nos a reconhecer as limitações explicativas e normativas da ênfase no equilíbrio.
Ao adotarmos essa postura, deparamo-nos imediatamente com dois questionamentos aos modelos de equilíbrio geral derivados de Walras: se os agentes econômicos são tomadores de preços, como surgem, então, os preços? Além disso, como se coordenam as ações dos diferentes indivíduos? A corrente principal da teoria neoclássica recorreu ao conceito de "leiloeiro" walrasiano para dar resposta às questões, isto é, os preços seriam gerados por um ente fictício, não participante do mercado, cuja atuação também coordenaria a dos participantes. Kirzner, ao contrário, prefere explicar a formação de preços como o resultado da interação entre os agentes econômicos que atuam nos mercados. Emerge, assim, a importância da função empresarial, cuja essência é um estado de permanente alerta, no sentido de conseguir captar oportunidades de lucros não descobertos anteriormente. Tais oportunidades, que se revelam nos mercados através de diferenciais entre preços, são descobertas gradualmente pelos empresários que, ao explorá-las, tendem a corrigir desequilíbrios anteriores e, com isso, a promover a maior coordenação entre os planos individuais e, portanto, a gerar uma tendência de equilíbrio nos preços. Isto decorre do axioma fundamental da praxeologia, de que a ação humana, sendo motivada pela vontade de aumentar a utilidade, promove revisões nos erros anteriores que devem conduzir a erros sucessivamente menores. Na ausência de divergências de expectativas, o sistema tenderia automaticamente a um estado de completa coordenação que, no entanto, não é alcançado, na medida em que as divergências entre as expectativas que cada participante no mercado formula subjetivamente tendem a gerar transformações permanentes.
A posição de Ludwig Lachmann difere radicalmente das anteriores: sua visão do processo de mercado representa uma forte crítica, tanto ao conceito neoclássico de equilíbrio, quanto à explicação alternativa de Mises, Hayek e Kirzner. Como observa Sarjanovic, "Lachmann, influenciado pelo pensamento ultra-subjetivista de G.L. Shackle, descarta tanto o equilíbrio como a existência de uma tendência coordenadora no mercado". Para ele, as forças desequilibradoras merecem o mesmo tratamento que aquele que tem sido dispensado pelos economistas às forças equilibradoras, pelo motivo de que os processos de mercado são formados por ambas, o que implica que, de acordo com circunstâncias diferentes, umas prevaleçam sobre as outras, gerando, assim, processos com características diferentes.
A idéia central de Lachmann é que o conceito de mercado em equilíbrio deve ser inteiramente abandonado, uma vez que pressupõe que as forças equilibradoras ou coordenadoras prevaleçam sempre sobre as forças desequilibradoras ou descoordenadoras. Segundo sua visão, o mercado deve ser, portanto, interpretado como "um processo econômico, isto é, um processo em marcha, impulsionado pela diversidade de objetivos e recursos e pela divergência das expectativas, variando em um mundo de mudanças inesperadas". Ou, como escreveu em outra ocasião, o mercado deve ser considerado como "um processo sem princípio nem fim".
Observemos que os agentes econômicos, na concepção lachmaniana, agem em um mundo de características muito diferentes das que são normalmente consideradas: o subjetivismo radical está em um polo diametralmente oposto ao do equilíbrio geral, caracterizando-se por considerar que as variáveis são extremamente voláteis e as mudanças contínuas e incessantes. Shackle descreveu essa ordem econômica como um "processo caleidoscópico", marcado por avalanches sucessivas de reajustes em busca de novos, precários e efêmeros "pseudo-equilíbrios".
Temos assim, duas tendências na Escola Austríaca, que refletem duas abordagens diferentes do mercado: a de Lachmann e Shackle, que encara os mercados como processos simplesmente ordenados e que não vê necessidade em se postular uma tendência ao equilíbrio para que os processos de mercado sejam inteligíveis e a de Mises, Hayek e Kirzner, que enxerga os mercados como processos de coordenação, que tendem ao equilíbrio, embora não o alcancem, rechaçando tanto o extremo do equilíbrio geral quanto o do subjetivismo extremado, com base no argumento - bastante plausível - de que os indivíduos, ao atuarem nos mercados, defrontam-se com circunstâncias que nem são fixas nem, tampouco, mudam incessantemente, o que lhes permite descobrir gradualmente quais as alternativas que tendem a aumentar sua utilidade, superando assim paulatinamente a limitação de seu conhecimento.
V. CONCLUSÕES
A economia convencional costuma classificar os mercados de acordo com o seu número de participantes (concorrência perfeita, oligopólios, competição monopolística e monopólios). Além disso, estuda essencialmente as situações de equilíbrio em cada uma dessas formas de mercado. Esse procedimento deixa a desejar, primeiro porque situações de "equilíbrio" são bem pouco viáveis no mundo real; segundo, porque associa automaticamente "eficiência" com um número maior de participantes, o que nem sempre é verdadeiro, já que podemos ter, por exemplo, poucos participantes com razoável competição entre eles e muitos participantes com baixa competição; e terceiro, porque costuma causar uma terrível confusão entre "concorrência perfeita" (algo inexistente) com competição, o que não é verdade. Este terceiro equívoco é bastante grave e explica porque os críticos dos mercados livres associam sempre os que os defendem com sonhadores a viver em um mundo fictício, em que impera a concorrência perfeita. Nada mais falso.
Alternativamente, a Escola Austríaca, em razão dos elementos descritos neste trabalho, considera que os mercados são processos, ou seja, instituições essencialmente dinâmicas, que costumam tender ao equilíbrio mediante um procedimento de permanentes descobertas, tal como uma cadeia de tentativas e erros, um processo de aprendizado permanente. Obviamente, qualquer interferência externa - entenda-se por isso as intervenções do Estado - nesse processo, o comprometem irremediavelmente, por melhores que possam ser suas intenções, porque afastam os mercados de seu processo natural e, como o conhecimento dos agentes interventores não é melhor (na verdade, costuma ser pior) do que o dos participantes diretos dos mercados, os resultados acabam piorando o que se queria ingenuamente "consertar". Interferências do Estado nos mercados, de um lado, impedem o processo de descoberta que os caracteriza e, de outro, terminam afetando - mesmo que o Estado não tenha tido essa intenção - dezenas ou centenas de outros mercados, diretamente ou indiretamente relacionados com o mercado onde ocorre a intervenção inicial.


Ubiratan Jorge Iorio é economista, Diretor Acadêmico do IMB e Professor Associado de Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ).  Visite seu website.

Keynes e suas simpatias pelos "experimentos" do nazismo e do fascismo


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Este artigo é a segunda parte do texto É verdade que Keynes era um liberal? Todas as referências bibliográficas estão contidas ao final do referido artigo

71107957.jpgOutras razões para se pôr em dúvida o liberalismo de Keynes se devem à sua atitude, nas décadas de 1920 e 1930, com relação aos "experimentos" ocorridos no continente europeu no campo da economia planejada. Sobre as políticas econômicas do nacional-socialismo alemão e do fascismo italiano, Keynes por diversas vezes manifestou um ponto de vista surpreendente para alguém considerado um modelo de pensador liberal. Nesse particular, estão em questão dois textos: o prefácio à edição alemã de A Teoria Geral (Keynes 1973b, pp. xxv–xxvii) e o ensaio "National self-sufficiency" (Keynes 1933; também incluído em Keynes 1982a, pp. 233–46).
No prefácio, Keynes afirma que está se desviando da "tradição inglesa clássica (ou ortodoxa)", a qual — como observa — jamais prevaleceu por completo no pensamento alemão. "Tanto a Escola de Manchesterquanto o marxismo derivam em última instância de Ricardo. ... Mas na Alemanha sempre houve amplos setores da opinião que não aderiram nem a um, nem a outro. ... Talvez, portanto, eu possa contar com uma menor resistência da parte dos leitores alemães do que da parte dos ingleses ao oferecer uma teoria do emprego e da produção como um todo, a qual apresenta divergências da tradição ortodoxa em pontos importantes" (1973b, pp. xxv–xxvi).
Para seduzir ainda mais os leitores da Alemanha nacional-socialista, Keynes acrescenta: "Os exemplos e as explicações de boa parte do livro a seguir remetem principalmente às condições vigentes nos países anglo-saxões. Não obstante, a teoria da produção como um todo, que é o que este livro tenciona oferecer, se adapta muito mais facilmente às condições de um estado totalitário, e não às condições de livre concorrência e uma grande medida de laissez-faire." (1973b, p. xxvi).
Roy Harrod não menciona o prefácio em sua antiga biografia de Keynes (1951).[1]  Robert Skidelsky alude a sua "redação infeliz", e deixa por isso mesmo (1992, p. 581). Alan Peacock escreve a respeito da passagem (sem reproduzi-la) na qual Keynes menciona "que o governo alemão (nazista) à época seria mais simpático às suas ideias sobre o efeito das obras públicas na criação de empregos do que o governo britânico" (1993, p. 7). A interpretação, contudo, vai de encontro ao sentido evidente do texto: não é que os líderes nazistas fossem, por acaso, mais simpáticos a uma das propostas de Keynes em especial, mas sim que, na opinião de Keynes, sua teoria "se adapta muito mais facilmente às condições de um estado totalitário". Peacock ainda diz que "há controvérsias quanto ao prefácio ter sido traduzido corretamente ou não". Mas essa controvérsia em nada influi no trecho aqui reproduzido, já que ele foi extraído do manuscrito inglês de Keynes.[2]
Com frequência, economistas da Alemanha nazista faziam referências a Keynes com o intuito de defender as políticas econômicas ostensivamente antiliberais do nacional-socialismo. Otto Wagener, que tinha chefiado um departamento nazista de pesquisas econômicas antes da tomada do poder, deu a Hitler uma cópia do livro de Keynes sobre dinheiro por considerá-lo "um tratado bem interessante", o qual transmitia a sensação de que o autor estava "bem adiantado e vindo em nossa direção mesmo sem estar familiarizado conosco, nem com nosso ponto de vista" (citado em Barkai 1977, pp. 55, 57, 156).  
O lançamento da edição alemã de A Teoria Geral foi recebido com críticas veiculadas em publicações que tinham conseguido guardar alguma distância das políticas econômicas nazistas oficiais, ao passo que um apologista nazista na cidade de Heidelberg saudou-o "como a justificação do nacional-socialismo". O próprio Keynes comentou que as autoridades alemãs haviam permitido a publicação "em um papel [que era] um tanto melhor que o de costume, a um preço não muito acima que o de costume" (ambas as citações em Skidelsky 1992, pp. 581, 583).
Um exemplo ainda mais relevante das dificuldades de classificar Keynes como um liberal é seu ensaio "National self-sufficiency" (Keynes 1933, 1982b, pp. 233–46).[3] Nele, o laissez-faire e o livre mercado são tratados com o desdém característico do Círculo de Bloomsbury. No passado, haviam sido vistos "quase que como uma parte das leis morais", compondo o "fardo de enfeites obsoletos que o espírito carrega para lá e para cá" (Keynes 1933, p. 755). Bem diferente, no entanto, é a posição de Keynes com relação a doutrinas extremamente populares à época em que escreveu. "A cada ano fica mais evidente que o mundo está embarcando em uma série de experiências político-econômicas" à medida que os pressupostos do livre mercado do século XIX são postos de lado. E quais são essas "experiências"? Aquelas em curso na Rússia, Itália, Irlanda (sic) e Alemanha. Até a Grã-Bretanha e os Estados Unidos têm se empenhado em adotar "um novo plano" (p. 761).
Keynes é estranhamente agnóstico com relação às chances de sucesso desses vários projetos: "Não sabemos quais serão os resultados. Imagino que todos nós estejamos prestes a cometer muitos erros. Ninguém é capaz de dizer qual dos novos sistemas comprovará ser o melhor. ... Cada um de nós tem sua preferência. Não acreditando que já estejamos salvos [sic], cada um de nós gostaria de ter uma chance de encontrar um caminho para a própria salvação" (pp. 761–62).
Ele admite que "no que diz respeito aos pormenores econômicos, em contraste aos controles centrais", prefere "manter privado o máximo possível de decisão, iniciativa e empreendimento" (p. 762). Contudo, "na medida do possível, não podemos estar sujeitos à influência das mudanças econômicas ocorridas em outros lugares, para podermos proceder às experiências de nossa preferência com vistas ao ideal de república social do futuro" (p. 763).
À época em que Keynes escreveu esse artigo, era costume associar a doutrina da "auto-suficiência nacional", que ele pregava, ao nacional-socialismo e ao fascismo. Quando Franklin Roosevelt atacou a conferência econômica de Londres, em junho de 1933, o presidente do Reichsbank, Hjalmar Schacht, declarou ao Völkischer Beobachter(jornal oficial do Partido Nazista), em tom presunçoso, que o líder norte-americano tinha adotado a filosofia econômica de Hitler e de Mussolini: "Tomando nas próprias mãos as rédeas de seu destino econômico, você ajuda não apenas a si mesmo, mas ao mundo inteiro" (Garraty 1973, p. 922).
Keynes admite que muitos desacertos estão sendo cometidos em todas as tentativas de planejamento ao redor do mundo.  Embora Mussolini possa estar "adquirindo prudência e bom senso", "a Alemanha anda à mercê de irresponsabilidades desenfreadas — embora seja cedo demais para julgá-la."[4] Ele reserva suas críticas mais severas à Rússia de Stalin, exemplo histórico talvez sem precedentes de "incompetência administrativa e do sacrifício de quase tudo que faz a vida valer a pena em nome de cabeças-duras" (p. 766). "Que Stalin sirva como um exemplo pavoroso para todos que tentarem realizar experiências", declara Keynes (p. 769).
Contudo, sua crítica a Stalin — que até então já havia condenado à inanição milhões de pessoas na Ucrânia, e que enchia de outros milhões os gulags de Lênin — é curiosamente oblíqua e excêntrica.  O que a experiência socioeconômica soviética, juntamente com as demais, necessita acima de tudo é de uma "crítica audaciosa, livre e desapiedada".  Mas
Stalin eliminou todas as mentes criticas e independentes, mesmo aquelas que, em geral, lhes eram simpáticas.  Ele produziu um ambiente no qual os processos mentais são atrofiados. Os suaves espasmos do cérebro ficam enrijecidas. A vociferação multiplicada dos alto-falantes substitui as delicadas inflexões da voz humana. Os berros da propaganda aborrecem até os pássaros e animais do campo, induzindo ao estupor. (p. 769)
"Cabeças-duras... cérebros enrijecidos... aborrecimento... estupor". O leitor pode julgar por si mesmo se essa crítica — parecida com a insistência com que John Stuart Mill repisava a suma importância das discussões e debates intermináveis — é apropriada aos malfeitos praticados por Stalin e pelo poderio soviético a partir de 1933.
Por fim, uma passagem do ensaio, como consta da primeira versão, no Yale Review, é omitida em The collected writings:[5] "Mas exerço minhas críticas como alguém de coração amistoso e simpático às experiências desesperadas do mundo contemporâneo, alguém que lhes quer bem e que deseja seu sucesso, alguém que tem em vista suas próprias experiências e para quem, em última instância, não há no mundo o que não seja preferível àquilo que os relatórios financeiros costumam chamar de 'a melhor opinião de Wall Street'" (Keynes 1933, p. 766).
O comentário de Skidelsky a respeito do ensaio é lacônico e irrelevante: "Como observou Keynes, nos artigos 'National self-sufficiency' [o ensaio foi publicado em duas partes na revista The New Statesman and Nation], as experiências sociais estavam na moda; independentemente da procedência política, todas tinham em vista um papel bastante dilatado para o governo e um papel extremamente restrito para o livre comércio" (1992, p. 483). Nem de longe essa descrição parece suficiente.
Durante as décadas de 1920 e 1930, a insistência de Keynes nas maravilhas dos "experimentos" da engenharia social acabou se tornando quase risível. Outro exemplo consta do ensaio "The end of laissez-faire" no qual ele escreve: "Eu critico o socialismo de estado doutrinário não porque ele procure mobilizar os impulsos altruístas dos homens em prol da sociedade, nem porque se afaste do laissez-faire, nem porque exclua a liberdade natural do homem de se tornar milionário, nem porque tenha a coragem de promover experiências audaciosas. Todas essas coisas eu aplaudo" (1972, 290, grifo meu).
A esta altura, a pergunta que fica é: como pode alguém que expressou uma ávida simpatia pelos "experimentos" de nazistas, fascistas e comunistas stalinistas, e que reservava zombarias triviais ao livre funcionamento da sociedade do laissez-faire, ser considerado um exemplo acabado de liberal, se é que se pode chamá-lo de liberal?[6]

No próximo artigo, as ligações de Keynes com proeminentes comunistas.


[1] Em extensa nota de rodapé, Michael Heilperin comenta a ausência de referências a esse prefácio na obra de Roy Harrod (1951), maior biógrafo de Keynes à época em que Heilperin escreveu. Em vista da repressão à liberdade acadêmica e a outras liberdades, na Alemanha nazista, Heilperin chama o lisonjeiro texto de Keynes de "mancha indelével em seu histórico de liberal" (1960, 127 n. 48).
[2] A discussão envolve algumas frases que constam da edição alemã, mas não do manuscrito de Keynes; contudo, não parece que essas frases incriminem ainda mais o autor, a não ser pelo uso da expressão "eminente liderança nacional [Führung]", com conotação positiva. Seja como for, é provável que Keynes aprovasse os acréscimos. Ver Schefold 1980.
[3] A versão constante em The collected writings é das edições de 8 e 15 de julho de 1933 da revista The New Statesman and Nation. Contudo, primeiro o ensaio foi publicado na revista Yale Review. As citações que fazemos aqui são desta segunda versão, Keynes 1933. Heilperin afirma que, "em vista de sua brevidade, [esse ensaio] pode ser considerado um dos textos mais significativos de Keynes" e comenta que o autor minimiza o caráter totalitário dos regimes em discussão: "Estavam fazendo uma experiência — e é isso que torna maravilhosas as coisas!" (1960, 111). Aqui, Heilperin consegue captar o espírito fundamental desse trabalho e das ideias de Keynes ao longo de muitos anos.
[4] Essa e outras críticas à Alemanha nazista foram omitidas da tradução alemã, evidentemente que com a permissão de Keynes; ver Borchardt 1988. Embora ciente da versão da Yale Review, Borchardt prefere citar o ensaio de The collected writings, desse modo superestimando seu teor liberal.
[5] Este trecho deveria constar de The collected writings depois de "Pois não se pode esperar que eu aprove todas as coisas que hoje são feitas no mundo político em nome do naturalismo econômico. Longe disso." (Keynes 1982b, 244). Do mesmo modo, a versão em The collected writings omite alguns outros trechos, de pouca importância, que aparecem na Yale Review. Não se vê nenhuma indicação, por parte do editor da compilação, de que a versão nela incluída seja diferente daquela publicada na Yale Review; além disso, ele identifica erroneamente a edição da revista, datando-a do "verão de 1933".
[6] Ao longo de sua carreira, Keynes foi um crítico incansável do princípio do laissez-faire. "The end of laissez-faire" (Keynes 1972, 272–294) é o título daquele que talvez seja o ensaio mais polêmico que escreveu. À época (1926), foi objeto de uma resenha de autoria do economista liberal italiano Luigi Einaudi (de modo algum um "doutrinário"), que comentou que o folheto não era exatamente original, nem era dotado de particular importância: a ideia de que ele representaria algum tipo de ponto histórico decisivo era "a mais pura fantasia" de críticos precipitados. Einaudi pergunta por que Keynes, "depois de ter voltado a pôr a regra do laissez-faire fora de combate, como princípio científico, não dedicou mais algumas páginas ao exame da importância que atualmente se atribui a essa regra, como norma prática de conduta? ... Será mesmo que a importância prática da regra do laissez-faire para a conduta dos homens é hoje menor que ontem?" Mesmo que as tarefas do governo tenham se tornado muito mais numerosas, essa concessão não "comprova a decadência da regra do laissez-faire, uma vez que é bem provável que, no mesmo período da ampliação da atividade pública e interferência em alguns setores da vida econômica, tenha ocorrido crescimento bem maior de novos tipos de atividade, nas quais o valor da antiga regra do laissez-faire ainda permanece intacto" (1926, 573).
Ralph Raico 
membro sênior do Mises Institute, leciona história no Buffalo State College. É especialista em história da liberdade, na tradição liberal da Europa, e na relação entre guerra e ascensão do estado. É o autor de The Place of Religion in the Liberal Philosophy of Constant, Tocqueville, and Lord Acton



O paradoxo libertário - aquilo que qualquer criança entende, menos alguns adultos


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break-the-chains.jpgSempre que os libertários tentam persuadir outras pessoas, explicando a eles o que defendem, eles se deparam com um interessante paradoxo.  De um lado, a mensagem libertária é simples.  Ela envolve premissas morais e intuições que, em princípio, são compartilhadas por praticamente todo mundo, inclusive crianças.  Não agrida ninguém.  Não roube ninguém.  Cuide de sua própria vida.
Uma criança diria: "Eu peguei primeiro; é meu!".  Há uma noção intuitiva segundo a qual o primeiro usuário de um bem que até então não tinha proprietário adquire uma prioridade moral em relação aos retardatários.  Este, também, é um aspecto central da teoria libertária.
Seguindo a tradição iniciada por Locke, Murray Rothbard e outros filósofos libertários procuraram estabelecer um relato que fosse filosófica e moralmente defensável sobre como surge a propriedade, isto é, como um bem se torna propriedade de um indivíduo.  Locke afirmava que, no início dos tempos, os bens existentes na terra eram propriedade comunal, ao passo que Rothbard, mais plausivelmente, afirmava que, no início, todos os bens simplesmente não possuíam donos.  Mas essa diferença não afeta a análise de ambos.  Locke estava tentando justificar como alguém pode retirar um bem de sua até então propriedade comunal e passar a utilizá-lo exclusivamente, e Rothbard estava interessado em explicar como alguém pode se apropriar de um bem até então sem dono e reivindicar exclusividade sobre seu uso individual.
A resposta de Locke nos é familiar.  Ele observou que, antes de tudo, cada indivíduo é o dono de seu próprio corpo.  Por conseguinte, cada indivíduo se torna o proprietário de direito daqueles bens aos quais ele 'misturou' seu trabalho.  Cultivar uma terra, apanhar uma maçã — qualquer que seja o exemplo, dizemos que a primeira pessoa a se apropriar de algo até então sem dono, algo que estava inerte na natureza sem nenhum proprietário e sem ter recebido nenhum tipo de trabalho, pode se autoproclamar seu proprietário legítimo.  Esta é a teoria da 'apropriação original'.
Tão logo um bem que até então estava em seu estado natural é apropriado originalmente por um indivíduo, seu proprietário não mais precisa continuar trabalhando nele ou fazendo transformações para manter seu título de propriedade.  Uma vez que o processo de apropriação original já ocorreu, futuros proprietários não mais poderão adquirir esta propriedade específica ao simplesmente 'misturar' seu trabalho nela — isso seria uma transgressão.  As únicas maneiras, portanto, de futuros proprietários adquirirem esta propriedade específica são por meio de uma transação comercial voluntária (compra e venda) ou por meio de doação por parte de seu proprietário legítimo.
Como dito no início, todos nós intuitivamente percebemos a justiça e a moralidade imbuídas no cerne desta regra.  Se o indivíduo não é o dono de si mesmo, então qual outro ser humano seria o proprietário?  Se o indivíduo que transforma algum bem que até então não era propriedade de ninguém não possui um direito sobre este bem, então qual outra pessoa possui?
Além de ser justa, esta regra também serve para minimizar os conflitos.  Trata-se de uma regra que todos são capazes de entender, pois é baseada em um princípio que se aplica igualmente a todas as pessoas.  Ela não diz que apenas os membros de uma determinada raça ou de um determinado nível de inteligência podem ser proprietários.  Trata-se de uma regra que definitivamente demarca títulos de propriedade de uma forma lógica e compreensível para todos, a qual reduz as contendas a um mínimo.
Alternativas a esse princípio do 'primeiro apropriador, primeiro usuário' são poucas e inócuas.  Se não for o primeiro usuário, então quem?  O quarto usuário?  O décimo segundo?  Mas se apenas o quarto ou o décimo segundo usuário for o proprietário de direito, então somente o quarto ou o décimo segundo usuário tem o direito de fazer alguma coisa com o bem.  É isso o que significa propriedade: capacidade de fazer o que quiser com um bem, desde que, ao agir assim, o proprietário não cause danos a nenhum outro indivíduo.  Atribuir títulos de propriedade por meio de algum outro método — como, por exemplo, declaração verbal — não teria efeito algum em minimizar conflitos; as pessoas simplesmente iriam gritar em vão umas com as outras, cada qual reivindicando a propriedade do bem em questão, de modo que a resolução pacífica do conflito resultante seria impossível.
Estes princípios são fáceis de entender, e, como dito, envolvem constatações de cunho moral com as quais praticamente todas as pessoas afirmam concordar e ser adeptas.
E é justamente aí que surge o paradoxo libertário.  Libertários partem destes princípios básicos e universalmente entendidos e aceitos por todas as pessoas, e procuram apenas aplicá-los de forma consistente e de maneira uniforme a todas as pessoas.  Porém, mesmo que as pessoas aleguem apoiar estes princípios, e mesmo que a maioria alegue acreditar na igualdade — que é o que o libertário está defendendo ao aplicar princípios morais a todas as pessoas, de maneira uniforme e sem exceção —, a mensagem libertária repentinamente se torna extremada, desarrazoada e inaceitável.
Por que é tão difícil persuadir as pessoas daquilo em que elas implicitamente já acreditam?
Não é difícil descobrir o motivo.  As pessoas herdaram uma esquizofrenia intelectual do sistema educacional controlado pelo estado, da mídia que diligentemente cria entretenimentos para aliená-las, e dos intelectuais que despejam propaganda em sua cabeça.
Foi a isso que Murray Rothbard se referiu quando descreveu a relação entre o estado e os intelectuais.  "A elite dominante", escreveu ele,
seja ela os monarcas de outrora ou os partidos comunistas de hoje, necessita desesperadamente de elites intelectuais que criem apologias para o poder estatal.  O estado governa por decreto divino; o estado assegura o bem comum e o bem-estar geral; o estado nos protege dos malvados atrás das colinas; o estado garante o pleno emprego; o estado aciona o efeito multiplicador keynesiano; o estado garante a justiça social, e por aí vai.  As apologias foram se diversificando com o passar dos séculos; o efeito sempre é o mesmo.
Por que, afinal, os intelectuais fornecem seus serviços ao estado?  Por que eles são tão ávidos em defender, legitimar e criar desculpas para os corredores do poder?
Rothbard tinha uma resposta:
Podemos ver o que os soberanos do estado ganham com sua aliança com os intelectuais; mas o que os intelectuais ganham com essa aliança?  Intelectuais são o tipo de pessoa que acredita que, no livre mercado, eles ganham muito menos do que sua sabedoria realmente vale.  Já o estado está disposto a pagar a eles salários magnânimos, seja para fazer apologias ao poder estatal, seja para lotar a miríade de cargos no aparato regulatório e redistributivo.
Adicionalmente, a classe intelectual com a qual estamos lidando quer impor sua visão, seu padrão de moralidade, à sociedade.  Frédéric Bastiat dedicou boa parte de seu clássico livro A Lei a este impulso: o intelectual e o político são vistos como escultores, e a raça humana é vista como uma argila.
O que todas as instituições oficiais nos ensinam, portanto, é algo mais ou menos assim: em nome do bem-estar e do progresso da humanidade, alguns indivíduos têm de exercer poder sobre os outros.  Se deixados por nossa conta, não teríamos praticamente nenhum instinto filantrópico.  Todos nós cometeríamos os mais abjetos tipos de crime.  O comércio se estancaria por completo, não mais haveria quaisquer inovações, e as artes e a ciência seriam negligenciadas.  A raça humana se afundaria e se degeneraria em condições inomináveis, impossíveis sequer de serem contempladas.
Sendo assim, é necessário haver uma única instituição que detenha o monopólio da iniciação de força física e do poder de expropriar indivíduos.  Tal instituição irá garantir que a sociedade seja moldada de acordo com os padrões adequados, que a "justiça social" seja alcançada, e que as aspirações mais profundas da humanidade tenham alguma chance de ser concretizadas.
Tão arraigadas em nossa mente estão essas ideias, que dificilmente ocorreria a alguém pensar nelas como mera propaganda.  Esta simplesmente é a verdade sobre o mundo, imaginam as pessoas.  É assim que as coisas são.  Não podem ser de outra forma.
Mas e se elas puderem?  E se realmente houver uma outra maneira de se viver?  E se afinal não houver nenhum motivo para a liberdade ser tão confinada?  Mais ainda: e se ela puder se expandir sem limites?  E se a aversão que as pessoas nutrem ao monopólio também for aplicável ao governo assim como se aplica a todo o resto?  E se o livre mercado, o mais extraordinário criador de riqueza e inovação já concebido, e o mais confiável e eficiente mecanismo de alocação de recursos escassos, for também o melhor meio de fornecer aqueles serviços cuja oferta nos foi dita que deve ficar a cargo do governo?  E se o estado, o maior homicida em massa da história humana, o maior fardo ao progresso econômico e a instituição que joga uns contra outros em um jogo de soma zero baseado na pilhagem mútua, estiver retardando em vez de estimulando o bem-estar humano?
É somente quando percebemos algumas das implicações desta filosofia política, que seu poder libertador se torna claro.
Ela significa que tributação é uma afronta moral, uma vez que envolve a expropriação violenta de indivíduos pacíficos.  Significa que agências reguladoras e burocracia são proibições diretas à livre iniciativa e ao ato de se empreender em busca do próprio sustento.  Significa que tarifas protecionistas existem apenas para proteger os incompetentes e proibir consumidores — especialmente os mais pobres — de obter bens mais baratos e de maior qualidade.  Significa que o recrutamento militar obrigatório é apenas um termo elegante e nacionalista para sequestro estatal.  Significa que guerras são exemplos de homicídio em massa.  Significa que o estado não é o glorioso garantidor do bem comum, mas, ao contrário, um parasita que se alimenta dos indivíduos que ele governa. 
Os anarquistas de esquerda estavam grotescamente errados ao condenarem o estado como o protetor da propriedade privada.  O fato é que o estado simplesmente não sobreviveria caso não agredisse a propriedade privada.  O estado não produz nada, e só sobrevive por causa do trabalho produtivo daqueles que ele expropria.
O estado é o exato oposto do livre mercado em questão de ética e de comportamento.  No entanto, ainda assim são poucos os defensores do mercado que se dão ao trabalho de examinar suas premissas.  Eles continuam acreditando nas seguintes ideias:
(1) O melhor sistema social é aquele em que a propriedade privada é respeitada, as pessoas são livres para incorrer em transações comerciais entre si, e não há uso de coerção.
(2) Isto, no entanto, se aplica até que a produção de determinados bens esteja em questão.  Aí então é necessário haver monopólio, coerção, expropriação e decisões burocráticas — em outras palavras, a mais egrégia contradição dos princípios que alegamos defender.
Para sermos honestos, pode não ser tão fácil imaginar, a princípio, como o livre mercado ofertaria determinados bens e serviços.  Além do mais, não é verdade que sempre necessitamos de que haja alguém "no comando"?
No entanto, por esse mesmo raciocínio, deveria ser igualmente difícil imaginar o sucesso do próprio livre mercado: sem alguém dando ordens centralizadamente e comandando todas as decisões de produção, como podemos esperar que agentes privados produzam justamente aquilo que as pessoas querem, especialmente quando têm de lidar com um número virtualmente infinito de possíveis combinações de recursos, cada qual sendo demandado em variados graus de intensidade por um número inimaginável de possíveis processos de produção?  E é exatamente isso o que o ocorre diariamente no mercado, sem nenhuma fanfarra.
Pensadores libertários apresentaram a mais radical crítica já feita ao estado.  É verdade que os marxistas alegam defender o fim do estado, mas tal defesa dificilmente pode ser levada a sério.  O poder coercivo do estado possui uma função central na transição marxista do capitalismo para o socialismo.  Como disse Rothbard, "É completamente absurdo tentar alcançar um arranjo sem estado por meio da mais absoluta maximização do poder estatal, a qual ocorreria em um uma ditadura totalitária do proletariado (ou, de maneira mais realista, de uma seleta vanguarda do suposto proletariado).  O resultado será apenas a estatização máxima e, por conseguinte, a escravidão máxima."
E, sem a propriedade privada, como seriam tomadas as decisões de produção?  Por um estado, é claro.  A diferença é que os marxistas não o rotulariam de estado.  Segundo Rothbard:
Com a propriedade privada misteriosamente abolida, a eliminação do estado sob o comunismo seria necessariamente uma mera camuflagem para um novo estado que surgiria para controlar e tomar as decisões sobre os recursos que agora seriam de propriedade comunal.  Exceto que o estado não mais seria chamado de 'estado', mas sim renomeado para algo como "departamento estatístico popular". ... Será de pouca consolação para as futuras vítimas, encarceradas ou assassinadas por cometerem "atos capitalistas entre adultos em comum acordo" (citando uma frase tornada popular por Robert Nozick), o fato de seus opressores não serem o estado, mas sim um departamento estatístico popular.  O estado, sob qualquer outro nome, continuará exalando um odor igualmente fétido.
Já aqueles conservadores que defendem um "governo limitado" querem reformar o sistema.  Se tentarmos isso ou aquilo, dizem eles, podemos transformar um monopólio da violência e da expropriação em um manancial de ordem e civilização.
Nós libertários estamos a milhões de léguas de ambas essas visões.  Não vemos os empregados do governo como "servidores públicos".  Como é deprimente ouvir conservadores ingênuos sonhar com um retorno àquela época "nostálgica" quando o governo respondia às pessoas, e os políticos eleitos buscavam o bem comum.  A situação que vivenciamos hoje, ao contrário do que estes conservadores querem acreditar, não é nenhuma aberração lamentável.  É apenas a deplorável norma de um ambiente em que há um ente com o monopólio da violência e da tomada de decisões supremas.
Existem duas, e somente duas, versões desta história sobre liberdade e poder.  Uma olha para o poder oriundo do estado como a fonte do progresso, da prosperidade e da ordem.  A outra credita a liberdade como a responsável por essas coisas boas, bem como pelo comércio, pelas invenções, pela prosperidade, pelas artes e pela ciência, pela subjugação das doenças e da miséria extrema, e por muito mais.  Para nós, a liberdade é a mãe, e não a filha, da ordem.
Alguns irão contra-argumentar dizendo que há uma terceira opção: uma criteriosa combinação entre estado e liberdade seria necessária para o desenvolvimento humano.  Mas isso nada mais é do que uma apologia ao estado, uma vez que tal postura aceita como fato consumado exatamente aquilo que nós libertários questionamos: que o estado é a indispensável fonte de ordem, dentro da qual a liberdade prospera.  Ao contrário, a liberdade prospera apesar do estado, e seus frutos que observamos ao nosso redor seriam ainda mais abundantes não fosse a mão pesada e morta do estado.
E eis aí um outro lado do paradoxo libertário: embora nossa filosofia advenha de uma única proposição — o princípio da não-agressão —, todo o desenvolvimento e elaboração deste princípio fornece uma inexaurível fonte de prazer intelectual à medida que exploramos como as características inerentes à sociedade humana podem se entrelaçar para atuar de forma conjunta e harmoniosa na ausência de uma coerção.
A classe intelectual tem sua tarefa e nós temos a nossa.  A deles é continuar confundindo e ofuscando a mente do público; a nossa é esclarecer e explicar.  A deles é escurecer; a nossa é iluminar.  A deles é subjugar o indivíduo à dominação daqueles que violam os princípios morais que todas as pessoas civilizadas alegam defender e seguir; a nossa é emancipá-lo desta submissão.
Termino aqui com o paradoxo libertário final: se, por um lado, somos professores da filosofia da liberdade, por outro, enquanto continuarmos estimando e apreciando estas grandes ideias, seremos para sempre alunos.  Você, libertário, continue explorando e descobrindo, lendo e escrevendo, argumentando e persuadindo.  A violência é a arma do estado e de indivíduos moralmente sórdidos.  O conhecimento e a mente são as ferramentas dos indivíduos livres.

Lew Rockwell é o presidente do Ludwig von Mises Institute, em Auburn, Alabama, editor do website LewRockwell.com, e autor dos livros Speaking of Liberty e The Left, the Right, and the State.


Tradução de Leandro Roque